Foto: © António Graça de Abreu (2010). Todos os direitos reservados
1. Que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, a gente já sabe. Ou melhor: é um trocadilho, uma das nossas boutades de caserna... Mesmo assim, a gente vai comprovando, uma vez por outra, a ver(aci)dade da nossa palavra... de ordem.
Eu, por exemplo, no dia 21 de abril de 2012, estava em Monte Real e fui lá encontrar três conterrâneos meus, lourinhanenses ou a residir na Lourinhã, e todos eles antigos camaradas de armas da Guiné: o Eduardo Jorge Ferreira, o João Marcelino e o Luís Mourato Oliveira. Só o Eduardo é que é, formalmente, membro da nossa Tabanca Grande.
Quanto ao João, já o tinha encontrado algures, em Oeiras, e falado sobre uma coincidência engraçada que nos une, para além da Guiné e da Lourinhã: os nossos pais estiveram na mesma altura, em 1941/43, como expedicionários, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, mobilizados pela mesma unidade, o RI 5, das Caldas da Rainha. E ele até me prometeu escrever sobre isso, para a série Meu Pai, Meu Velho, Meu Camarada.
Ele não é lourinhanse de nascimento, mas é de coração, vivendo em Fonte de Lima, é um homem afável, de espírito aberto, franco e brincalhão.
O Luís Mourato Oliveira, por sua vez, é filho de uma lourinhanse, e temos amigos comuns na Marteleira... (Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52 e teve dissabores, em agosto de 1974, com a malta da CCAÇ 21, em Bambadinca, do mesmo tipo que os do J. Casimiro Carvalho, em Paunca - enfim, uma história que eu espero que um dia destes nos conte, aqui, em público)...
Vem esta(s) história(s) a propósito de quê ?... No domingo seguinte, dia 22, de manhã, estou eu com a Alice, no Mercado da Lourinhã, à volta da fruta e do peixe, e quem é que eu encontro ? O jovial João Marcelino, fresco como uma alface, acompanhado de um amigo, que ele me apresenta nestes termos:
- António Andrade, de Angra do Heroísmo, somos como dois irmãos, eu vou a casa dele, ele vem à minha... Foi comandante da 35º de Comandos, esteve no CAOP1 com o António Graça de Abreu, em 1972... Foi capitão graduado. Podia ter ido ontem a Monte Real comigo, se não estivesse na ressaca de 4 implantes dentários... Mas hoje está melhor...
Conversa puxa conversa, lá falámos do livro do AGA, o Diário da Guiné. E logo o João Marcelino e o António Andrade aproveitaram para esclarecer que o número de mortos da 35ª CCmds no TO da Guiné não foram cinco mas apenas dois. O AGA já fora informado do lapso, tendo prometido corrigir a informação numa eventual 2ª edição...
Em homenagem ao João Marcelino e ao seu amigo e nosso camarada António Andrade - esperando que os dois um dia possam e queiram entrar para a nossa Tabanca Grande, pela porta principal - aqui vai o excerto do Diário da Guiné onde se fala de uma ida a Bula, em coluna, com malta da 35ª CCmds...
Com a devida vénia ao autor... (e, de certo modo também, uma maneira algo habilidosa de, "malgré lui", associar o AGA, nosso tabanqueiro de longa data e bom camarigo, às comemorações do nosso 8º aniversário). (LG)
Com a devida vénia ao autor... (e, de certo modo também, uma maneira algo habilidosa de, "malgré lui", associar o AGA, nosso tabanqueiro de longa data e bom camarigo, às comemorações do nosso 8º aniversário). (LG)
(...) Canchungo, 16 de Setembro de 1972
Meti os pezinhos ao caminho, estreei o camuflado e a minha espingarda, bala na câmara e aí fui eu, numa coluna com os Comandos, cerca de cinquenta homens com fitas de balas enroladas em volta do corpo, granadas, espingardas, metralhadoras, enfim não tínhamos o aspecto de quem ia para um piquenique. Avançámos na estrada de alcatrão para dentro da zona onde já há, ou pode haver, guerra a sério, onde os guerrilheiros se movimentam no TO da PU - ou seja Teatro de Operações da Província Ultramarina, - montam emboscadas, lutam contra esta tropa branca que lhes invadiu a terra.
O caminho era até Bula, quarenta quilómetros atravessando as aldeias e os aquartelamentos do Pelundo e Có, lugares onde já correu sangue inocente em abundância, onde matas e bolanhas foram retalhadas pelos instrumentos que matam pretos e brancos.
Os meus companheiros eram os homens que trazem um crachá vermelho e negro ao peito, a 35ª. Companhia de Comandos. São gente da minha fornada, mais corajosa e melhor preparada. Por isso, senti-me seguro e protegido. Viajei no primeiro jipe, à frente da coluna com o comandante da Companhia, conduzido pelo capitão miliciano António Andrade, um excelente rapaz de Angra do Heroísmo, meu companheiro de conversas por dentro da noite no bar do CAOP 1.
Os meus companheiros eram os homens que trazem um crachá vermelho e negro ao peito, a 35ª. Companhia de Comandos. São gente da minha fornada, mais corajosa e melhor preparada. Por isso, senti-me seguro e protegido. Viajei no primeiro jipe, à frente da coluna com o comandante da Companhia, conduzido pelo capitão miliciano António Andrade, um excelente rapaz de Angra do Heroísmo, meu companheiro de conversas por dentro da noite no bar do CAOP 1.
Não levámos divisas, se caíssemos debaixo de fogo éramos todos iguais. Mentalizei-me, pensei numa possível emboscada. Os primeiros tiros são os mais perigosos, depois é preciso rastejar rapidamente para fora da estrada e arranjar um lugar abrigado, não ao alcance do fogo do IN. No fundo, sou atirador de Infantaria e na Guiné começo a comprovar a justeza da frase que aprendi em Mafra, e que na altura me pareceu ridícula, um rotundo disparate: “Suor derramado na instrução é sangue poupado no campo de batalha”.
Correu tudo bem, almoçámos com os oficiais do quartel de Bula, o Andrade foi lá combinar uma operação com a tropa da região. Regressámos a meio da tarde. Eu adivinhava os guerrilheiros negros, de coração vermelho como nós, a espreitar na mata, mas não houve nenhum problema, sem contactos.
Estou a exagerar a perigosidade do itinerário até Bula. É esta a estrada que depois conduz a Bissau, há colunas militares com veículos civis todas as terças e sextas e é raríssimo registarem-se emboscadas. Mas nunca fiando. Regressámos em paz. Acompanhei os Comandos porque queria sair de Canchungo e conhecer. Fez-me bem.
Esta 35ª. Companhia de Comandos (#) já teve cinco mortos em combate (*). Vieram para a Guiné comandados pelo capitão António Ribeiro da Fonseca. Ora este homem, foi meu instrutor de táctica e guerrilha quando fiz a especialidade como Atirador na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Ele era então alferes Comando, conhecido como o “Bala Real” porque andava sempre com uma espingarda Kalashnikov que trouxera de Moçambique munida de balas reais. De vez em quando, tinha o gosto de disparar sobre as nossas cabeças para nos habituar às balas e fazer perder o medo. Nunca esqueci uma cena delirante.
Estávamos na Tapada a descansar após uma caminhada, perto do Portão Verde, do lado da Murgeira. Um dos cadetes do pelotão foi urinar e plantou-se diante de um pinheiro. Rápido, o “Bala Real” pegou na espingarda, fez pontaria à pila do rapaz e, a mais de vinte metros, disparou. O moço que estava meio de costas a mijar para a árvore, não viu o gesto do alferes Comando mas ouviu o disparo e sentiu o impacto da bala no pinheiro, a centímetros da sua pila. Voltou-se para nós, ainda com a pila na mão, branco, a tremer. O “Bala Real” perguntou-lhe: “Veja lá se a bala furou ou não furou o pinheiro!...” Ele não conseguia ver coisa nenhuma mas era verdade, a bala tinha atravessado a árvore de lado a lado.
O capitão Ribeiro da Fonseca foi o primeiro comandante da 35ª. de Comandos que está connosco no CAOP 1. Em Janeiro, numa operação na Caboiana foi ferido com um estilhaço que lhe perfurou um braço, evacuaram-no para Portugal e já não voltou.
Mas deixou boa fama por aqui. Disse-me um furriel Comando que, com ele, atacavam o IN ao som de um trompete.(##)
O António Andrade, alferes miliciano com a melhor classificação de curso na 35ª, foi graduado em capitão e tem comandado a companhia, a contento de todos. (...)
___________
Notas do autor:
(#) Para uma história breve da 35ª. Companhia de Comandos, ver Resenha, 7º. Vol., tomo II, pag. 535.
(##) Sobre a carreira militar do capitão António Joaquim Ribeiro da Fonseca ver o seu depoimento em Os Últimos Guerreiros do Império, Amadora, Editora Erasmos, 1995, pp. 145-162.
Correu tudo bem, almoçámos com os oficiais do quartel de Bula, o Andrade foi lá combinar uma operação com a tropa da região. Regressámos a meio da tarde. Eu adivinhava os guerrilheiros negros, de coração vermelho como nós, a espreitar na mata, mas não houve nenhum problema, sem contactos.
Estou a exagerar a perigosidade do itinerário até Bula. É esta a estrada que depois conduz a Bissau, há colunas militares com veículos civis todas as terças e sextas e é raríssimo registarem-se emboscadas. Mas nunca fiando. Regressámos em paz. Acompanhei os Comandos porque queria sair de Canchungo e conhecer. Fez-me bem.
Esta 35ª. Companhia de Comandos (#) já teve cinco mortos em combate (*). Vieram para a Guiné comandados pelo capitão António Ribeiro da Fonseca. Ora este homem, foi meu instrutor de táctica e guerrilha quando fiz a especialidade como Atirador na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Ele era então alferes Comando, conhecido como o “Bala Real” porque andava sempre com uma espingarda Kalashnikov que trouxera de Moçambique munida de balas reais. De vez em quando, tinha o gosto de disparar sobre as nossas cabeças para nos habituar às balas e fazer perder o medo. Nunca esqueci uma cena delirante.
Estávamos na Tapada a descansar após uma caminhada, perto do Portão Verde, do lado da Murgeira. Um dos cadetes do pelotão foi urinar e plantou-se diante de um pinheiro. Rápido, o “Bala Real” pegou na espingarda, fez pontaria à pila do rapaz e, a mais de vinte metros, disparou. O moço que estava meio de costas a mijar para a árvore, não viu o gesto do alferes Comando mas ouviu o disparo e sentiu o impacto da bala no pinheiro, a centímetros da sua pila. Voltou-se para nós, ainda com a pila na mão, branco, a tremer. O “Bala Real” perguntou-lhe: “Veja lá se a bala furou ou não furou o pinheiro!...” Ele não conseguia ver coisa nenhuma mas era verdade, a bala tinha atravessado a árvore de lado a lado.
O capitão Ribeiro da Fonseca foi o primeiro comandante da 35ª. de Comandos que está connosco no CAOP 1. Em Janeiro, numa operação na Caboiana foi ferido com um estilhaço que lhe perfurou um braço, evacuaram-no para Portugal e já não voltou.
Mas deixou boa fama por aqui. Disse-me um furriel Comando que, com ele, atacavam o IN ao som de um trompete.(##)
O António Andrade, alferes miliciano com a melhor classificação de curso na 35ª, foi graduado em capitão e tem comandado a companhia, a contento de todos. (...)
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Notas do autor:
(#) Para uma história breve da 35ª. Companhia de Comandos, ver Resenha, 7º. Vol., tomo II, pag. 535.
(##) Sobre a carreira militar do capitão António Joaquim Ribeiro da Fonseca ver o seu depoimento em Os Últimos Guerreiros do Império, Amadora, Editora Erasmos, 1995, pp. 145-162.
Nota do editor:
Último poste da série > 30 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9681: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP 1, Canchungo, Mansoa e Cufaer, 1972/74) (13):_ Mansoa, 30 de Março de 1973: Faço hoje vinte e seis anos...