1. Mensagem de José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 10 de Julho de 2009:Carlos
Aqui vai mais um pedaço de estórias, com a particularidade de se referirem à transferência da Companhia para Bajocunda.
Um abraço tabancal.
José Dinis
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679
O MEU REGRESSO À GUINÉ APÓS AS FÉRIAS NA METRÓPOLE
A viagem de regresso à Guiné aconteceu com normalidade. O avião aterrou em Bissau por entre as cores, castanha da terra de barro quente, e o verde da profusa vegetação que a cobria. Dirigi-me ao Grande Hotel onde novamente me instalei. Queria folgar até chegar à guerra.
No dia seguinte encontrei dois camaradas do Leste, que me referiram haver uma espécie de perseguição à malta do mato para preenchimento de serviços na cidade. Ora, se o interesse em Bissau já era relativo, sentirmo-nos caçados para entrar de serviço era uma forma de desgraça a evitar sobre maneira. Nestes considerandos alguém alvitrou abalarmos para Bafatá. Por mim tudo bem, procuraria alojamento no Esquadrão de Cavalaria e daí chegaria facilmente a Piche. Depois abordámos a questão da ida. Via aérea, segundo eles, seria difícil ou impossível.
Pelo rio até ao Xime também não se afigurava boa solução. Decidimo-nos pelo aluguer de uma avioneta de quatro lugares, piloto incluído, por menos de um conto a cada, piloto excluído, naturalmente.
Entrámos no aparelho e sentei-me na frente, ao lado do piloto. Atrás, os bacanos que me convenceram. Era com curiosidade que sobrevoava o território, com a preponderante verde da vegetação em todos os lugares não alagados. Palmares, floresta e bolanha desfilavam a meus olhos. Os outros passageiros começaram a fumar. Nada de especial. Naquele tempo não constituía preocupação. Falávamos ocasionalmente. O piloto fazia movimentos suaves na manutenção da aeronave segundo a rota. Até que um dos fumadores quis atirar fora a beata, e sem atinar com a melhor maneira de se comportar, abriu a porta para aquele efeito. Essa atitude provocou algum desequilíbrio do avião, e o piloto começou a barafustar. A porta não fechava. Inclinando-se sobre mim, o piloto tentava fechá-la. Sem sucesso. Os três passageiros calados.
Provavelmente algum rezava. Perante o insucesso, o piloto picou o aparelho, novamente inclinado sobre mim, tentava agarrar a forta e fechá-la. Eu via as palmeiras a subirem na minha direcção, e com toda a pressa, pelo que passei a dar-lhe cotoveladas para endireitar a avioneta, aflito, imaginando um desfecho desgraçado. Tarde, muito tarde, à beira de um ataque de nervos, sem saber como proceder sobre o equipamento de maneira a fazer subir o avião, mas a acotovelar o piloto, este fez a manobra necessária para inverter o sentido, de descendente na vertical, para ascendente, coisa que me deixou muito aliviado. No estreito banco de trás, os fumadores permaneciam calados, mas imagino que sentiam o mesmo tefe-tefe que eu.
Lá no alto permanecia o problema da porta aberta e o avião instável.
Esta situação deve ter induzido o piloto à repetição da manobra, pelo que seguiu-se uma descida a pique, enquanto nos ofendia, até que, já perto do solo, logrou fechar a porta malvada, e subiu nos ares com o ar da pessoa mais mal tratada deste mundo.
Sãos e salvos aterrámos em Bafatá. O pessoal mostrava-se consternado. O piloto, então, tomou a iniciativa: pediu a massa e baldou-se com maus modos. Eu pirei-me para o Esquadrão, e a infeliz sociedade desfez-se ali, sob o sol tórrido do Leste.
Em questões de aeronáutica, como em muitas outras, sou um zero absoluto, mas fiquei desconfiado que ele teatralizou, quis acagaçar-nos. E essa foi a minha grande experiência em máquina voadora.
Na cidade fui informado sobre a transferência da Companhia de Piche para Bajocunda, e iniciei o caminho logo na primeira oportunidade.
Afinal não parodiei no regresso à Guiné. No aquartelamento era o caos.
Três Companhias, um Pelotão de Caçadores Nativos - o 65, outro de Artilharia, Este pessoal todo nas instalações antes ocupadas por uma Companhia e o Pelotão de artilheiros. Mas guerra é guerra. No refeitório como na messe havia turnos. O nosso pessoal estava a dormir em tendas de dois panos, e porque era época de chuvas, por vezes era o lagoaçal mal saíam dos colchões estendidos no chão. A mim valeu a experiência anterior e voltei a dormir na enfermaria, em género clandestino. A minha bagagem controlada pelo Zé Tito estava em condições.
Mas deram-me outras notícias desagradáveis.
Quando a 2679 chegou a Piche, os velhinhos aliviaram parte da bagagem do nosso pessoal, de tapa-chamas a artigos pessoais. Agora dera-se o inverso. A Companhia partia e os nossos quiseram ressarcir-se tendo decidido aliviar a bagagem dos piras para reposição dos stocks com que tinham arribado a África. Tão mal o fizeram que houve queixas sobre o gamanço, ainda o pessoal permanecia na localidade.
Erro de previsão, seguramente. Em resultado disso, houve revista às malas dos transmutantes. Aconteceu a chatice com um patife que me envergonha por ser meu homónimo e prestar-se a confusões. Ao abrir a mala, o nabo, tinha o material ainda alheio mesmo à vista, sobre as suas coisas.
Levou uma porrada, claro, provavelmente agravada por ter sido o único a deixar-se apanhar. Badalou-se sobre o assunto, e em Bajocunda já éramos temidos como marginais perigosos.
A segunda notícia desagradável resultou de um acto de guerra desencadeado pelo IN, que foi uma jornada de sorte para as NT.
Um belo dia, o Caco Baldé deslocou-se a Pirada que, entretanto, era elevada à condição de sede do COT-1 com um major a comandar. Talvez por inspiração especial que o ar fronteiriço deve ter provocado, o general mandou tapar as valas de defesa e protecção periférica, com o argumento psicolista de que era necessário desenvolver relações de boa vizinhança e paz.
Em Pirada também havia fartura de tropa. Para além da Companhia local, estavam, pelo menos, dois pelotões de páras, infantes açorianos e o pelotão de artilharia.
Uma noite, ainda cedo, o pessoal distraía-se com a projecção de um filme, quando foi dado o alarme, os turras tinham entrado em Pirada. Felizmente, aquela parte do IN não primou pela oportunidade, nem pela inteligência organizativa para o assalto, nem pela eficácia. Alguns ficaram pelas casas comerciais a consubstanciar roubos de mercadorias diversas, e, incrivelmente, não aconteceu quase nada. Parece até que se perderam uns dos outros movidos pela ganância oportunista. Mas constou-me que um pára feito prisioneiro, caminhava ameaçado pela arma que o turra lhe apontava, até que decidiu inverter a situação, voltou-se repentinamente, tratou mal o turra, e pôs-se ao fresco. Não cheguei a saber se o ComChefe o terá punido por traição à política estabelecida para criar raízes de paz.
Esta companhia de páras manteve-se na região por algum tempo, e com eles estabeleci simpáticas relações. Até me ensinaram a fechar as portas para dormir no mato. O pessoal instalava-se ao longo de um trilho e, a distância prudente, armadilhavam-se os extremos do dormitório. Quem viesse havia de dar sinal.
Recuando ao mês de Julho, a 2679 recebeu o novo capitão, logo epitetado de Trapinhos, em resultado da reunião de dois factores: o ar alucinado e um dos apelidos. Em verdade, mais parecia um desafortunado e amarfanhado centurião das legiões romanas, conforme os bonecos glosados nas aventuras do Asterix, olhar encovado, físico frágil e mal sustentado em ossatura delgada e saliente. Dificilmente parecia oriundo da Academia Militar. Conheci-o no meu regresso de férias em Bajocunda. Tratou-se de uma outra notícia desagradável na medida em que já se lhe referiam em termos depreciativos.
O "Trapinhos""A companhia começa então a consciencializar-se da sua difícil missão no sub-sector, não só devido à grande extensão dos seus limites iniciais (territoriais?), como também por ter de dividir as suas forças na protecção às duas auto-defesas da área (Tabassi e Amedalai) e do Destacamento de Copá" - in História da Unidade.
Nestas condições era imperioso um comandante com pulso, determinado e inteligente, face à exposição perante o IN, as populações, as desagradáveis acções de operacionalidade em condições que podiam sugerir favorecimentos, a necessária logística, enfim, com capacidade para harmonizar em condições de dificuldade. Não foi o que veio a acontecer.
Quanto ao Foxtrot, encontrei a malta bem disposta, e confiante demais, talvez por já conhecerem a geografia da zona e quererem mostrar à vontade de veteranos ao novo alferes.
Nota: psicolista, deriva de psicola s.f. termo que resulta da fusão de psicologia e Spinola, que significa uma acção psicológica de sedução ao IN ou às populações locais. Fora disto não tem significado e, naquele âmbito, muitas vezes não tinha sentido.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série, de 26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4588: História da CCAÇ 2679 (20): Férias na Metrópole em Junho de 1970 (José Manuel M. Dinis)

Guiné > Região do Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1965/66) > Convívio com a população da tabanca de Binta. Ao fundo, à esquerda, em tronco nú, e empunhando a máquina fotográfica, o Alf Mil Médico Barata, muito estimado pela população. Foto do José Eduardo Oliveira, 1965.



