segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19426: A Galeria dos Meus Heróis (18): A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento (Parte I) (Luís Graça)



Luís Graça, Contuboel, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, julho de 1969

A Galeria dos Meus Heróis > A Nucha ou a difícil arte do envelhecimento - Parte I

por Luís Graça










1. A Nucha ainda estava muito combalida quando eu, na semana seguinte, lhe telefonei. Por mero acaso, numa daquelas minhas saudáveis rotinas de fazer a ronda, “on line”, dos amigos que estão longe. Uma ou duas vezes por ano, lembro-me de pegar no telefone para o fazer o teste da “prova de vida e da amizade”.


Em geral, sou preguiçoso demais para  telefonar. Fobias, critica-me um amigo. No fundo, tenho tenho boas notícias. Mas afinal malta ainda vai estando cá está para as curvas, está  bem de saúde e recomenda-se. Mas neste caso foi o contrário. A Nucha estava viva, graças a Deus, mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2016.

− Num ataque de ciúme patológico, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não acredito...

− Desculpa, nunca te cheguei a falar dele, nestes anos todos!


2.Pedi-lhe para desligar e voltei a contactá-la por videochamada. Senti que ela precisava de desabafar e nada como ter um velho amigo, a 300 km de distância, longe mas sempre ao alcance de um clique.

Enfim, pelas imagens, deu para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia ainda um colar cervical. Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na cabeça e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pude, em meados de julho desse ano, arranjei um pretexto para ir visitá-la. Tinha uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitei para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.


3. Não deu, desta vez, para estar com a simpática malta da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (*), que se junta às 5ªs feiras. Havida entrado neste grupo, justamente através da Nucha e do seu projeto de promoção do envelhecimento ativo e saudável.

A Nucha é uma das “mães-fundadoras” do grupo e um elemento-chave. ”É certinha, não falha, comparece sempre, quer faça sol quer faça chuva”, dizem-me. Naturalmente, nas semanas seguintes à agressão, não teve condições para lá voltar. Sobretudo, anímicas. Creio que só regressou à tertúlia em outubro de 2016, até porque entretanto meteram-se as “férias de verão”dos caminheiros.

“Deixou-se ir abaixo com esta história toda, creio que anda deprimida”, confidenciou-me uma das pessoas do grupo que lhe estava mais próximas, a “Poetisa”. Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos, até porque o “caso” se tornara público, contra a sua vontade.

− A nossa Nucha foi vítima de violência doméstica – anunciou o “Mister”, logo na 5ª feira seguinte aos “acontecimentos”. O “Mister”, professor de educação física reformado, exerce as funções de líder informal da Tertúlia, por acordo tácito da maioria (*).

Algumas pessoas do grupo estavam mais chocadas do que outras, segundo me contou a “Poetisa” com quem apenas falei ao telefone nesse fim de semana em que fui ao Porto e aproveitei para estar com a minha amiga Nucha.

− Uma “brincadeira”, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros.

A “Poetisa” não achou “graça nenhuma” à subtil insinuação desse caminheiro, para mais vindo de quem era, de alguém que, no passado, também fora vítima de violência doméstica, mas neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. O termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas!


4.Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que eu só vim a conhecer pessoalmente mais tarde,) contaram-me que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com danos corporais ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Todo o ciúme é patológico! – ironizou a “Poetisa”.

A Nucha ficou muito afetada, física e psicologicamente. “In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia.


O agressor acabou por cair em si (até porque era um homem inteligente) e deu-se por “culpado”. A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital, donde só regressou no dia seguinte, tendo estado em observação e depois em tratamento.


5. Compreensivelmente, ela nunca mais voltou à casa da Foz, nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes. Para essa tarefa, incumbiu uma amiga de ambos, que morava para os lados da av da Boavista. A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria, os “50 metros quadrados da sua ilha preferida”, que ela costumava dividir com o casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno.

− Na primavera e no verão, preciso de sentir nas narinas a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… Nunca poderia viver por detrás de uma serra! Detesto o rosmaninho e a urze, cheiros de uma infância em que não foi feliz!


6. O juiz impôs ao alegado agressor uma medida de coação de termo de identidade e residência.

− Se fora um trolha da construção civil, ia logo dentro! – desabafou a “Poetia”, ao telefone. E justificou a sua afirmação nestes termos:

− Como vês, é a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe e, pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista.

− Porque é que dizes isso ? – interpelei-a eu – Não serão chavões a mais ?

− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo da vítima e do agressor.

− Mas, também, se calhar, do estatuto socioprofissional − insinuei eu. – Mas não creio: os nossos juízes e juízas têm hoje uma outra formação.



7. Comentei este caso (que não é assim tão raro quanto se pensa, no nosso círculo de relações) com um psiquiatra, meu amigo, de Lisboa, que naturalmente não conhecia as pessoas em causa, a Nucha e o seu ex-companheiro.


− Tu, que és sociólogo da saúde, sabes tão bem ou melhor do que eu. Da minha prática clínica, assim a "olhómetro", eu diria que os casais 'grisalhos' (idosos, mas também de meia-idade), em Lisboa, no Porto, em todo o lado, estão a ter dificuldade em envelhecer. Quando as pessoas se reformam, têm ainda a esperança, legítima (ou legitimada pelas estatísticas demográficas...), de viver mais uns 10, 15, 20 ou até 25 anos (!) com saúde e qualidade de vida.


− Há gente a reformar-se muito cedo, por uma razão ou outra. É verdade que alguns começaram a trabalhar ainda crianças. Outros têm profissões ditas de desgaste rápido, ou que pertencem a certas corporações da função pública com privilégios que a maioria da população trabalhadora portuguesa não tem,não pode ter nem nunca terá.


− Mas, repara, a reforma significa para muita dessa gente, sobretudo entre as profissões científicas e técnicas, a "morte social". Saem de cena, saem do palco, saem das universidades, das empresas, das administrações, deixam de ser úteis e sobretudo... desejáveis!... O reformado é sobretudo um indesejável, até por que constitui um "fardo" para a população ativa, os mais novos e os que estão na fila para a reforma, mas que continuam a fazer descontos para a Segurança Social...


E o meu amigo psiquiatra acrescentou:

− As coisas já se vinham agravando com a crise de 2008/2009. As relações conjugais, amorosas, afetivas, enfim, o amor, o namoro, a amizade, a família, tudo isso se degrada com as crises económicas, o desemprego, a perda de rendimentos, os filhos que voltam para casa, etc.

− Ah!, a famosa anomia de Durkheim!

− Depois, há avós que não fazem mais nada do que cuidar dos netos, mesmo quando andam já na escola, adiando ou protelando os seus sonhos, de viajar, conhecer mundo, reviver, etc. Depois tens o inexorável relógio biológico, a idade que não perdoa, a velhice, os cabelos brancos...


− E, como diz, o povo, "teme a velhice porque ela nunca vem só"... − acrescentei eu.

− Tem um fundo de verdade, como muitos provérbios populares... De facto, com a velhice, vêm as doenças crónicas degenerativas, por exemplo, que em muitos casos até são geríveis, se tiveres uma rede de suporte social ou um sistema de saúde como aquele que hoje temos, e que não tinham os nossos pais e avós...


E explicitou melhor o seu pensamento:

− As pessoas querem viver mais, mas não estão preparadas para viver melhor, não sabem lidar com a reforma... É um fenómeno estranho. Há vários casais, meus conhecidos, alguns até meus doentes, que não aguentaram a "solidão a dois", depois da reforma...


(Continua)


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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19353: A Galeria dos Meus Heróis (17): Os caminheiros do parque da cidade - II (e última) parte (Luís Graça): com os meus votos para o novo ano que aí vem, o 2019. Porque a saúde, afinal, não serve para mais nada... a não para sermos livres e felizes! (Luís Graça)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meus caros, a "solidão a dois" não é um problema específico da reforma... É um problema do casamento, civil, religioso, ou simples união de facto... E começa antes, no namoro, tal como a violência doméstica... As suas raízes são bem fundas e antigas... Claro que, com a saída dos filhos do "ninho", a "solidão a dois" pode agravar-se... E a reforma, enquanto "morte social", não ajuda nada... Os casais precisam de reforçar os "interesses em comum"... No caso dos "veteranos de guerra", há um problema adicional: as nossas mulheres não fizeram a guerra, e têm muita dificuldade a entender as nossas "merdas"... Histórias, destes casais, precisam-se,meus amigos e camaradas!... LG