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segunda-feira, 2 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26875: Notas de leitura (1804): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Maio de 2024:

Queridos amigos,
Foi neste seu primeiro livro que António Duarte Silva vislumbrou o que havia de inédito na estratégia congeminada por Amílcar Cabral para sair do impasse da luta armada graças à declaração unilateral de independência, que ele analisa em detalhe, conjugando o direito e a política, foi um processo cuja anatomia envolveu o confronto estratégico de Spínola e Cabral, o progressivo isolamento diplomático de Portugal e a credibilização do PAIGC sempre em alta; o autor esmiúça o processo eleitoral da Assembleia Nacional Popular e como se prepararam as reuniões para a independência. No terceiro e último texto, iremos ver a descolonização portuguesa e o reconhecimento da Guiné-Bissau, chamando a atenção para o riquíssimo acervo documental e bibliográfico que o autor nos preparou.

Um abraço do
Mário



A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa (2)

Mário Beja Santos


Como se assinalou no texto anterior, o investigador António Duarte Silva encarou esta obra como um roteiro em quatro partes: colonialismo e nacionalismo na Guiné; o que houve de inédito e revolucionário na declaração unilateral da independência, que ocorreu formalmente em 24 de setembro de 1973; que caminhos trilhou a descolonização portuguesa e como a República da Guiné-Bissau nasceu de um conjunto de normas e atos políticos singularíssimos: o direito à autodeterminação previsto na Carta das Nações Unidas, como o PAIGC se fez legitimar não só pela lutar armada mas como um lutador pela independência que tinha território ocupado pelo colonizador; e o caso inédito de que essa declaração unilateral da independência foi acompanhada com prontidão pelo reconhecimento do número maioritário dos Estados pertencentes às Nações Unidas e como pelo 25 de Abril, se chegou ao reconhecimento português e à admissão da Guiné-Bissau na ONU.

O autor enfoca o tempo e o modo da descolonização portuguesa, como se procurou a negociação com o Governo português para chegar à autodeterminação, sem qualquer êxito, e também como o pensamento de Cabral era consistente na definição do que devia ser a soberania e poder constituinte: idealizou uma assembleia que votasse a independência, gerou empatia no ONU, a Assembleia Nacional Popular começou por aprovar a independência, depois a Constituição e designou os titulares dos outros órgãos centrais do Estado. Há aqui um dos pontos capitais da análise que o autor faz à formação da Guiné-Bissau enquanto Estado africano.

Ele diz expressamente:
“O Estado, em África, resulta de um transplante e não só a evolução das sociedades e dos sistemas político-jurídicos africanos profundamente marcada pelo fenómeno colonial como a sociedade pós-colonial foi pré-definida de um modo decisivo através do princípio da territorialidade, da imposição do sistema normativo ocidental e da mundialização do sistema inter-estatal. De facto, os Estados africanos, sobretudo da África negra, corresponderam a uma repetição geral do Estado moderno. A mundialização do Estado moderno constituiu um dos traços dominantes do nosso tempo e acelerou-se no decurso dos últimos decénios. O Estado africano, cuja existência é anterior à de uma nação sobre a qual se possa fundar, tem de indo construindo a sua própria nação. Enquanto procede à construção nacional, o Estado resume-se à mera soma de aparelhos administrativos, que procuram separar-se da sociedade civil, já que a sociedade civil não permite ainda distinguir a função do órgão e o órgão do seu titular. A grande maior dos Estados africanos imitou formalmente o Estado metropolitano. Acresce que a receção do modelo estadual europeu foi essencialmente organizacional, pois nem o espírito democrático foi assimilado, nem o Estado africano, precisamente por vir de fora e ser imposto de cima, tem a contextura do Estado moderno.”

E daí a observação que o autor faz das particularidades da Guiné-Bissau, continuo a pensar que se trata de uma apreciação que nenhum investigador da problemática guineense devia ignorar. E, logo de seguida, o autor procede a uma síntese de como a Guiné fez parte do império colonial português, é uma figura política e jurídica surgida a Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886, a presença portuguesa na região foi sempre muito mitigada, a sua colonização assentou no trabalho forçado, no imposto de capitação e na exportação comercial – aí tiveram um papel de capital a chamada Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, esta ligada ao Banco Nacional Ultramarino.

Dado o contexto, o autor muda de campo de observação para todo o histórico da declaração de independência, o que remete para uma síntese do direito colonial, do que se passou no teatro de operações, como foi evoluindo o envolvimento internacional e a ação diplomática de Amílcar Cabral, a importância que teve em termos políticos internacionais, a visita de uma missão especial da ONU no início de abril de 1972 a alguns pontos do Sul da Guiné, como Cabral pôde potenciar as conclusões da missão e o beneplácito recebido pela Assembleia Geral da ONU; temos igualmente um quadro das tentativas de negociação. Cabral congeminara uma estratégia para a declaração unilateral da independência: a convocação de eleições nas chamadas zonas libertadas, elaborou um documento intitulado Bases para a criação da 1.ª Assembleia Nacional Popular na Guiné, estava a ganhar forma o cenário para a independência a que Cabral fisicamente não assistiu, na última mensagem de Ano Novo, proferida no mês em que foi assassinado, ele refere-se expressamente à eleição e reunião da Assembleia Nacional Popular, dizendo que a Guiné-Bissau até aí é uma colónia dispondo de um movimento de libertação e cujo povo libertou durante anos de luta armada parte do seu território nacional, passaria a ser, aprovada a independência, um país dispondo do seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupada por forças armadas estrangeiras.

Entre o assassinato de Cabral e a declaração unilateral da independência, e indo um pouco atrás, houvera a ofensiva portuguesa no Sul, a reocupação do Cantanhez, a chamada Operação Grande Empresa, que inicialmente deixou o PAIGC em grande confusão; seguem-se os acontecimentos de março e abril, a chegada dos mísseis terra-ar e de duas grandes operações montadas para cercar Guidage e Guilege, com resultados devastadores. Spínola envia para Lisboa um relatório atemorizador: “Aproximamo-nos, cada vez mais, da contingência do colapso militar.”

De 18 a 22 de julho, próximo de Madina do Boé, realiza-se o segundo congresso do PAIGC; Aristides Pereira é eleito como Secretário-Geral e Luís Cabral como Secretário-Geral Adjunto; reveem-se os estatutos do PAIGC e convoca-se a Assembleia Nacional Popular com o fim de proclamar a independência. O lugar inicialmente escolhido era Balana, no Sul, por razões de segurança e por ter havido rotura de ligações diplomáticas entre o Senegal e a Guiné-Conacri, escolheu-se um ponto de Boé, e não seriam ainda 9 horas de 24 de setembro quando a dita assembleia proclamou o Estado da Guiné-Bissau.
O autor disseca o teor da Proclamação do Estado, analisa a Constituição do Boé e extrai uma breve conclusão:
“Das muitas considerações que esta Constituição pode suscitar, destaca-se que a Guiné-Bissau foi criada como Estado constitucional, cuja Lei Fundamental não foi uma mera técnica de descolonização, antes o produto de uma luta de libertação nacional ampla e duradoura, e pretendia ser o estatuto de um Estado-Nação combinando os (dominantes) modelos europeus com soluções próprias da sua história, em especial, da descolonização da Guiné-Bissau (e, também, de Cabo Verde).”


(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 26 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26849: Notas de leitura (1801): "A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa", por António Duarte Silva; Afrontamento, 1997 (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 30 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26864: Notas de leitura (1803): "Um Império de Papel, Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940)", por Leonor Pires Martins; Edições 70, 2012 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26557: Historiografia da presença portuguesa em África (470): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1900 e 1901 (25) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Não posso esconder que é quase num completo desfastio que ando a folhear estes Boletins Officiais de fim de século, os trâmites administrativos parecem dominar tudo, quem lê número após número pode ficar na ilusão de que a província está pacificada e gradualmente ocupada pela administração portuguesa. Até em 1900 se dá a notícia de que vai haver o primeiro recenseamento da população. Procurando tirar a prova dos nove, procurei ler ao pormenor que Armando Tavares da Silva escreve no seu trabalho gigante intitulado A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926 quanto à governação de Herculano da Cunha, percorre a província de um lado para o outro, informa o ministro que é saudado em todos os pontos entusiasticamente, foge às expedições militares, tem pouquíssimos efetivos e em geral gente desordeira. Se é verdade que em determinados períodos o Boletim Oficial constitui um documento esclarecedor no caso presente é um puro encobrimento das tensões e dificuldades sem número em que vivia a Guiné.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1900 e 1901 (25)


Mário Beja Santos

Tenho dado a saber ao leitor que os últimos anos da década 1890 e o início do novo século registam com estranhíssima parcimónia os acontecimentos políticos que a Guiné teve. Os Boletins Officiais estão enxameados da legislação do Governo Central, tratados internacionais, e quanto ao que se passa no burgo são as costumadas nomeações e exonerações, chegadas e partidas, publicação do orçamento da província, relatos sanitários das principais povoações, etc. Vou aqui registar o que me parece mais curioso de 1900 e do início de 1901 e contrapor com a listagem de eventos que Armando Tavares da Silva elenca no seu importante acervo documental intitulado "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", 2016.

No Boletim n.º 10, de 10 de março de 1900, o boletim recolhe uma portaria do Governador Álvaro Herculano da Cunha que reza o seguinte:
“Tendo-me o régulo de Antula em abril do ano findo tido para se levar a efeito a ocupação do seu território, o que eu lhe havia prometido; e
Tendo, quando agora me veio cumprimentar, por ocasião da minha visita a Bissau, renovado o seu pedido e solicitado o cumprimento da minha promessa;
Atendendo às vantagens de ordem económica, política e administrativa, e do prestígio que, para o nosso domínio, advém da referida ocupação: hei por conveniente determinar que se ocupe o referido território, estabelecendo-se ali um posto militar de força oportunamente determinada.”


Em Lisboa, era aprovado o regulamento disciplinar das forças militares ultramarinas que veio publicado no Boletim Official n.º 31, de 4 de agosto desse ano. Não deixa de ser curioso o que ali se escreve e como tais preceitos chegaram aos nossos tempos de oficiais, sargentos e praças naquelas décadas de 1960 e 1970: a disciplina consiste na estrita e pontual observância das leis e regulamentos militares; para que a disciplina constitua a base em que judiciosamente deve firmar-se a instituição armada, observar-se-ão rigorosamente as seguintes regras fundamentais – obediências pronta e passiva, ficando o superior responsável pelas ordens que der; em ato de serviço a obediência é sempre devia ao mais graduado e na concorrência de militares com a mesma graduação ao mais antigo; todo o militar deve sofrer com resignação as fadigas e privações, conservando-se intrépido dos perigos, generoso na vitória e ciente na adversidade; todo o militar deve regular o seu procedimento pelos ditames da religião, da virtude e da honra, amar a pátria, ser fiel ao Rei, guardar e fazer guardar a constituição política da monarquia, etc. etc.

Estamos agora em 1901 e o Boletim n.º 13, de 30 de março, publica um conjunto de portarias que nos levam a saber que houve uma operação em Jufunco. O 1.º tenente da Armada, Bernardo de Melo e Castro Moreira, comandante da canhoneira Cacongo, prestou relevantes serviços aos Governo, coadjuvando-o com inexcedível zelo na expedição contra o gentio rebelde de Jufunco, bombardeando eficazmente as povoações dos revoltosos, facilitando assim o desembarque dos Grumetes e concorrendo, portanto, para a vitória obtida; o 2.º tenente da Armada, Artur Ernesto da Silva Pimenta de Miranda, comandante da lancha-canhoneira Flecha, prestou relevantes serviços ao Governo, bombardeando eficazmente as povoações do revoltosos; são louvados os oficiais e praças da canhoneira Cacongo e lancha-canhoneira Flecha pela dedicação e boa vontade com que concorreram para o bom êxito da expedição contra o gentio rebelde de Jufunco. Os louvores não ficaram por aqui, foram extensivos ao comandante militar de Bissau, ao comandante militar de Cacheu e até ao diretor da alfândega em Bolama.

Fica-se com a noção de que lidos desgarradamente estes pontos aqui e acolá ao longo destes anos a Guiné parece trilhar na serenidade, foram minimizados os conflitos, pacificado o Forreá, crescem os postos militares, enfim, a ocupação do território vai de vento em pompa. Hora as coisas não se passam exatamente assim como conta Armando Tavares da Silva a partir da página 431. Herculano da Cunha não tem meios para se envolver em qualquer operação militar, viaja muito pelo território. A ilha de Bissau mantém conflitos interétnicos, rivalidades entre os régulos. O Governador fugiu sempre à resolução dos problemas da província que pudessem envolver as operações militares, escreve para Lisboa que procura exercer um magistério de influência para evitar guerras, sobretudo nos regulados da margem direita do Geba. Quando visita o Forreá, recebe queixas dos régulos; no regresso de Geba viaja até ao Xime, cujo régulo foi por ele repreendido asperamente por ter batido a uma sua mulher com um chicote e que agora vinha reclamar que fugira, tinha o desplante de pedir ao Governado que atuasse.

E assim chegamos à questão de Jufunco de que registei os louvores. Tudo começara quando se admitiu a possibilidade de impor à população o pagamento de tributos, a resposta foi o descontentamento. Herculano da Cunha queixa-se sempre que não tem tropas em qualidade e quantidade, a indisciplina é geral, as forças da província são compostas de deportados, há poucos oficiais, quando se pretende punir Jufunco, a estratégia foi bombardear as povoações e só depois intimidá-las, nada de combates em campo aberto.

As queixas contra o estado em que se encontrava a administração da província eram muitas. A população de Bolama enviou ao rei uma petição na qual pediam que Bolama fosse novamente administrada por uma câmara municipal. Os Bolamenses consideravam que estavam votados ao abandono. Eram inúmeras as carências em tudo o que era público: arruamentos, pavimentação, muros, iluminação, cemitério, prisões.

Vindo de Lisboa, Herculano da Cunha continua as suas visitas e cumprimentos de régulos. Os governantes em Lisboa devem-se ter fartado desta inoperância, Herculano da Cunha será exonerado em maio de 1900. Na véspera de deixar a Guiné envia para Lisboa um oficio em que, devido aos ataques dos Balantas de Nhacra aos Brames, pedi autorização para bombardear o território dos Balantas, isto na véspera de partir.

É nos meses finais desta governação que se inicia uma nova fase dos trabalhos de demarcação da fronteira com os territórios vizinhos de administração francesa. Tudo correu mal logo no início, isto em 1888, os delegados franceses pretendiam que se fizesse uma alteração à Convenção de 1886, substituindo o Cabo Roxo pela Ponta Varela, de onde partiria a linha de fronteira, os delegados portugueses rejeitaram a proposta. Em 1899, há novos trabalhos de demarcação, do lado português estão Oliveira Muzanty e Telles de Vasconcelos, começam pela fronteira sul, nova rutura nas negociações, os franceses queriam entrar em territórios no Forreá, só em finais de 1902 os trabalhos de demarcação serão retomados, mas o mais importante, a fronteira entre o Casamansa e o rio Cacheu será objeto de uma nova missão, em janeiro de 1904.

Como o leitor pode constatar entre a linguagem cinzenta da burocracia e o que se passava na província política, militar e económica, a distância era um abismo.

Nomeação do Governador em 1900, Judice Biker
Em 1897, o novo Governador chama-se Álvaro Herculano da Cunha
Oficinas da Sociedade Comercial Ultramarina, imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares
Serração do Sonagui, imagem restaurada e que consta da Casa Comum/Fundação Mário Soares
A Casa Gouveia em Bissau, 1920

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 26 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26530: Historiografia da presença portuguesa em África (469): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1897 e 1898 (24) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26471: Notas de leitura (1770): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Vellez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Finda aqui a digressão pelo livro de Armando Tavares da Silva, "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, foi a nossa bengala como contraponto à rotina burocrática do Boletim Official da Guiné Portuguesa. Com efeito, o Boletim Official, talvez tirando o período da governação do tenente-coronel Vellez Caroço, é meticuloso quanto à publicação dos diplomas emanados pelo Governo em Lisboa, elenca nomeações, movimento marítimo, aforamentos e concessões de terrenos, etc., etc., mas sonega-nos informações da vida quotidiana, conflitos interétnicos; é evidente que nos vamos apercebendo da gradual presença portuguesa dentro da colónia e como se está a alterar o movimento import-export, vão saíndo empresas estrangeiras, a CUF tem um papel dominante e, já mais atrás, a Sociedade Comercial Ultramarina. Sinto falta a partir de agora de uma obra que me permita o contraponto ao Boletim Oficial, usarei como recurso a História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, de René Pélissier, mas sinto que há um vácuo entre 1928 e 1933, isto a despeito do golpe revolucionário republicano que eclodiu na Guiné entre maio e abril de 1931. A ver vamos como se poderá tapar esta lacuna.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Velez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13)

Mário Beja Santos

Chega à Guiné em junho de 1921, a colónia tinha estado durante um ano entregue ao secretário-geral Sebastião Barbosa, tinham-se praticado muitas irregularidades. Vellez Caroço tinha apostado em sanear a vida pública da província, faz-se acompanhar do seu sobrinho, que irá exercer as funções de seu chefe de gabinete. Prontamente inicia as visitas pelo território, reconhece que era necessário dissolver a Comissão Municipal de Bissau, o ministro também lhe propõe o restabelecimento do Conselho de Governo. Este oficial de Infantaria conheceu seguramente inúmeros desagradáveis conflitos, é firme e enérgico, anuncia publicamente que não se afastaria uma linha de cumprimento dos seus deveres, indica uma série de ligações que considera prioritárias; Brames a Cacheu, Farim e Bafatá; Mansoa a Bafatá, S. João a Buba, entre outras. É aprovada a criação da circunscrição de Cacine. Já em rota de colisão com Sebastião Barbosa, anula disposições por este tomadas, mas punha-se um problema concreto relativamente à concessão de terrenos, o governador temia as especulações.

Os problemas não se ficaram por aqui: o ex-governador Carlos Pereira havia requerido a concessão por aforamento de 25 mil hectares de terreno na Costa de Baixo, os indígenas protestaram contra esta concessão, nasce processo, o ministro não vê condições para anular a decisão, o governador não desanima, sempre que suspeita de indícios de corrupção manda fazer sindicâncias, não faltou uma sindicância ao coronel Quinhones de Matos Cabral, é suspenso Sebastião Barbosa, vai decorrendo a moralização da vida pública, o governador tem amigos e inimigos, a intriga chega a Lisboa, o ministro resiste e congratula-se com a ação governativa.

Em agosto de 1922, Vellez Caroço elabora o seu primeiro relatório, exprime a sua preocupação com o saneamento da província, já que altos funcionários eram acusados de faltas que iam desde o abuso de autoridade até aos crimes de peculato. Lembra o ministro que há uma tentativa surda de afastamento da colónia da esfera da influência portuguesa. A campanha de difamação contra o governador chega ao Parlamento e à imprensa de Lisboa. Nesse mesmo primeiro relatório, sempre pondo o seu lugar à disposição do Governo, Vellez Caroço fala num período de estabilidade, lembra que era preciso fazer um regulamento do trabalho indígena que estabelecesse um mínimo de trabalho para cada indivíduo. Não poupando a verdade dos factos, o governador afirma que a província se encontrava enxameada de empregados recrutados em Cabo Verde, com pouquíssimas habilitações.

Outros escolhos pendiam sobre a Guiné, a situação financeira, a questão das cambiais e o imposto de palhota. O ministro decidira que fosse adotado na colónia o estabelecimento de uma sobretaxa a que ficariam sujeitas as mercadorias exportadas; tal valor seria devolvido se dentro dos dez dias subsequentes o exportador entregasse na agência do BNU todo o valor, em moeda estrangeira, da sua exportação ou reexportação. Cresceu o descontentamento, o comércio da Guiné sentia-se altamente prejudicado com as disposições deste decreto, dizendo que havia uma escandalosa proteção à CUF. Logo no início de 1923 se verificou que o BNU não tinha numerário suficiente para permitir as transações. O problema vai-se agudizando, em agosto de 1924 Vellez Caroço torna a pedir providências, mantinham-se as dificuldades em fazer transferências para Lisboa, a agência do BNU não tinha recebido ordens de acesso para as fazer. Na ausência de moeda, o governador foi obrigado a procurar meios de aumento das disponibilidades, aumentou a taxa de imposto de palhota, mas foi manifestamente insuficiente. Novas cartas ao Governo, Vellez Caroço pede a demissão e foi-lhe dada, o governador regressa amargurado, em Lisboa sucedem-se os governos, Vellez Caroço acaba por ser nomeado de novo governador, quando chega, ele que se referia aos seus primeiros anos da Guiné como de paz, chega e encontra tumultos para resolver. Tudo começa na região de Nhacra, é decretado estado de sítio, o governador avança para o local dos incidentes com cem homens e peças de artilharia, a população apresenta-se, mas é mantido o estado de sítio, as operações só acabam dias depois.

Em 1925, nova operação em Canhabaque, bem-sucedidas, pelo menos temporariamente.

Esta ação de fomento do governador é notória, são melhoradas as estradas, é inaugurada uma linha telegráfica Farim – Kolda – Dacar. São tomadas medidas de fomento educativo, é criada uma escola noturna de ensino primário, retificam-se fronteiras e reconstroem-se antigos marcos que se achavam danificados. Graça Falcão continuava a ser uma figura controversa; demitido o Exército, mantivera-se ativo na vida da província, propusera-se como candidato a deputado pela Guiné, não tem sucesso mas consegue uma carreira na administração local, conhece castigos, transferências, inquéritos, sai sempre ilibado. Tavares da Silva dá nota da crise fiduciária em 1925, não há possibilidade de manter o equilíbrio orçamental e o delegado do BNU em Bolama recebera ordens da sede para não continuar a fazer transferências para a conta da colónia no Ministério, por falta de cobertura de Lisboa porque tal medida significativa a paralisação dos fornecimentos e dos pagamentos da colónia.

A tensão vai crescendo entre Bolama e Lisboa, o BNU fez a proposta segundo a qual o comércio exportador obrigava-se ao depósito na colónia de 50% do valor da exportação, mas não chegava o dinheiro para pagar os vencimentos aos funcionários. Em Lisboa sucediam-se alterações ministeriais umas atrás das outras. Vellez Caroço novamente pede a demissão, as dificuldades financeiras com que se deparava a província foram aproveitadas pelos adversários de Vellez Caroço, lançaram-lhe novos ataques. Em Lisboa, o jornal O Século também o destrata, refere-se que tinha mandado abrir sem plano nem critério estradas pessimamente construídas e por indígenas que ainda não tinham sido renumerados, a CUF apostava na saída do governador. Ele vem a Lisboa, dirige ao ministro uma exposição relatando todo o problema das transferências, para obviar as reclamações do comércio, o governador propõe que o Governo da metrópole ceda 50% das cambiais provenientes da exportação e reexportação da Guiné; publica-se uma portaria em que o Governo dispensa chamar a si as cambiais correspondentes aos produtos reexportados, satisfazia-se assim a Casa Gouveia.

Tudo isto ocorre nas vésperas do 28 de maio, o comércio de Bolama pede insistentemente ao Governo o regresso imediato do “honesto de Vellez Caroço”, segue o pedido da Câmara Municipal de Bolama, em 23 de junho Vellez Caroço reassume o Governo e elabora um diploma de acordo com o que tinha sido estabelecido com o Governo Central, procura-se uma solução para a questão das transferências. A associação comercial de Bissau manifesta-se em oposição ao governador, este discute a situação com o comércio exportador, os comerciantes de Bolama e Bissau estão divididos. Continua a faltar numerário na circulação da Guiné. Tudo acabará com a verdadeira exoneração de Vellez Caroço em dezembro de 1926.

O trabalho de Tavares da Silva termina com a referência de que Vellez Caroço regressado a Lisboa envolve-se nas sublevações militares de fevereiro de 1927, vindo a ser preso e deportado para a Angola. Resta o epílogo. Vale a pena reter alguns parágrafos.

“As dificuldades financeiras da Guiné e a falta de cambiais continuariam ainda por vários anos a afetar o comércio, sendo o de menor dimensão o mais prejudicado. Igualmente as atividades de fomento, que tiveram um assinalável incremento durante a governação de Vellez Caroço, iriam ser afetadas, assim como os serviços de administração local. Porém, a partir de meados dos anos 30 as contas da colónia passaram a apresentar saldos positivos, aliviando as dívidas ao exterior.
A Casa Gouveia, onde a CUF tinha uma participação, ia adquirindo uma posição cada vez mais dominante no comércio local, quase monopolizando a atividade exportadora e comercial da província. Desde a pacificação da ilha de Bissau com a campanha de Teixeira Pinto, em 1915, que a província vivera sem que operações militares de envergadura ocorressem, excetuando a campanha de Canhabaque de Vellez Caroço. Novas operações só vêm a ter lugar em 1933 na região dos Felupes, prolongando-se pelo ano seguinte; e, em 1935-l936 ocorre uma outra campanha nos Bijagós, também na ilha de Canhabaque. Era, porém, a última grande operação militar na Guiné. A partir desta, e terminada a Segunda Guerra Mundial, a Guiné viverá um período de paz que lhe vai possibilitar notável desenvolvimento, sobretudo sob o Governo de Sarmento Rodrigues.”


Armando Tavares da Silva
Bilhete-postal de 1900
Bilhete-postal de 1900
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Notas do editor:

Vd. post de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Um belo texto, uma visão singular numa síntese da história da expansão portuguesa e o que nela houve de peculiar e marcante para a nossa identidade. Dir-se-á que são observações consabidas pelas razões da expansão: quando, em tempos medievais, a Europa se guerreava e nós com as fronteiras definidas e ambições no Norte de África, aquela dinastia de Aviz possuía uma nova nobreza de origem burguesa-popular, aberta à inovação e à curiosidade, nascia um projeto nacional entre o Meditterãneo e o Atlântico, as expedições henriquinas foram o gatilho para se desencravar o mundo; a importância de Lisboa e a carreira da Índia, o desabrochar de um pensamento científico e as expedições à procura de mais mundo, daí Garcia da Orta, Fernão Mendes Pinto, os negócios no Extremo Oriente; e depois a exaustão, a inversão do Índico para o Atlântico, o Brasil do açúcar, do ouro e das pedras preciosas, a consolidação do Antigo Regime e a recusa da modernidade; com a independência do Brasil, a "África", ou o Terceiro Império, exaltado por sucessivas gerações, teimosamente alheado às mudanças de rumo, cuja expressão máxima foi o antigo colonialismo. Este belo texto intitulado Políptico, escrito em janeiro de 1975, tece considerações, hoje compreensivelmente extemporâneas, mas este professor que foi exemplar não prescindiu de nos convocar para um esforço enorme no campo da educação para que o país se transformasse numa escola de trabalho, de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. Meio século depois, a convocatória está de pé.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada, dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Lançou um projeto aliciante, o de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da expansão/colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço, estávamos no ano de 1975.

Responderam ao pedido vários historiadores e investigadores, já aqui se falou dos textos de Banha de Andrade, Frédéric Mauro e Charles Ralph Boxer, damos hoje a palavra a Joel Serrão, o seu texto é singularíssimo, intitula-se Políptico, subdividido em cinco capítulos. O 1.º intitula-se A Alba, e escreve assim:

“Era uma vez um pequeno povo de camponeses, pescadores, mesteirais modestos, e negociantes, fixado no extremo ocidental da Europa, onde a terra se acaba e o mar começa… País-finisterra, o seu litoral condicionava-o, direta ou indiretamente, impelia-o para os rumos históricos que viriam a ser os seus. O vai-e-vem das primeiras cruzadas dinamiza os pequenos portos e permite a criação de um modo de vida nacional, centrado no litoral, que será um poderoso fator de consciência coletiva, desejosa de talhar um espaço de viável para a nacionalidade que assim se esboçava.”

E lá se foi definindo o espaço de Portugal, ganha importância o mediterrâneo e por aqui os portos algarvios e os de Lisboa e Porto, assim nascia, talvez modestamente uma placa giratória entre gente das repúblicas italianas, Biscaia e até à Flandres, a seu tempo os nossos barcos irão até à Inglaterra e mesmo às águas frias do Labrador. A Europa vive tensões sociais agudíssimas, não só a guerra do Cem Anos, rivalidades e conflitos entre as cidades italianas e há mesmo guerras entre os povos eslavos. 1383-85 trouxe a redefinição de Portugal no seu estatuto de Estado independente, surgiu uma nova nobreza de origem burguesa-popular, e com ela a avidez de ocupar posições no mediterrâneo. Assim se chegou a Ceuta e logo a seguir a Madeira. Abria-se assim, com conhecimentos de ciência náutica, a aventura de nos embrenharmos no Atlântico.

Novo capítulo, intitulado Meio-dia, enceta-se neste lento e cuidadoso apalpar do terreno a procura do encontro e do achamento que culminará com a viagem de Vasco da Gama e a sua chegada a Calecute. Portugal está na vanguarda do domínio das rotas atlânticas, aqui circulam ouro, escravos, açúcar, malagueta, os veleiros portugueses devassam as paragens do Índico e dos mares da China e do Japão, a chamada carreira da Índia atrai os negociantes a Lisboa. 

Mas que lição tirar desta gesta tão aventureira? 

“Nem Portugal enriqueceu com o monopólio da rota do Cabo nem os povos e as civilizações orientais beneficiaram coisa que se visse com a presença ali quer de portugueses, quer de holandeses e ingleses.“ 

Joel Serrão cita O Soldado Prático de Diogo Couto e mesmo Garcia da Orta, questiona as razões porque abortou a originalidade do renascimento português, esse começo sem conclusão, é um Portugal que vai à frente da expansão europeia, rapidamente fica exaurido, mas ainda não é o fim da história.

E estamos no 3.º capítulo, intitulado Tarde. Pequeno país, população rara, máquina comercial primitiva. E em meados do século XVI assiste-se a uma viragem estrutural, uma translação do centro de gravidade do império português para o Atlântico, polarizado pelas terras brasileiras.

“Enquanto o Império Oriental desfalece, a colonização do Brasil inicia-se e prossegue: em 1536, as capitanias de terra, e em 1549 a criação do Governo geral, com sede na Baía de Todos os Santos, é a mudança.” 

E sem esta mudança, que futuro poderia ter tido Portugal com a desanexação de Espanha, em 1640? O Brasil vai desempenhar um papel fundamentalíssimo: o grande comércio internacional português de então principia na colónia; e a indústria, especialmente na segunda metade do século XVIII, são os horizontes coloniais que ou a estimulam ou a limitam. E geram-se sentimentos-forças com marca indelével: saudade do passado de glórias orientais, a eficácia da Contrarreforma, as frotas de açúcar e de ouro sulcam o Atlântico, a recusa portuguesa da modernidade, é por arrastamento que o país segue para a contemporaneidade, mas o pensamento liberal é o ar do tempo: os EUA libertam-se do jogo colonial em 1776 e as certezas de estabilidade serão abaladas pela Revolução Francesa.

Novo capítulo, Sol poente, a Corte no Brasil em 1807 irá acelerar o processo de autonomia da colónia, o Reino fica colocado numa mais serrada dependência inglesa. E quando chega a independência do Brasil, homens como Mouzinho da Silveira entendem que a única opção que restava era a de revolver de alto a baixo a estrutura do Antigo Regime. O império português não ficara ainda completamente liquidado. Restava-lhe, além da presença mais ou menos simbólica no Índico, a “África”, até então pouco mais que manancial de escravatura. A primeira metade do século XIX será dramática para o nosso desenvolvimento socioeconómico; então o país é empurrado para a “África”, sucedem-se viagens de exploração, campanhas de ocupação militar, entraremos na Primeira Guerra Mundial com vista a conservar o património histórico africano. E a dependência da economia metropolitana, relativamente ao capitalismo estrangeiro, repercutiu-se na exploração de Angola e Moçambique; e vieram os ventos da história, Portugal fechava-se ao mundo, e assim aconteceu o termo do longo dia que, nos entrecruzados rumos das civilizações, coube a Portugal assumir.

Derradeiro capítulo, na noite, esperando, e Joel Serrão cita o poema “Prece” do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, que assim começa:

“Senhor, a noite veio e a alma é vil./Tanta foi a tormenta e a vontade!/Restam-nos hoje, no silêncio hostil,/o mar universal e a saudade”

Depois de se viajar há cinco séculos pelas sete partidas do mundo, regressava-se a casa, acabavam-se os Brasis e as Áfricas. E Joel Serrão volta a questionar:

“Valeu a pena ter esse povo partido, há séculos, para as terras de além-mar? Em boa verdade, não há resposta pertinente para tal pergunta, destituída de sentido em termos de compreensão histórica. O que importa, isso sim é desmontar, criticamente, os mecanismos de toda a ordem – desde os socioeconómicos aos mentais e culturais – que condicionaram dado trajeto histórico. É que só é possível enterrar o passado compreendendo-o e explicando-o; e tal tarefa, em grande parte ainda por levar a efeito, se exigem árduo trabalho e adequada preparação científica, não dependerá menos do projeto de futuro que, desde já, sejamos capazes de ir formulando, assumindo-o.”

E Joel Serrão tece considerações para as prioridades que entrevia, tem pouco sentido aqui as enunciar, passado meio século, ele põe como imperativo o desafio permanente na educação para termos um país de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. E cita em jeito de despedida os dois últimos versos do poema “Prece”:

“E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou de outra, mas que seja nossa”


Falta-nos, por último, uma referência ao historiador Hermann Kellenbenz e ao seu artigo intitulado “Aspetos histórico-económicos da expansão ultramarina portuguesa”.

Joel Serrão (ao centro) no quadro de Nikias Skapinakis, Tertúlia, 1960
Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute, por Veloso Salgado, pode ser visto no átrio da Sociedade de Geografia de Lisboa
Terreiro do Paço e a Ribeira das Naus, imagem anterior ao terramoto
Barra de ouro com origem no Brasil, século XVIII
Prisioneiros de guerra portugueses, Primeira Guerra Mundial, imagem dos arquivos alemães

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26393: Historiografia da presença portuguesa em África (461): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos em 1891, chegamos a 1892 (18) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
É o final da governação de Augusto Rogério Gonçalves dos Santos, irá entrar em funções Luís Vasconcelos e Sá. No acto de posse do novo governador, o secretário-geral interino, o capitão Passalagua, produz uma peça impressionante, não esconde o tumulto em que vive a província, as operações no Geba, as sequelas da guerra do Forreá, a necessidade de expulsar Mussa Moló, as hostilidades de Papéis, Balantas e Grumetes na ilha de Bissau; debelavam-se as sublevação, faziam-se acordos de paz, tudo era precário, o capitão Viriato Zeferino Passalagua dirá mesmo ao recém-chegado governador que ele está ao comando de uma província onde tem que combater e destruir um a um os obstáculos. E começa-se o ano de 1892 com uma espantosíssima concessão de terrenos a dois condes de apelido Buttler, concessões extensíssimas, espalhadas por todo o território, terão morrido à nascença, a vida das sociedades agrícolas e comerciais na Guiné, com exceções daquelas que irão prosperar como a Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, tiveram vida meteórica.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos em 1891, chegamos a 1892 (18)


Mário Beja Santos

Como se procurou sublinhar no texto anterior, o Governador Augusto Rogério Gonçalves dos Santos envolveu-se na operação a que chamou Guerra de Geba; no ano anterior houvera outro foco de incêndio, a Península de Bissau, hostilidades de Papéis, Balantas e Grumetes, fora debelada. Quanto à guerra de Bissau, o Governador tomara decisões: nomeou um oficial da classe dos capitães, conhecedor da ilha, Caetano Alberto da Costa Pessoa, tudo correu bem; a guerra de Geba envolveu lanchas canhoneiras a cooperar com a coluna de operações na circunscrição de Geba, sufocada a rebelião era louvado o capitão Zacarias de Sousa Lage pela dedicação, coragem, brio e valor militar e mérito com que dirigira as operações. E no rol dos louvores também apareceram civis:
“Tendo chegado ao meu conhecimento os serviços que a este Governo levaram diversos negociantes estabelecidos em Bissau, quando foi organizada a coluna de operações que devia bater os revoltosos na circunscrição do presídio de Geba, cujos serviços são dignos de ser tomados na maior consideração da sua natureza e importância, atendendo às circunstâncias em que foram prestados:
Hei por conveniente louvar os cidadãos seguintes:
Cidadãos franceses Gentil Maffrá e Benjamin Potin pelo oferecimento que fizeram como agentes da casa Blanchard & Companhia, de duas embarcações para transportarem tropas a Geba e não terem exigido frete por material que para ali foi transportado em embarcações diversas pertencentes à casa que representam;
Súbdito alemão Otto Schacht, como representante de Bernardo Soller; pelo oferecimento que fez de duas embarcações para conduzirem força e género a Geba, e duzentas libras de pólvora para auxiliares, e por ter gratuitamente posto à disposição do comandante militar de Bissau uma embarcação para descarregar carvão de pedra que estava a bordo do vapor Bissau;
José Sebastião de Sena, súbdito português, por ter oferecido um bote para transportar arroz para os auxiliares em Geba – e uma chalupa para transportar a esta capital uma força vinda do Geba;
Ricardo Barbosa Vicente, súbdito português, por ter oferecido uma chalupa para o desembarque do carvão de pedra que estava a bordo do vapor da empresa nacional.”


A 22 de junho de 1891 mudamos de Governador, agora é o tenente-coronel Luís Vasconcelos e Sá, toma posse com pompa e circunstância, recebe as laudes do secretário-geral interino, capitão Zeferino Passalagua. Avisa o novo Governador que a área da província é grande, porém a esfera de ação do domínio português é limitada. Fora dos pontos por nós ocupados e além de uma faixa com a escassa largura de 120 metros em volta dos muros ou das paliçadas que delimitam esses escassos pontos da presença portuguesa, a nossa autoridade e o nosso prestígio são iguais a zero, diz o secretário-geral interino. Entende não dever dizer na cerimónia as causas do abatimento, o novo Governador irá ler os documentos oficiais, limita-se a dizer a quem chega que os diversos selvagens que povoam esta região não conhecem o deslumbramento da civilização e do progresso – "são hoje tão selvagens como há quatro séculos quando ocupámos esta colónia; enquanto não conseguirmos civilizá-los, não conseguirmos também que o nosso prestígio se alevante e a nossa autoridade seja conhecida e respeitada.” E vai continuando a dizer verdades como esta: A não ser na ilha de Bissau, em que a nossa autoridade é respeitada, nos outros pontos é permanente o desassossego. Refere o que se passou no Forreá, que em Buba é preciso uma vigilância permanente, o presídio de Geba também não goza de tranquilidade e na sua circunscrição há permanente rebelião; o secretário-geral interino não esquece os dissabores provocados por Mussa Moló. E termina assim a sua alocução:
“Vem Vossa Excelência governar-me a província onde tem que combater e destruir um a um os obstáculos, os atritos e as dificuldades que a todo o momento hão de surgir, para prejudicar todos os projetos que Vossa Excelência conceber para bem administrar esta colónia; e quanto mais sublimes e grandiosos forem esses projetos, maior será a luta em que Vossa Excelência terá de empenhar-se para conseguir alevantar a província do marasmo, que a definha.”

Início de novo ano, há estrangeiros a cobiçar as terras da Guiné. No Boletim Official n.º 2, de 9 de janeiro, vemos que o Governo está pronto a cedências, através da Direção Geral do Ultramar, do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar. Recorda-se que há consideráveis tratos de terrenos incultos na Guiné, completamente desaproveitados pelos indígenas, são necessários modernos processos agrícolas que assegurem um rápido desenvolvimento moral e intelectual dos habitantes, e depois de vários consideramos decreta-se a concessão para explorações agrícolas cruciais à companhia ou sociedade que for legalmente constituídas pelos súbditos franceses, conde Buttler e conde Raoul Buttler, os terrenos públicos baldios, e são citados territórios manjacos, parte de território das Balantas e Brames situados entre a margem esquerda do rio Cacheu, terrenos na margem direita do rio Geba perto de S. Belchior, territórios limitados a Oeste pelo mar, ao Sul pela margem direita do rio Cacheu até Farim, ao Norte pela fronteira franco-portuguesa… Tudo isto é impressionante, vai até à ilha das Cobras ao Norte de Bolama e às ilhas Caraxe, Caravela e Galinhas. Reza o decreto que ficavam expressamente excluídos da concessão todos os terrenos ocupados e plantados pelo gentio, a companhia devia estar legalmente constituída dentro de um ano, ficando para todos os efeitos sujeita às leis portuguesas. E dizem-se quais as obrigações da sociedade concessionária: explorar agricolamente os terrenos da sua concessão e introduzir novas culturas, até hoje não empreendidas na Guiné; a fazer a exploração vegetal, a fazer todas as obras necessárias para a canalização e navegabilidade do rio Corubal; a ceder ao Governo português os terrenos que forem precisos para a construção de caminhos de ferro, estradas, fortificações, alfândegas ou quaisquer outras obras ou estabelecimentos do Estado. Ao que se sabe, nenhuma concessão foi criada.

Morança do Régulo de Chulame. Manjacos. Região de Cacheu, por Fernando Schiappa de Campos, 1959. Imagem da exposição Habitats tradicionais da Guiné-Bissau¸ que decorreu no Museu Nacional da História Natural e da Ciência, em 2018
Fortaleza de São José da Amura, na atualidade
Todos ao aeroporto de Bolama, é um modesto campo de aviação, vão chegar os aviadores portugueses, 2 de abril de 1925

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 8 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26362: Historiografia da presença portuguesa em África (460): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, começou a última década do século XIX (17) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26373: Notas de leitura (1763): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (9) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Achei por bem fazer uma recapitulação dos acontecimentos ocorridos na Guiné entre 1910 (chegada de Carlos Pereira, 1.º governador da República) até ao fim das operações de Teixeira Pinto, depois dos seus êxitos na ilha de Bissau. É um dos momentos mais controversos da história desta colónia, não aparecem documentos que explicitamente culpabilizem dirigentes da Liga Guineense em termos de agitarem os Grumetes e os Papéis contra a política do governador; o defensor dos acusados, o Dr. Loff de Vasconcelos, irá escrever um opúsculo arrasador, dando Teixeira Pinto como conivente com os crimes e pilhagens praticados pelos irregulares de Abdul Indjai em toda a ilha; como sabemos, governadores irão, a partir da década de 1920, procurar a glorificação do capitão Teixeira Pinto, e há qualquer coisa de escandaloso em não dar voz aos argumentos expostos por Loff de Vasconcelos. E como acontece nestas cenas de comédia à portuguesa, os acusados, resolvido a contento do Governo o problema da ilha de Bissau, foram libertos, embora silenciados pela História. Somos verdadeiramente peritos nestas lavagens, deixamos a verdade a bom recato.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Oficial, até ao virar do século e depois (9)

Mário Beja Santos

Convém proceder a uma recapitulação dos acontecimentos ocorridos entre 1910 e 1913. Carlos Pereira é o 1.º Governador da República, envia um relatório de extrema importância o Ministro da Marinha e Ultramar, surgiu a Liga Guineense que mostra propósitos de fazer propaganda de instrução e promete trabalhar para o progresso e desenvolvimento da Guiné Portuguesa; há desacatos em Cacheu, a organização militar e a Marinha sofreram alterações, foram demolidas as muralhas de Bissau e chega um novo Chefe do Estado-Maior, o Capitão João Teixeira Pinto, depois de observar o terreno lança-se em operações no Oio; a circunscrição de Geba, então qualquer coisa como um sexto do território da Guiné, o administrador Vasco Calvet de Magalhães, que também apoiou as operações de Teixeira Pinto, procede a um conjunto de obras, com destaque para a estrada de Bafatá para Bambadinca; é tempo de concessões, surgiu o entusiasmo pela agricultura, mesmo gente da classe média aboletada em Bissau ou Bolama quer ter a sua propriedade no campo; começam as acusações a um colaborador direito de Teixeira Pinto, Abdul Indjai; segue-se o estranho caso da nomeação de Andrade Sequeira para governador para substituir Carlos Pereira e a sua rejeição pelo Senado; entretanto, Teixeira Pinto é enviado a Cacine, onde houvera sublevação, faz-se acompanhar por centenas de auxiliares de Abdul Indjai; parecendo que ficara pacificado o território da Costa de Baixo, ocorre em fevereiro de 1914 um acontecimento de extrema gravidade, que irá originar novas operações militares. O alferes Manuel Pedro tinha saído de Porto Mansoa com o pelotão de polícia rural do seu comando, foi atacado por Balantas, o alferes morre bem como três cabos. Teixeira Pinto segue para Bissorã e Mansoa, teve que alterar os seus planos, volta à circunscrição de Cacheu a vim de submeter aqueles povos. Conhecedor da morte do alferes Pedro avança em direção a Basserel, é apoiado pela lancha canhoneira Flecha, depois de atravessar uma mata serradíssima, a coluna encontra a paliçada que defendia a tabanca, a coluna foi atacada pelos Manjacos, segue-se um fogo intensíssimo, os Manjacos têm bastantes mortos, e a coluna sofreu também seis mortos.

Tem bastante importância o relatório que Teixeira Pinto enviou a Andrade Sequeira, chama a atenção para a insuficiência das guarnições, estas careciam, todas somadas de 760 soldados. Teixeira Pinto escolhe novos régulos para a Costa de Baixo, e diz ao governador que o problema fulcral era a educação do gentio. Antes de parir, Andrade Sequeira nomeara Abdul Indjai tenente de 2.ª linha. Em maio de 1914, chega novo governador, Josué de Oliveira Duque, que prontamente decide uma operação para castigar os Balantas, de novo o comando da coluna é confiado a Teixeira Pinto. Este tece um plano de seguir para Bula, aí concentraria as forças, passaria até Bissorã e daí para Porto Mansoa; numa segunda fase, pensa passar para a margem esquerda do rio Mansoa e bater todos os Balantas entre este rio e o de Geba, até ao Impernal, ocupando Nhacra onde ficaria estabelecido o posto militar.

Teixeira Pinto para com 600 irregulares, chega a Binar, marcha em direção a Paxe, é, entretanto, atacado, mas o inimigo repelido, destrói depois várias povoações e regressa a Binar. Os rebeldes não desarmam, mas são repelidos pelas forças de Abdul. A força obtém a ajuda de Mancanhas como carregadores. E chegam notícias de que os Balantas estão a fazer uma grande reunião, o que se revela verdade. Teixeira Pinto vai agindo em três frentes, o inimigo vê-se forçado a retirar, irá sofrer muito com o fogo das canhoneiras. Encurtando razões, nos dias seguintes os Balantas atacam, sem êxito. Chegou a hora das negociações. Mas vai começar a segunda fase das operações na margem esquerda do rio Mansoa. Teixeira Pinto regressa a Bolama, havia que tratar da ocupação militar dos territórios batidos, faltava apenas bater a região dos Papéis de Bissau, Teixeira Pinto mantém-se na Guiné até outubro e depois segue para Lisboa, mas logo em novembro é determinado que regressa à Guiné para servir numa nova comissão. Abdul Indjai dá que falar, veio de Lisboa em missão de inspeção extraordinária como inspetor da fazenda das colónias, pede informações ao governador Oliveira Duque e a Teixeira Pinto, este parece tomar partido a favor de Abdul, o governador Josué Duque parte e chega Andrade Sequeira. A missão que viera de Lisboa emitiu o parecer de que o Oio devia ser desanexado e ficar como comando militar independente. Teixeira Pinto vai sempre defendendo Abdul, dizendo que este sofria o ódio do administrador da circunscrição de Cacheu.

Regressado de Lisboa, é preparada a operação na ilha de Bissau. O que se passa antes das operações ainda não está devidamente claro, os dirigentes da Liga Guineense tudo fazem para que não se empregue a força das armas, afirmam que os Grumetes e os Papéis se irão submeter e entregar as armas, apela-se mesmo ao ministro das colónias para evitar a campanha, afirma-se que os habitantes da ilha de Bissau se comprometiam a pagar os impostos que legalmente fossem devidos. Desenvolve-se, entretanto, uma campanha de ameaças e de intrigas entre Abdul e outros chefes de guerra, como Mamadu Sissé. O governador está do lado de Teixeira Pinto, é a favor das operações, alega a falta de cumprimento de todas as promessas feitas, competia ao ministro ordenar a cessão dos preparativos ao mandar executar as operações, o ministro limita-se a deixar ao critério do governador a resolução final. O governador reúne o conselho administrativo da província que unanimemente apoia as operações, assim estas se vão desenrolar, estão amplamente documentadas, é, no entretanto, que se dá a prisão de alegados responsáveis pela resistência dos Grumetes e Papéis, gente que fazia parte da Liga Guineense, Oliveira Duque procede à sua dissolução, responsabiliza-a pelo estado de permanente hostilidade por parte dos indígenas de Bissau.

É aqui que Armando Tavares da Silva abre um parenteses para recordar o movimento de 14 de maio de 1915, um conflito ocorrera entre o Governo e boa parte das Forças Armadas, mas as causas reais residiam na oposição do Exército na entrada de Portugal na guerra. Na madrugada de 19 para 20 de janeiro de 1915, um grupo de oficiais revolta-se reclamando o regresso dos oficiais transferidos às suas unidades de origem. Dirigem-se para a Presidência da República, são travados no caminho, protestam entregando as suas espadas, sendo seguidamente presos. Segue-se o movimento revolucionário de 14 de maio, que se irá estender por todo o país. João Chagas, que era embaixador em Paris, é chamado para formar Governo, mas pouco depois de entrar em Portugal sofre um atentado, ficando gravemente ferido. Peripécias atrás de peripécias, em junho Norton de Matos é ministro das Colónias, nomeia-se novamente Andrade Sequeira para governador da Guiné, toma posse em 25 de agosto de 1915. Vão agora aparecer as acusações contra Teixeira Pinto.


Armando Tavares da Silva
Vista das instalações fabris da Sociedade Comercial Ultramarina, Casa Comum/Fundação Mário Soares
Navio Alger carregado de madeira, Casa Comum/Fundação Mário Soares
Em Bissorã, festa com dança pela captura de armamento ao PAIG, pela CART 1525, na Operação RUA, no dia 01/02/1967, e no dia 3, nos arredores de Bissorã. Apreensão importante que motivou a deslocação àquela Vila do Governador, General Arnaldo Schulz. Imagem retirada do historial da CART 1525, com a devida vénia

(continua)

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Notas do editor:

Vd. post de 3 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26342: Notas de leitura (1760): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (8) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 9 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26365 Notas de leitura (1762): "Amílcar Cabral e os cuidados de saúde durante a luta de libertação": apresentação do prof Joop de Song, Simpósio Internacional "Amílcar Cabral: Um Património Nacional e Universal", Praia, Cabo Verde, 9 de setembro de 2024

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26126: Historiografia da presença portuguesa em África (451): o tecido económico da província em 1951, visto através dos anúncios publicados no suplemento, "dedicado ao Ultramar Português" (218 pp., no total), do "Diário Popular", de 20/10/1961



Barbosas & Cia: Import-export... com sede em Bissau. Representava sobretudo duas marcas norte-americanas, a General Eletric e a Studebaker


Ed. Guedes Lda era outro peso pesado do comércio local, já presente em Bolama quando esta era a capital... Tinha sucursais pelo território... "Cetió";  mais que provável erro tipográfico, deve ler-se Catió... Tchequal também deve ser gralha, é topónimo que não existe. Banta El deve ser Madina Bantael, entre Sonaco e  Sare Bacar (esta já na fronteira  com o  Senegal)... Chegava a Orango, a ilha do arquipélago dos Bijagós mas afastada do continente,

A nossa já conhecida  empresa francesa, a NOSOCO, onde trabalhou o nosso camarada Mário Dias... Tinha instalações em Bissau, Bolama,  Bafatá, Binta, Bissorã e Olossato. Tinha o exclusivo, para a Guiné, de marcas prestigiadas como a Shell, Phillips,  Electrolux, Frigelux, Dunlop...


SCOA: outra empresa de import-export, de origgm francesa, com sucursais em Bafatá, Bissorã, Bolama, Sonaco e Farim... Representava uma série de marcas (camiões, automovéis, eletrodomésticos, motores marítimos, cerveja alemã) e também companhias de navegação... Curioso: não estava representada na capital...



Enpresa de import-export e comércio geral, estava ligada ao BNU (Banco Nacional Ultramarino). e cobria praticamente todo o território, com  exceção do Nordeste (Gabu); Bafatá, Sonaco, Contuboel, Teixeira Pinto, Bissorã, Bolama, Bijagós, Chugué, Cabochanque,  Cadique, Cafine, Salancaur, Cabedu, Bedanda, Cacine, Brandão (seria na ilha do Como, a casa Brandão ?)...


O Fouad Faur, sírio-libanês, tinha sede em Bafatá, com "feitorias em Piche, Paunca, Bajocunda ("Bajicunda") e Bambadinca


Outro comerciante de origem sírio-libanesa, com sucursais na África Ocidental Francesa (Dacar e Coldá) e na Guiné Portuguesa (Mansoa, Mansabá, Xime, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Sonaco, Nova Lamego, Pecixe, Buba, Campeane, Cacine, Gadamael, Catió)



Foi a partir deste anúncio de 1956, que descobrimos o acrónimo ASCO (endereço telegráfico da empresa) (*)


Outro sírio-libanês, Mamud Eluar & Cia., com "sucursais em toda a província da Guiné"... Os comerciantes, de origtem sírio-libanesa, não eram mais do que uma centena na 1ª metade da década de 1920. O José Gardete Correia uma empresa de uma família prestigiada, com estabelecimentos em Bissorã. Olossato e Encheia.




Francisco Paulo, uma empresa em nome inmdividual, com estabelecimento em Bafatá e "feitorias" em  Xitole ("Chitoli"), Sara (Gabu), Baca (Sarde Bacar ?), Paunca, Bajocunda ("Bajicunda"), Cabuca ("Caboca"), Boé ("Mandina do Boé).  O Fausto da Silva Teixeira é o único industrial que aparece nesta amostra, e é já nosso conhecido (foi deportado.


João Batista Pinheiro & Irmão: com sede em Bafatá, e sucursais em Bussau, Buruntuna, Bajicunda (sic), Pirada, Paunca, Piche e... Sama  (deve ser é Sara, Gabú, presume-ser que seja gralha tipográfica, não há povoação com esse nome). O único anúncio da área da restauração e hotelaria é do Pensão Restaurante Bafatá, de Judite Teixeira Quaresma da Costa.



A OMES, com um grande currículo de obras de engenharia na Metrópole e  em Angola, tinha na Guiné, em 1951, duas obras em fase de conclusão: a ponte-cais de Bissau e a ponte de Ensalma


1. Estes anúncios refletem inegavelmente  o clima de relativa paz e prosperidade económica que a província começou a viver, no pós II Guerra Mundial,  com o governador Sarmento Rodrigues (1945-1950).

Curi0samente, em 1951, só há uma anúncio de um industrial (com exceção da OMES, que era uma empresa de engenharia e obras públicas, com sede em Lisboa). Referimo-nos ao madeireiro e antigo deportado Fausto Teixeira da Silva.

Ainda estamos longe dos trágicos acontecimentos de Angola, no princípio de 1961, que não deixaram de ter repercussões nas outros territórios ultramarinos protugueses,. incluindo a Guiné: loigo a partir de 1961/62, parte dos comerciantes locais  (cabo-verdianos, metropolitanos e sírio-libaneses) acabaram  por se retirar das zonas mais isoladas do interior, e fixaram-se em Bissau ou regressaram  mesmo à metrópole...

Os sírio-libaneses, que se começaram a radicar no território a partir de 1910, alguns  acabaram por ligar-se, pelo casamento, a famílias portuguesas... Inicialmente não eram, porém, bem vistos pela concorrência nem até pelas autoridades locais, Por outro lado, em 1974, todos já teriam a nacionalidade portuguesa...Mas parte desta comunidade optou por ficar no novo país lusófono, a Guiné-Bissau.

Estes anúncios acima publicados fazem parte de um suplemento, "dedicado ao ultramar portuguès", que integrou a edição do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951. São em menor número dos que seráo  publicados, mais tarde,  na revista "Turismo", edição de janeiro/fevereiro de 1956 )(ano XVIII, 2ª série, nº 2,  número temático dedicado à Guiné), e reproduzdos em  tempos no nosso blogue (em dez postes, com material fornecido pelo nosso saud0so camarada Mário Vasconcelosl, 1045-2'17) (**)

Na amostra de 1951, verificamos que  todos os anunciantes  se dedicavam ao "comércio geral: compra e venda de produtos da província" e alguns ao "!import-export#", a começar pelas empresas francesas, a NOSOCO e a SCOA... Mas também as portuguesas, Barbosas & Cia, Ed. Guedes Lda, Sociedade Comercial Ultramarina, SARL.

O que havia para exportar ? Muito pouco, alguns produtos agrícolas e matérias-primas: arroz, oleaginosas (amendoim, coconote, óleo de palma), e pouco mais...  E importava-se tudo, da cerveja às viaturas automóveis... Tal como hoje, agora na Guiné-Bissau (só que o amendoim foi substituído pelo caju.)

Alguns valores: em 1950, a colónia tinha exportado c. de 118 mil toneladas, e importado pouco mais de 128 mil... Os cinco produtos mais exportados eram  (com base nas médias anuais): 

  • o amendoim (61,0%), 
  • o coconote (26,6%), 
  • o arroz (4,1%), 
  • o óleo de palma (1,7%) 
  • e os couros (0,8%)...  

Por outro lado, na década de 40 (1941-1950), as importações passavam de 49 mil contos para 128 mil (um aumento de 260%). As exportações, por sua vez,  passavam, no mesmo período, de  65 mil para 118 mil contos (um aumento de 180%).

Em outubro de 1951 já se escrevia-se "província" e não "colónia", com a revogaçãpo do "Acto Colonial" e a revisão da Constituição (Lei nº 2048, de 11 de junho de 1951).   Mas a grafia dos topónimos ainda não era respeitada: vejam-se grafias como Bajicunda, Pitche, Contubo El,

Em suma, estes anúncios tem hoje algum interesse documental pelas inesperadas informações que nos trazem de gentes e de lugares que conhececmos e que depois de 1961 vão ser varridos pela guerra, oficial ou oficiosamente iniciada em  Tite, região de Quínara, em 23 de janeiro de 1963...

É interessante assinalar a ausência de uma grande casa como a  Gouveia  neste pequeno mostruário das "forças vivas" da província, cujo tecido económico parece ser  constituída por apenas pela Ultramarina, ligada ao BNU, duas empresas francesas de import-export, a SCOA e a NOSOCO, e sobretudo por pequenos comerciantes e empresários, de origem metropolitana, cabo-verdiana e sírio-libanesa. (***)
 
Esta edição do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951 (e não 1961, como vem escrito por lapso , na Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa, a quem agradecemos a cortesia).  É uma raridade bibliográfica: o suplemento dedicado ao Ultramar tem 218 páginas (22 dedicadas à Guiné, pp. 45-66).  Disponível  aqui em formato digital. 

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