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quarta-feira, 8 de outubro de 2025



A revolta da população após a libertação pelas forças do PAIGC

Para o portador de armas

Camaradas,

Sabeis, aliás, todos temos essa certeza que, em qualquer base militar, as portas de armas são operadas pelo pessoal que visam assegurar a segurança e a defesa de um qualquer contingente operativo que no interior do aquartelamento excuta os seus deveres, ou, por outro lado, descansa numa noite onde os sonhos são, por vezes, inquietados com importunações que resvalavam para percetíveis pesadelos. Nesta conformidade militar e baseado em experiências vividas, lembro, por exemplo, aquando uma bela noite cheguei ao quartel do CISME, em Tavira, passava ligeiramente da hora marcada, ou seja, à meia noite e cinco/seis minutos, se a memória não me falha, e encontrei, com um outro camarada, a porta já encerrada. Claro que tocamos várias vezes e nada, até ouvirmos uma voz vinda de dentro, que logo nos indicou que só às sete da manhã haveria a ordem da entrada.

Ficamos “fulos que nem uma barata”, restando-nos a certeza de passarmos a noite ao relento e bem defronte ao quartel. Não houve ordem para reclamações, os rígidos princípios da tropa eram, naquela época, incontestáveis, e lá fomos nós noite afora “engolindo em seco” tal tomada de decisão. Melhor: uma ordem que tivemos que cumprir.

Na Guiné, como em outro lugar onde a guerrilha africana imperava, a coisa também cumpria as mesmas regras. Em Nova Lamego, depois do 25 de Abril, lembro, perfeitamente, da população, quiçá desesperada, “reclamar direitos”, tendo em linha de conta a indefinição em que porventura se encontrava. Eis, portanto, mais um texto que trago em meu livro -UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/1974 – edições Colibri, Lisboa.

A revolta da população após a libertação pelas forças do PAIGC
Amarras do medo


População à porta do quartel temendo, talvez, pelos tempos de mudança

Manietados pelas amarras do medo, fomos jovens combatentes que conhecemos os horripilantes terrores da guerra colonial. No horizonte de além-mar vislumbravam-se, espaçadamente, sinais de esperança. Uma esperança por todos ambicionada e literalmente com honra concretizada. 

Por que essas breves palavras de liberdade? Há mais de 50 anos as armas se calaram nas antigas províncias ultramarinas. Eu, furriel miliciano de Operações Especiais/Ranger, tive o poder de pertencer a uma lista imensa de camaradas que prestavam serviço militar na Guiné. 

Em Gabu cruzei a guerra com a paz. Vivi intensamente os momentos que se seguiram após a Revolução dos Cravos. Os primeiros contatos com os guerrilheiros do PAIGC e o subsequente duvidar da facilidade deparada. Mas, estávamos em liberdade e o inimigo de ontem eram os homens que agora conviviam libertos das amarras do medo. 

Lembro das cavaqueiras, justamente no bar de sargentos de Nova Lamego, entre antigos opositores no palanque da peleja. Lembro, as armas que outrora serviram, única e exclusivamente, para matar outros homens. Os confrontos diretos onde os sons horripilantes das armas se espalhavam em um horizonte manchado pela negridão de uma África sempre harmoniosa. Porra, por que aquela guerra malvada? O Estado Novo assim ordenava e nós lá partíamos desconhecendo o destino. 

Mas, escalpelizando esses enviesados trilhos guineenses, somos forçados a mergulhar em realidades que tendem cair no limbo do esquecimento, essencialmente por parte daqueles que fogem do tema como o diabo foge da cruz. Não fomos e não seremos reconhecidos por uma gentalha de malfeitores que desconhece o sofrimento dos soldados enviados para as trincheiras da guerra. 

Todavia, existe uma certeza que ainda nos prende o coração: garotos de 20, 21, 22 e 23 anos foram heróis numa guerra para a qual foram atirados à força e mal preparados para lidar com a guerrilha. 

Conheci essa indesmentível verdade. Coloco-me no leque de “putos” que tinham como missão comandar outros “putos” apesar do momento hostil vivido. Não temiam a imprevisibilidade da densidade de um mato que escondia inesperados encontros sempre indesejados. Iam em frente. 

O 25 de Abril foi o momento solene para todos os camaradas que combatiam nas três frentes de batalha se libertassem das amarras do medo e gritassem bem alto “viva a liberdade!”. 

Os alaridos das armas deram lugar às tréguas. Os inimigos se definiam em abraços fraternos. Contudo, existia em cada um de nós uma imensurável raiva do passado. Revíamos os camaradas mortos, os aleijados, os feridos com menos ou mais gravidade e desconhecíamos o futuro. Um futuro onde damos conta de camaradas que jamais conseguiram reencontrar-se com a estabilidade emocional numa sociedade que os renega. 

É hora de vivermos abril, é verdade, mas em nosso cofre existem mágoas que ainda mexem com nossa sensibilidade. 

Revejo a porta-de-armas do quartel em Nova Lamego em fase de transmissão de poderes. Nativos que buscavam ajuda. Nas suas caras, com idades transversais, notava-se sinais de medo e de incertezas nos tempos vindouro. Tentavam um presumível assalto ao quartel. Eles queriam arroz e outros bens alimentícios. Sua ingenuidade parecia atroz. A força da ordem no futuro imediato foi chamada de PAIGC. Eles, membros de uma população com a qual habitualmente convivíamos, por lá ficaram sujeitos a um novo regime. 

Sinais de um abril que cruzaram fronteiras e que libertaram as amarras do medo de um exército que almejava seu retorno para casa. E foi assim o ápice da Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974. 

Abraços, camaradas
José Saúde
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 




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