Boa noite
Lá fora ouviam-se rebentamentos, ao longe, mas eram rebentamentos.
Olhei à minha volta e recostei-me no sofá. Estava em casa, no meu ambiente.
Os rebentamento cessaram. Devia ser o anúncio de alguma festa popular.
O computador por perto, deu-me a ideia de ir vasculhar um texto que se passou há 50 anos.
É mais um texto do livro, não editado, Refrega.
Aqui fica o registo do que se passou em 12, 13 e 14 de Agosto de 1961.
Bom resto de fim de semana, prolongado.
Um abraço
José Martins
DIA DA INFANTARIA
Já vai longe aquele dia 14 de Agosto de 1961...
Como acontecia naquela época, bastava estudar para se ser obrigado a pertencer à Mocidade Portuguesa, uma organização juvenil de carácter e âmbito nacional.
Já que eu, como estudante, era obrigado a pertencer à organização, o melhor era aproveitar e tirar o maior e melhor partido da situação.
Desde cursos, acampamentos, prática das mais variadas modalidades desportivas ou visitas culturais, tudo servia de escape, numa cidade do interior, onde as ofertas de diversão eram praticamente nulas
A guerra tinha começado há poucos meses em Angola e ninguém imaginava que aquele grupo de adolescentes seriam sérios candidatos a combatentes, uma vez que, na versão oficial, as nossa tropas somavam, em cada dia que passava, retumbantes vitórias sobre o inimigo, apesar das noticias que corriam “à boca pequena” indicarem que a situação era extremamente grave.
Foi o Cónego Carlos, Assistente Religioso da Ala de Leiria da Mocidade Portuguesa, que, no final de um encontro de graduados, naquela cidade, lançou a ideia: ir de Leiria a Fátima a pé, já que o dia 13 de Agosto de aproximava.
Depois do almoço do dia 12, o reverendo ancião saindo do Paço Episcopal, junto ao jardim da cidade e do largo das camionetas, colocando o seu chapéu de abas largas na cabeça, convidou-nos a segui-lo.
Atravessamos a cidade em duas longas filas, transportando as mochilas às costas, e, no nosso íntimo, a Fé que move montanhas. Passamos junto ao Monumento aos Mortos da Grande Guerra, à igreja do Espírito Santo, à Fonte Grande, ...
Para traz ficavam o Castelo, a Ermida de N. Sr.ª. da Encarnação, o Jardim-Escola João de Deus, para onde tinha ido aos quatro anos, a caminho da Cova da Iria.
Percorrendo os caminhos da serra, fomos saudando ou fomos saudados pelos habitantes das várias povoações por onde passávamos, ou, em várias parte do percurso, fazíamos grupo com os outros peregrinos.
Antes da noite cair, já tinha sido instalado o acampamento. Foi dali que partimos para participar nas cerimónias religiosas, que incluía a procissão das velas, durante a noite de doze para treze mas participaríamos, especialmente, nas cerimónias do dia seguinte, que, após a missa terminam com o Adeus à Virgem.
Ainda hoje, quando visito o Santuário, me recordo desta visita, e da água que transportada no meu cantil, matou a sede a muitos peregrinos.
Ao princípio da tarde, terminadas as cerimónias e desfeito o acampamento, fomos transportados em viaturas militares, rumo ao Campo Militar de S. Jorge, para o local onde, através de um monumento se invoca o local onde em 14 de Agosto de 1385 se travou a Batalha de Aljubarrota, entre o exército invasor castelhano e o exército português, comandado por D. João I e D. Nuno Álvares Pereira.
No local já se encontrava um destacamento militar. Nesse ano, as comemorações do Dia da Infantaria iniciavam-se com uma vigília naquele local e terminariam com uma homenagem na Sala do Capítulo do Mosteiro Santa Maria da Vitória, junto do túmulo do Soldado Desconhecido que representa todos os militares mortos na I Grande Guerra, em África e na França, e cujos corpos por lá ficaram.
Manhã cedo, levantamos o acampamento e percorremos, em marcha, a estrada que separa o Campo de S. Jorge do Mosteiro da Batalha.
Junto ao Mosteiro, já se encontrava um grupo de homens, de idade avançada, que cerravam fileiras junto a uma bandeira branca orlada a verde, tendo no centro sobre a Cruz de Cristo, que as caravelas ostentaram durante os descobrimentos, a Cruz de Guerra com a legenda – Liga dos Combatentes da Grande Guerra.
Um ex-combatente da Guerra do Ultramar com o Estandarte do Núcleo de Matosinhos da actual Liga dos Combatentes
Eram Combatentes. Eram alguns dos mesmos que, em 9 de Abril e a 11 de Novembro, se reuniam, ano após ano, junto aos muitos padrões erigidos em memória dos Combatentes da Grande Guerra, recordando aqueles que a guerra fez cair para sempre no campo de batalha, em nome de Portugal.
Muitos deles ostentavam no peito, com merecido orgulho, condecorações ganhas com mérito nos campos de batalha. Eles representavam duas gerações anteriores àquela a que os que acabavam de chegar pertenciam. Eles, os combatentes, ali firmes e aprumados, continuavam a honrar a sua pátria. Para eles foi o meu carinho e vai a minha saudade, como se fossem o meu próprio avô e os meus tios, que também por lá andaram.
Após o toque de apresentar armas ouviu-se o Hino Nacional. As bandeiras levantaram-se ao vento, descobriram-se as cabeças, prestaram-se as honras militares.
Hoje, muitos anos passados, nas datas comemorativas da Batalha de La Lys ou do Armistício, há muitos daqueles adolescentes, entre os quais me encontro, hoje já homens e veteranos de guerra, reunimo-nos junto aos Padrões de Guerra erigidos por todo o país, sob a mesma bandeira, homenageando os nossos antepassados e combatentes de todos as batalhas da nossa já longa História. Nós sabemos bem o que é servir a Pátria como Militares e como Combatentes.
04/JULHO/2000
(este texto pertence ao livro, não editado, com o título REFREGA, escrito como catarse a problemas surgidos com o PTSD)
____________
Notas de CV:
- Foto do Castelo de Leiria retirada de Lendas de Leiria, com a devida vénia
(*) Vd. poste de 14 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8670: Blogoterapia (185): Ageism ou a discriminação face à idade? (José Martins)
Vd. último poste da série de 14 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8669: Efemérides (54): 104.º aniversário de Miguel Torga (Felismina Costa)