1. Em mensagem do dia 13 de Agosto de 2014, o nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), enviou-nos uma recensão ao livro de TCor Luís Ataíde Banazol, que versa o período revolucionário pós-25 de Abril de 1974.
Os "Capitães Generais" e os "Capitães políticos"
José Manuel Matos Dinis
Já existe no Blogue uma recensão sobre outra obra do mesmo autor, essa a debruçar-se sobre um imaginário da descolonização, ainda dava os primeiros e controversos sinais do que poderia significar para milhares de pessoas de passagem ou residentes na África "portuguesa".
Agora descobri o livro Os "Capitães Generais" e os "Capitães Políticos" do Tenente Coronel Luís Ataíde Banazol (Prelo Editora, Lisboa, 1976), entre as aquisições que faço em alfarrabistas. Esgota-se em 130 páginas, e transporta-nos para os idos de 76. Trata-se de um texto pessoalizado sobre meia-dúzia de personalidades relevantes do MFA, que, em geral, marcaram períodos do processo revolucionário durante os dois primeiros anos, e através daqueles retratos classifica os períodos então vividos, a partir de análises sarcásticas, que podem questionar os conteúdos de liberdade, democracia, justiça e progresso social, entre as diferentes qualificações que se pretendeu, e ainda se pretende, dar à iniciativa dos capitães.
Segundo Vasco Lourenço em "Avatar", o TCoronel Banazol apareceu numa reunião onde se discutiam requerimentos e processos reivindicativos, e por influência daquele oficial de mais alta patente, os capitães acabaram o encontro com a ideia revolucionária a efervescer. Depois disso, parece ter-se mantido afastado do Movimento, e em 1976, quando edita o presente título, já faz a análise crítica aos êxitos e insucessos da iniciativa revolucionária, dos equívocos, rivalidades e diferenças estabelecidas, que a conduziram a uma revolução "pequeno-burguesa" influenciada pelas actividades dos partidos, que evidenciaram a falta de união em torno de um sentido de orientação claro e unificador entre os militares da génese renovadora.
Logo de início aborda a questão motivadora do Movimento nos seguintes termos: "signo revolucionário decisivo e bem vincado que, como se verá, continuou a comandar todo o desencadear dos acontecimentos até vinte e cinco de Novembro, ponto final prático da conturbada descolonização, apenas catorze dias após a proclamação da independência de Angola. Assim, poder-se-á afirmar que o drama colonial é a via por onde tudo se escoa, como torrente impetuosa que arrasta consigo vidas e haveres, convicções e esperanças, corpos e almas, num torvelinho catastrófico sem paralelo na História de Portugal". E sobre o Programa do MFA ("na reunião de 5 de Março tinha sido assumido como essencial a elaboração de um programa político" - no Avatar) conclui que «estas "criações de condições", lançamentos de fundamentos, e a nível nacional, seriam coisas de entusiasmar, se fosse possível abstrair da existência "dos outros"... e "que se teve de enveredar pela traição ao programa do MFA"» no conjunto de considerandos políticos sobre o ultramar. Também abordou com clareza, crer que "pela primeira vez na História, os escalões combatentes provaram que poderiam decidir da guerra ou da paz, antecipando-se ou mesmo sobrepondo-se às decisões dos altos comandos", e no decurso da orgia revolucionária, também provaram que "poderiam ditar procedimentos a esses altos comandos, fazendo destes apenas coordenadores e procuradores, digamos, dos anseios de paz e de regresso à Pátria donde tinham partido, estrangulados pela angustia e pelo desespero. E é neste contexto que se torna impossível a execução de qualquer directiva superior, desde que ela esteja em desacordo ou de algum modo possa vir a condicionar as aspirações do fim da guerra e do regresso".
Ora, a tal "torrente" é facilmente identificada pela "sincronia destas tomadas de posição dos escalões combatentes em África com as reivindicações populares em Portugal... e as conquistas revolucionárias do campesinato e do proletariado levam o passo certo com a retirada sucessiva dos efectivos das frentes de combate", conjugação de actuações que hoje nos permitem ver com clareza que o poder caíra na rua, e tornara-se impossível dar algum nexo de governabilidade ao país.
O autor não refere, mas em simultâneo, Portugal confrontava-se com a perda dos rendimentos das colónias, com a fragilização ou destruição da capacidade produtiva na metrópole, com o esvaziamento financeiro, com a crise do petróleo, e com o surto inflacionista que as circunstâncias potenciavam. Atenuou a situação, o recurso às reservas financeiras acumuladas e alguma quantidade de ouro vendido, a que se sucedeu o primeiro pedido de assistência ao FMI, que impôs regras para sufoco da algazarra nas ruas. Era o inicio do controle sobre o "Poder Popular".
O autor identifica três fases para o período revolucionário, e em cada uma elege personalidades do MFA marcantes no respectivo desenvolvimento. Na primeira fase, de gaúdio e entrega do poder ao general Spínola, com manifestas divergências entre oficiais spinolistas e puristas da revolução, tornou-se "justo e necessário e impunha-se que um dos homens mais importantes da Revolução dos Capitães fosse utilizado para comandar uma força capaz de colocar Lisboa, principalmente, ao abrigo das surpresas revolucionárias", do que viria a resultar o PREC como oposição à acção de Spínola e em sintonia com o Poder Popular. Refere-se aos "capitães-generais", e a Otelo em primeiro lugar. A segunda fase é a dos "nove", depois dos SUV e da ocupação de quartéis, que ameaçaram novamente a estabilidade dos militares do quadro permanente, cujo corolário aconteceu em vinte e cinco de Novembro. O Documento dos Nove veio assim oferecer os princípios de equilíbrio necessários à consagração do regime democrático. Sentia-se que "a maioria dos portugueses o que quer é saúde e dinheiro", tendo em vista "a integração, como parente pobre, de uma Europa pretensamente rica", ideias muito propaladas pelos partidos ditos democráticos de feição ocidental que tinham criado tentáculos de influência nas Forças Armadas. E acrescenta numa breve análise: "Vai-se de vento em popa para um sistema pluralista, muito bem, agora sim, mas não se chegou a saber bem o que os capitães pretenderam com a Revolução, além de acabar-se com a guerra colonial.
Recapitulando: primeira fase avançada para obedecer à tormenta da convulsão descolonizadora; segunda fase, a fase de transição, que é a que se atravessa na hora em que se escrevem estas linhas, com a descolonização terminada e as tropas à braseira da família. Esta fase irá até Abril das eleições. Seguir-se-lhe-à a terceira fase, a legal, a da «reconstrução», onde não será admissível o «aventureirismo»,salvo se ele partir de forças eminentemente anticomunistas".
Apesar do pouco tempo decorrido desde o vinte e cinco de Abril até à edição em Junho de setenta e seis, o autor faz uma rara apreciação dos acontecimentos, independente de influências, e com o humor de observador inteligente. Acaba com algumas apreciações sobre alguns personagens da revolução, e só é pena não ter tido vontade ou oportunidade para se alongar com outros pormenores reveladores de muitas falácias e influências que ainda perduram como verdades incontestáveis.
Desejo-vos boas leituras.
JD
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13499: Notas de leitura (622): Trajectórias divergentes: Guiné-Bissau e Cabo Verde desde a Independência, na Revista "Relações Internacionais R:I", dirigida por Nuno Severiano Teixeira (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 17 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13508: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte IV: Nem bem com Deus nem com César, ou a dupla dificuldade de ser-se sacerdoite vestido de camuflado numa terra a ferro e fogo...
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 >
"Cerimónia militar em fevereiro de 1968, por ocasião da imposição à CART 1689 da Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, atribuída em julho de 1967. Edifício do comando. Presença de militares, civis da administração, correios e comerciantes locais.
"Da esquerda para a direita, (A) um militar, de camuflado que não consigo identificar; (B) de costas, o cap médico Morais; (C) o comandante, ten cor Abílio Santiago Cardoso; (D) quatro funcionários dos Correios e Administração; (E) o comerciantes Sr. José Saad [, libanês,] e filha; (F) o comerciante, Sr. Mota: (G) o comerciante Sr. Dantas e filha; (H) o comerciante Sr. Barros; (I) o electricista civil Jerónimo: (J) e, por fim, o alf mil capelão Horácio [Neto Fernandes]".
Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Catió - Vila > A igreja mandada edificar pelos missionários italisnos, entranto expulsos da zona, Guiné, no início da guerra...
Foto de Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados
1. Continuação da publicação do testemunho do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Horácio Fernandes.que foi alf mil capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69) (*)
[ Horácio Fernandes: foto à direita tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913].
Esse tstemunho é um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto: Papiro Editora, 2009, pp. 127-162). O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos (*). (LG)
O Horácio Fernandes vive há 4 décadas no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.
Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em ciências da educação, pela Univeridade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, (1995): Francisco Caboz: de angfélico ao trânsfuga, uma autobiografia (147 pp.) (A tese de dissertação, orientada pelo Prof Doutor Stephen R. Stoer, já falecido, está aqui disponível em formato pdf).
Nesta IV parte (pp. 143-148), o autor realta-nos a dupla dificuldade que era ser capelâo militar, aos olhos dos militares (e em especial dos furriéis e alferes milicianos, já mais afastados da prática religiosa), e ao mesmo tempo ser sacerdote católico, aos olhos dos civis, e em especial dos balantas cristianizados... A outra etnia predominahte em Catió eram os fulas, ilsmazizados. Os missionários italianos que estavam em Catió tinham sido explusos pelas autoridades portugueses no início da guerra.
Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (*). Tenho a autorização verbal do autor, dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre. Ele irá abandonar o sacerdócio ainda nop início dos anos 70, depois de regressar da Guiné e fazer uma curta experiência como capelão da marinha mercante aos serviço do Stella Maris.
Eu e o Horácio somos parentes, pertencemos ao clã Maçarico, de Ribamar, Lourinhã: a minha bisavó paterna e do seu bisavô paterno, nascidos por volta de 1860, eram irmãos. (LG)
Último poste da série < 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...
Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados
Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Catió - Vila > A igreja mandada edificar pelos missionários italisnos, entranto expulsos da zona, Guiné, no início da guerra...
Foto de Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados
1. Continuação da publicação do testemunho do nosso camarada, o grã-tabanqueiro Horácio Fernandes.que foi alf mil capelão no BART 1913 (Catió, 1967/69) (*)
[ Horácio Fernandes: foto à direita tirada pelo nosso saudoso Victor Condeço, 1943-2010, que foi fur mil mec armam, CCS/BART 1913].
Esse tstemunho é um excerto do seu livro autobiográfico, "Francisco Caboz; a construção e a desconstrução de um padre" (Porto: Papiro Editora, 2009, pp. 127-162). O livro já aqui foi objeto de recensão crítica por parte do nosso camarada Beja Santos (*). (LG)
O Horácio Fernandes vive há 4 décadas no Porto. Vestiu o hábito franciscano, tendo sido ordenado padre em 1959. Deixou o sacerdócio no início dos anos 70. É casado, tem 3 filhos. Está reformado da Inspeção Geral de Educação onde trabalhou 25 anos na zona norte. Em 2006 doutorou-se em ciências da educação pela Universidadfe de Salamanca, Espanha.
Francisco Caboz é o "alter ego" do Horácio Fermandes (n. 1935, Ribamar, Lourinhã). O livro começou por ser uma tese de dissertação de mestrado em ciências da educação, pela Univeridade do Porto, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, (1995): Francisco Caboz: de angfélico ao trânsfuga, uma autobiografia (147 pp.) (A tese de dissertação, orientada pelo Prof Doutor Stephen R. Stoer, já falecido, está aqui disponível em formato pdf).
Nesta IV parte (pp. 143-148), o autor realta-nos a dupla dificuldade que era ser capelâo militar, aos olhos dos militares (e em especial dos furriéis e alferes milicianos, já mais afastados da prática religiosa), e ao mesmo tempo ser sacerdote católico, aos olhos dos civis, e em especial dos balantas cristianizados... A outra etnia predominahte em Catió eram os fulas, ilsmazizados. Os missionários italianos que estavam em Catió tinham sido explusos pelas autoridades portugueses no início da guerra.
Foi o nosso camarada e amigo Alberto Branquinho quem descobriu o paradeiro do seu antigo capelão (*). Tenho a autorização verbal do autor, dada por altura do nosso reencontro, 50 anos depois da sua missa nova (em 15 de agosto de 1959, em Ribamar, sua terra natal), para reproduzir esta parte do livro, relativa à sua experiênciade como capelão militar na Guiné, muito marcante e decisiva para o seu futuro como homem e como padre. Ele irá abandonar o sacerdócio ainda nop início dos anos 70, depois de regressar da Guiné e fazer uma curta experiência como capelão da marinha mercante aos serviço do Stella Maris.
Eu e o Horácio somos parentes, pertencemos ao clã Maçarico, de Ribamar, Lourinhã: a minha bisavó paterna e do seu bisavô paterno, nascidos por volta de 1860, eram irmãos. (LG)
Nem bem com Deus nem César...
(Contnua)
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Nota do editor:
Último poste da série < 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...
Guiné 63/74 - P13507: Recortes de imprensa (69): O jornal Notícias De Cá e De Lá, na reportagem sobre os 128 do Concelho de Loures, cita o nosso Blogue (José Marcelino Martins)
1. Em mensagem do dia 13 de Agosto de 2014, o nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), enviou-nos um recorte do jornal Notícias De Cá e De Lá com uma reportagem da Comemoração dos 128 anos do Concelho de Loures, onde no parágrafo assinalado na imagem se faz referência ao nosso Blogue e ao Zé Martins.
Nota do editor
Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13497: Recortes de imprensa (68): Notícia sobre o lançamento do livro "O Corredor da Morte", do nosso camarada Mário Gaspar, no Jornal Apoiar
Clicar na imagem para ampliar
____________Nota do editor
Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13497: Recortes de imprensa (68): Notícia sobre o lançamento do livro "O Corredor da Morte", do nosso camarada Mário Gaspar, no Jornal Apoiar
Guiné 63/74 - P13506: Parabéns a você (771): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metraladora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13502: Parabéns a você (770): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
Nota do editor
Último poste da série de 16 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13502: Parabéns a você (770): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
sábado, 16 de agosto de 2014
Guiné 63/74 - P13505: Quem era, afinal, o cap art Carlos Borges de Figueiredo, cmdt da CART 2742 (Fajonquito, 1970/72), morto em 2/4/1972, num sangrento domingo de Páscoa? Bem como o infeliz sold Pedro José Aleixo de Almeida? (José Cortes / Luís Graça / Carlos 'Gomes' / Cherno Baldé / António Bernardo)
1. Uma das versões sobre a tragédia de Fajonquito, ocorrida no domingo de Páscoa, de 2 de abril de 1972, já aqui nos foi contada pelo José Cortes, ou melhor, foi-me contada de de viva voz, ao telefone, pelo José Cortes e reproduzida por mim (*).
Recorde-se que o José Corttes [, foto atual à direita], vive em Coimbra, trabalhou como técnico de manutenção nos SUCH [, Serviços de Utilização Comum dos Hospitais] e foi fur mil at inf Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74, a companhia que foi render a CART 2742 de que o cap art Carlos Borges de Figueiredo foi comandante até 2/4/1972.
Recorde-se que o José Corttes [, foto atual à direita], vive em Coimbra, trabalhou como técnico de manutenção nos SUCH [, Serviços de Utilização Comum dos Hospitais] e foi fur mil at inf Inf da CCAÇ 3549/BCAÇ 3884, Fajonquito, 1972/74, a companhia que foi render a CART 2742 de que o cap art Carlos Borges de Figueiredo foi comandante até 2/4/1972.
O José Cortes falou-me com emoção desses tempos da Guiné. Ele próprio tem um filho que foi paraquedista e esteve em missões de paz (por ex.,Timor, Bósnia). Mas, como muitos outros camaradas, queixa-se de que nem sempre a família tem pachorra para ouvir as suas recordações da Guiné. Uma das que está bem presente na sua memória é a da morte do capitão e mais três ou quatro militares da companhia (a CART 2742, Fajonquito, 1970/72) que eles foram render.
Recorde-se que a CART 2742, comandada pelo cap art Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo alf mil art Baltazar Gomes da Silva, era uma unidade orgânica do BART 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, tendo assumido a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, e vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972..
Recorde-se que a CART 2742, comandada pelo cap art Carlos Borges de Figueiredo e, posteriormente, pelo alf mil art Baltazar Gomes da Silva, era uma unidade orgânica do BART 2920, mobilizada em Penafiel no Regimento de Artilharia Ligeira n.º 5, tendo assumido a responsabilidade do subsector de Fajonquito, rendendo a CCaç 2436, em 13 de Agosto de 1970, e vindo a ser substituída pela CCaç 3549 em 21 de Maio de 1972..
O José Cortes tinha-me prometido contar essa história,k por escrito, mas só não o fez o fez por, alegadamente, ter "fraco jeito para a escrita". Aqui vai, pois, a sua versão oral (*):
(i) havia um soldado da CART 2742 que, uma vez terminada a comissão, queria ficar na Guiné como civil;
(ii) ao que parece o cap art Carlos Borges Figueiredo manifestou, desde logo, a sua firme oposição à ideia do soldado, de resto contrária a todo o bom senso e sobretudo ao RDM: ter-lhe ditro;: "se viesrte comigo, voltas comigo!";
(iii) em consequência, as relações entre o soldado da CART 2742 e o seu comandante tornaram-se conflituosas; neste contencioso, foi envolvido também o primeiro sargento;
(iv) a mulher do capitão havia mandado, da metrópole, "dez quilos de amêndoas" (sic) para distribuir pelo pessoal da companhia; a distribuição foi feita pelo próprio comandante, no refeitório, no domingo de Páscoa, 2 de Abril de 1972;
(v) quando chegou a vez do soldado em questão, o capitão terá passado à frente, num ato que aquele interpretou como de intolerável discriminação;
(vi) o soldado levantou-se, sem pedir a licença a ninguém, e saiu do refeitório; dirigiu-se ao seu abrigo (ou à sua caserna) e veio para a parada com "duas granadas de mão já descavilhadas", uma em cada mão (umna cena digna dos filmes do Faroeste);
(vii) foi direito à secretaria: o primeiro sargento ter-se-á apercebido, a tempo, das malévolas intenções do soldado, tendo-se posto a salvo em bom tempo;
(viii) no interior da secretaria, estavam o capitão, um alferes e um furriel; ninguém sabe o que se terá passado lá dentro; o soldado terá deixado cair as duas granadas, descavilhadas; o teto da secretaria foi pelos ares; lá dentro ficaram 4 cadáveres
(ix) mortos, em 2/4/1972, todos do Exército, por acidente (sic), constam os seguintes nomes, na lista dos Mortos do Ultramar da Liga dos Combatentes:
- Alcino Franco Jorge da Silva, fur mil;
- Carlos Borges de Figueiredo, cap art;
- José Fernando Rodrigues Félix, alf mil;
- Pedro José Aleixo de Almeida, sold básico.
(x) sabemos que o sold básico Pedro José Aleixo de Almeida era natural de Portel, em cujo cemitério local repousam os seus restos mortais; foi o protagonista desta trágica história (fonte: Portal Ultramar Terraweb > Os mortos em campanha do BART 2920, 1970/72);
(xi) por sua vez, o alf mil art op esp José Fernando Rodrigues Félix era de Moimenta da Beira em cujo cemitério local está sepultado:
(xii) o cap mil art Carlos Borges de Figueiredo era natural de Vila Pouca de Aguiar; a sua última morada era Meadela, Viana do Castelo, possivelmente a terra da sua esposa;
(xiii) por último, o fur mil Alcino Franco Jorge da Silva também era de op esp, sendo natural de Carcavelos. Cascais; está sepultado no cemitério de S. Domingos de Rana;
(xiv) não sabemos o que faziam os dois rangers na secretaria, possivelmente terão vindo em auxílio do capitão com a intenção de desarmar o militar, o sold básico Pedro José Aleixo de Almeida, que trazia consigo as duas granadas descavilhadas (ou só uma, segundo outras versões), pronto possivelmente para acaber com a sua vida e de quem mais se lhe atravessase no caminho;
(xv) o José Cortes fala em cinco mortos, mas tudo indica que sejam apenas os quatro que constam da lista da Liga dos Combatentes;
(xvi) li, em tempos, que o caso foi também utilizado pelo serviço de propaganda do PAIGC (nomeadamente pela "Maria Turra", da Rádio Libertação) para desmoralizar as tropas portuguesas: há um documento do PAIGC, no Arquivo Amílcar Cabral, no portal Casa Comum, desenvolvido pela Fundação Mário Soares (FMS), que faz referência ao sucedido, e e que de momento não consigo localizar;
(xvii) o facto de o insólito caso ter ocorrido em Fajonquito, na fronteira com o Senegal, significa que foi de imediato conhecido da população local, das autoridades do Senegal e do PAIGC; o nosso Cherno Baldé, na altura com 10/11 anos, faz referência, num dos seus postes a este trágico "acidente", que ocorreu a 100 metros, quando ele estava a brincar com outros putos na parada (**);
(xviii) gostaríamos de ter outras versões deste acontecimento; infelizmente não temos ninguém, na nossa Tabanca Grande, da CART 2742 / BART 2920; julgo que seja difícil, ainda hoje, aos camaradas da CART 2742 abordar esta história, tão trágica quanto absurda...
Infelizmente, este caso não foi único no TO da Guiné: o acesso fácil a armas de guerra e a usura física e mental da guerra ajudam também a explicar estes surtos de violência patológica que, de tempos a tempos, ocorriam nas nossas fileiras.
Quantos suicídios terão havido no CTIG, ao longo da guerra ? Quantos homícídios terão ocorrido, dentro das NT ?
Na lógica da hierarquia militar, estes casos eram eufemistica e hipocriticamente tratados como "acidentes com armas de fogo" (sic).... E assim ficarão, para a história - como acidentes, inexplicáveis - , se não houver da parte dos contemporâneas e das testemunhas presenciais destes casos a vontade de contribuir, com depoimentos em primeira mão, para o seu esclarecimento...
Intrigam-nos casos como este. O que podia levar um militar português a querer ficar na Guiné, na vida civil ?
- Podia não ter ninguém à sua espera, na sua terra, não ter família, não ter amigosM;
- podia, por qualquer razão, querer esquecer a sua origem ou condição;
- podia estar perdido de amores por alguma bajuda;
- podia estar pura e simplesmente deprimido ou psicótico...
Um indivíduo deprimido ou psicótico pode facilmente perder a noção do perigo, ficar indiferente a uma situação de perigo imediato e iminente, e até desejar a sua própria morte. Não nos parece ter sido uma acção premeditada, pensada e amadurecida a frio... Em princípio, foi uma acção precipitada, irreflectida, impulsiva. O tal "acto de loucura" da "vox populi"...
A ser verdade que o capitão deliberadamente ou não discriminou o soldado, aquando da distribuição das amêndoas, isso poderá ser sido "a gota de água" que transformou um conflito disciplinar num massacre... No final da comissão de uma companhia, na festa do em que se celebrava o dever cumprido, no domingo (afinal, sangrento) de Páscoa de 2 de Abril de 1972...
3. Comentário do nosso leitor (e camarada) Carlos Gomes (*):
3. Comentário do nosso leitor (e camarada) Carlos Gomes (*):
Gostava de comentar o drama da Páscoa de 72 em Fajonquito. Longe de mim fazer juizos de valores, de quem quer que seja, nem fomentar polémicas. Da CCS do BART 2920 fui destacado como enfermeiro para a CART 2742, sediada em Fajonquito, no periodo de 2 dezembro 70 a 20 maio de 71. Por conseguinte um ano antes do trágico acontecimento [2/4/1972]. Se bem me lembro, foi nesse periodo que também chegou o sold Almeida à CART 2742. Dizia-se que ele vinha dos comandos, expulso ou castigado.
Conheci o Almeida quase de imediato, pois ele tinha problemas de pele em várias partes do corpo que passei a tratar. Passado algum tempo apercebi-me que ele, Almeida, tinha algumas pertubações a nivel emocional. Não esqueço a forma maliciosa como a rapaziada o apelidava ou tratava: Almeida, "apanhado, bate mal da bola, maluco"...
O Almeida estava sempre a alinhar nas saídas para o mato, dava para perceber que as relações com o comandante da companhia não eram das melhores. Lembro um episódio em que o Almeida lavava os dentes à porta da camarata e o cap Figueiredo lhe chamar a atenção para o que estava a fazer, o que gerou entre ambos alguma discussão.
Como é óbvio, tambem conheci o cap Figueiredo, algumas vezes lhe prestei assistência. Homem possante e de elevada estatura, era um eximio jogador de futebol de salão. Pelo que sei era militar de carreira (e não miliciano). As suas atitudes na liderança da companhia, em vez de gerar confiança, tinham o efeito contrário. Eu sempre que podia, evitava-o...
2 de Abril de 1972: Tragédia. Pelos relatos que me chegaram, o Almeida passou-se de todo, queria o ajuste de contas com o capitão e o primeiro sargento...Com uma granada na mão, descavilhada, entra na secretaria onde pretende ficar com o capitão e o sargento. O alf Alcino e o furriel Félix tentaram demover o Almeida. Disse-se que o Almeida gritou para que eles saíssem, ao alferes e ao furriel, o que não fizeram ou não tiveram tempo de o fazer. Quanto ao sargento, talvez só ele possa dizer como escapou.
As razões para este acto tavez no concreto nunca se venham a saber, mas duma coisa tenho eu a certeza: actos como estes e tantos outros que aconteceram nesta guerra, não aconteceram por acaso (...)
4. Comentário do Cherno Baldé (**)
(..:) Depois do "acidente" ou melhor do homicidio, a versão que circulou e ficou até hoje entre a população nativa é bem diferente daquela que estou a ler agora na maior parte dos comentários.
Pela versão que prevaleceu entre nós, alegadamente, o soldado Almeida estava revoltado por não poder voltar à sua terra após várias comissões de serviço, em virtude de um castigo a que estava sujeito e tinha decidido acabar com a sua vida e com ele, também, a do comandante da companhia. Claro que isto faz parte dos rumores que circularam, na ausência de informações oficiais, na altura.
Quero dizer a quem me quiser ouvir, e isto por minha conta, que o Almeida era um soldado "profissional" muito aguerrido que dificilmente poderia levar uma vida civil pacata no meio indígena ou gerindo uma lojeca ou um restaurante para servir a malta europeia numa cidade qualquer da Guiné.
Quero dizer a quem me quiser ouvir, e isto por minha conta, que o Almeida era um soldado "profissional" muito aguerrido que dificilmente poderia levar uma vida civil pacata no meio indígena ou gerindo uma lojeca ou um restaurante para servir a malta europeia numa cidade qualquer da Guiné.
O Almeida não era um soldado vulgar e via-se claramente que no se tinha integrado na companhia dos restantes soldados milicianos aos quais ele nutria muita pouca consideração e/ou respeito.Tão pouco se podia integrar no meio dos pretos, embora se identificasse com eles. Penso que, antes de mais, o nosso amigo Ameida (ele era de facto um amigo e defensor das crianças que frequentavam o aquartelamento, ai de quem se atrevesse a fazer mal a uma criançaa na sua presença!) deve ter sido mais uma das inúmeras vitimas daquela guerra terrível. (..)
Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > CART 2742 (1970/72) > "Fajonquito em festa... Com a CART 2742 (1970-72) o ambiente entre a tropa e a população melhorou bastante, atingindo níveis nunca antes vistos. A foto de 1971 (amigavelmente enviada pelo ex-Furriel Mil. José Bebiano), mostra uma calorosa recepção de um grupo de artistas vindos da metrópole para animar a malta. Ao meio e ao lado de uma das artistas pode-se ver o nosso saudoso Cap Carlos Borges de Figueiredo. O rapazinho nas mãos do homem dos óculos escuros é o Carlitos, filho de um soldado português que, mais tarde, iria à procura do pai, tendo aquele recusado o encontro à última da hora. O ex-Furriel José Bebiano, que era de rendição individual, tendo feito toda a sua comissão em Fajonquito poderia, eventualmente, identificar os soldados que acompanham o seu Comandante nesta foto." (Foto de José Bebiaao; legenda de Cherno Baldé).
5. Cherno Baldé > Homenagem póstuma ao Cap Carlos Borges de Figueiredo (**)
(...) Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciavam alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.
O Cap Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.
Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné-Bissau têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base.
Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > CART 2742 (1970/72) > "Fajonquito em festa... Com a CART 2742 (1970-72) o ambiente entre a tropa e a população melhorou bastante, atingindo níveis nunca antes vistos. A foto de 1971 (amigavelmente enviada pelo ex-Furriel Mil. José Bebiano), mostra uma calorosa recepção de um grupo de artistas vindos da metrópole para animar a malta. Ao meio e ao lado de uma das artistas pode-se ver o nosso saudoso Cap Carlos Borges de Figueiredo. O rapazinho nas mãos do homem dos óculos escuros é o Carlitos, filho de um soldado português que, mais tarde, iria à procura do pai, tendo aquele recusado o encontro à última da hora. O ex-Furriel José Bebiano, que era de rendição individual, tendo feito toda a sua comissão em Fajonquito poderia, eventualmente, identificar os soldados que acompanham o seu Comandante nesta foto." (Foto de José Bebiaao; legenda de Cherno Baldé).
5. Cherno Baldé > Homenagem póstuma ao Cap Carlos Borges de Figueiredo (**)
(...) Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciavam alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.
O Cap Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.
Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné-Bissau têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base.
O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.
Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque, depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap Carlos Borges de Figueiredo.
A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.
Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen Spínola queria com a sua politica "Por uma Guiné Melhor” (...)
6. Comentário de António Bernardo [nosso leitor e camarada, mas não registado na Tabanca Grande; pertenceu à CCS/BART 2920]
Muito embora, seja um dos melhores textos do Cherno Baldé (**), o mesmo peca por um retrato falseado, no que respeita ao cap art Carlos Borges de Figueiredo, cmdt da CArt 2742, sedeada em Fajonquito e subunidade do BArt 2920 (1970/72).
Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque, depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap Carlos Borges de Figueiredo.
A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.
Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen Spínola queria com a sua politica "Por uma Guiné Melhor” (...)
6. Comentário de António Bernardo [nosso leitor e camarada, mas não registado na Tabanca Grande; pertenceu à CCS/BART 2920]
Muito embora, seja um dos melhores textos do Cherno Baldé (**), o mesmo peca por um retrato falseado, no que respeita ao cap art Carlos Borges de Figueiredo, cmdt da CArt 2742, sedeada em Fajonquito e subunidade do BArt 2920 (1970/72).
É bom lembrar que, embora ostentasse galões nos ombros, era um homem boçal, diria mesmo que labrego, igual a muitos outros que comandavam outros homens.
A sua personalidade conflituosa levou ao ajuste de contas, ocorrido no domingo de Páscoa,de 2 de Abril de 1972, e aqui já abordado no post 5938 (*)
António Bernardo
[CCS/BART 2920, Bafatá, 1970/72]
______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 6 de março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)
(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...
(**) Vd. poste de 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses
Vd. também poste de 24 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada
(...) "O que vou dizer pode parecer paradoxal se não incongruente. O Sr. Carlos Borges de Figueiredo, ao contrário de muitos outros, foi um Capitão pacifista pois ele tinha-se distinguido, sobretudo, pela promoção da educação entre as crianças nativas (o número de alunos na escola local tinha aumentado significativamente facto que poderia estar ligado ao ambiente de paz criado e uma grande sensibilidade pelos problemas sociais da população) e organização de eventos sócio-culturais que, não só afastavam, por algumas horas, o espectro da guerra e da morte entre a tropa mas eram também muito úteis e importantes na construção de relações de aproximação e de confiança com a populaçã local, tão prezada por General Spínola.
Foi nessa altura que, pela primeira vez, recebemos a visita de grupos musicais vindos da metrópole. Numa dessas visitas, lembro-me da presença de uma ou mais mulheres cantavam o Fado. A música era muito morna, lenta demais para o nosso gosto temperado na ritmada, quase violenta dança de tambor mandinga. No meio de tudo isso, não nos escapou um detalhe importante. Notamos a deferençaa e o extremo respeito com que todos a(s) tratavam. O respeito dado àquela(s) mulher(res) contrastava de forma flagrante com a maneira como habitualmente lidavam com as nossas mulheres, fossem elas grandes ou pequenas. E não estou a referir-me, claro esta, à esposa do Capitão que, também, deve ter visitado Fajonquito.
Ele ficou conhecido no meio da populacao local com o nome de Capiton Lelö dahdè o que na lingua fula significa o Capitão cabeça inclinada. Talvez aqueles que o conheceram de perto me possam corrigir, parece que ele tinha o hábito de inclinar ligeiramente a cabeça para um dos lados, daí o nome com que o baptizaram e que fica para a historia." (...)
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Guiné 63/74 - P13504: Blogpoesia (387): Artífice da Paz (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381)
1. Em mensagem do dia 12 de Agosto de 2014, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux. Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos este poema a que deu o título de Artífice da Paz.
Artífice da Paz
Dei comigo apavorado,
Ao toque do clarim.
Convocava-me para a guerra,
Fazendo de mim um soldado,
E eu não queria viver assim.
E segurei as palavras, num turbilhão,
Que da boca me fugiam, sem tino.
O combate, a fuga ou a prisão,
Eram o meu triste destino.
E sem poder fugir da guerra,
Sem poder fugir de mim,
Eu que queria amar a terra,
Comigo me desavim.
... ... ...
E alinhei como combatente,
De estratégia bem estudada,
Ser comigo, coerente,
E fazer da guerra uma justa jornada.
Das balas fiz doces palavras,
Que atirava com sorrisos.
Continuamente…
E sorrisos, recebia,
Alegremente.
As granadas dos canhões,
Em momentos bem precisos,
Transformei-as em abraços
Que uniam corações
Quase sempre empedernidos.
Dois anos vivi correndo,
Séculos e séculos, sem fim,
Caminhando pelo sonho
No longo do rio da esperança.
E regressei ao futuro
De um passado já vivido,
Um presente de bonança.
Triste pelo que vi e sofri,
Alegre pela vida que vivi.
E retomei o caminho, longe da guerra,
Gritando ao fora de mim
– Vale a pena, nesta terra,
Lutar…
Lutar e fazer da vida um festim.
José Teixeira
____________
Nota do editor
Último poste da série de 13 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13490: Blogpoesia (387): Manchas e nódoas... (J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)
Artífice da Paz
Dei comigo apavorado,
Ao toque do clarim.
Convocava-me para a guerra,
Fazendo de mim um soldado,
E eu não queria viver assim.
E segurei as palavras, num turbilhão,
Que da boca me fugiam, sem tino.
O combate, a fuga ou a prisão,
Eram o meu triste destino.
E sem poder fugir da guerra,
Sem poder fugir de mim,
Eu que queria amar a terra,
Comigo me desavim.
... ... ...
E alinhei como combatente,
De estratégia bem estudada,
Ser comigo, coerente,
E fazer da guerra uma justa jornada.
Das balas fiz doces palavras,
Que atirava com sorrisos.
Continuamente…
E sorrisos, recebia,
Alegremente.
As granadas dos canhões,
Em momentos bem precisos,
Transformei-as em abraços
Que uniam corações
Quase sempre empedernidos.
Dois anos vivi correndo,
Séculos e séculos, sem fim,
Caminhando pelo sonho
No longo do rio da esperança.
E regressei ao futuro
De um passado já vivido,
Um presente de bonança.
Triste pelo que vi e sofri,
Alegre pela vida que vivi.
E retomei o caminho, longe da guerra,
Gritando ao fora de mim
– Vale a pena, nesta terra,
Lutar…
Lutar e fazer da vida um festim.
José Teixeira
____________
Nota do editor
Último poste da série de 13 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13490: Blogpoesia (387): Manchas e nódoas... (J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)
Guiné 63/74 - P13503: Bom ou mau tempo na bolanha (62): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (2) (Tony Borié)
Sexagésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Dizem que é o “Novo Mundo”, não sei de onde veio esta expressão, mas a presença de europeus andou por aqui, como andou pela África, pela Oceânia e por outras paragens, pois as aldeias, vilas ou cidades, em qualquer “virar de esquina” por onde passamos, mostram-nos “Europa”.
Muitas vezes, mesmo na estrada, guiando, olhamos a paisagem e lá está, a casa “europeia”, a cerca em volta do quintal, o cão preso a uma corrente, as vacas pastando, um pequeno quintal em redor da casa, um poço com uma “roldana”, em geral as casas foram construídas próximo de um ribeiro, ou de um local onde existe água, às vezes são locais isolados, mas lá estão as árvores em seu redor, algumas já velhas, da idade da casa.
Existem zonas, por onde passamos, que são autênticas “savanas de África”, mas quando surge uma casa, é “europeia”, onde há cultivo, é quase igual ao modelo que se vê na Europa, não, como eu via em Mansoa, em Bissorã ou no Olossato, portanto lá na África, aqui, no que dizem ser o “Novo Mundo”, o modelo europeu está sempre presente, sempre se vê ao “dobrar de esquina”, como é costume dizer-se, embora os europeus também tivessem levado alguns costumes lá para África.
Nós, ainda era madrugada, abandonámos a estrada número 24, que nos levou de leste para oeste e de sul para norte, entrando por poucas milhas na estrada número 57, tudo isto no estado de Illinois e, lá está, sem nos apercebermos, estávamos a fazer o mesmo percurso que os missionários franceses fizeram muitos anos atrás, quando desembarcaram, talvez nos portos de New Orleans, Savannah, Charleston, Philadelphia, ou Boston, pois foram eles os primeiros europeus a explorarem a região do actual Illinois, quando em 1763 fazia parte da Nova França, altura em que passou ao domínio britânico, mas em 1783, após o fim da Revolução Americana de 1776, passa a fazer parte dos Estados Unidos e em 1818, tornou-se o 21.° estado americano.
Estávamos na parte sul do estado, onde a agricultura é uma importante fonte de renda e onde geograficamente, o Illinois se caracteriza por o seu terreno ser pouco acidentado e também pelo seu clima altamente instável, mas não nos afectava muito esta particular observação, pois passadas umas horas já circulávamos na estrada 64, com alguma chuva e um pouco de vento, mas não ciclónico, pois o Jeep e a Caravana ia segura, sempre sem dificuldade, com suficiente visibilidade e alguma segurança, indo a caminho da cidade de St. Louis, já no estado Missouri, que também foi fundada pelos franceses no ano de 1763, estando localizada na confluência do rio Mississippi e do rio Missouri, funcionando na altura como entreposto comercial. Esta cidade, devido à sua localização, foi motivo de guerras entre franceses e ameríndios, passou para as mãos espanholas e mais tarde, juntamente com o resto do território da Louisiana, foi devolvida à França, tendo a cidade sendo adquirida posteriormente adquirida a este país, pelos Estados Unidos, com a “Compra da Louisiana”.
A cidade de St. Louis, mais tarde, converteu-se em ponto de partida de exploradores do Oeste Americano e colonizadores que emigraram para Oeste e hoje quem se aproxime da cidade, mesmo a muitas milhas de distância, pode avistar o “Gateway Arch”, que dizem que é o mais alto monumento em solo norte americano.
Nesta cidade, que já pertence ao estado do Missouri, que também foi adquirido pelos Estados Unidos na célebre “Compra da Louisiana”, no ano de 1803, cujo cognome é Mother of the West (Mãe do Oeste), é uma das primeiras regiões do novo território a ser povoada por colonos norte americanos. À medida que o país passou a expandir-se em direção ao oeste, o Missouri passou a ser uma das principais escalas dos emigrantes, tendo-se tornado no 24.° estado norte americano em 1821. Dizem que a indústria agropecuária do Missouri fazia grande uso do “trabalho escravo”.
Deixando um pouco a história para trás, seguimos na estrada 70, com longas zonas desertas, quintas, algumas abandonadas, plantações de milho ou trigo, algumas manadas de vacas, áreas transformadas em zonas de caça, poços de petróleo trabalhando, geradores de energia movidos a vento, até à cidade de Kansas City, ainda no estado do Missouri, pois existem duas cidades com o nome Kansas City, uma no estado de Missouri, outra no estado de Kansas, onde depois de atravessar a cidade entrámos em Kansas City, Kansas, regressando de novo Kansas City, Missouri, rumo ao norte pela estrada 29, entrando no estado de Iowa, parando na cidade de Council Bluffs, no estado de Iowa, para ver o encontro de futebol, a contar para o campeonato do mundo, entre os USA e Portugal, com um resultado que não nos deu nem alegria nem tristeza, aqui fomos dormir.
Neste dia, percorremos 668 milhas, com o preço da gasolina variando entre $3.38 e $3.70 o galão, que são mais ou menos 4 litros.
Tony Borie, Julho de 2014.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13478: Bom ou mau tempo na bolanha (60): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (1) (Tony Borié)
Dizem que é o “Novo Mundo”, não sei de onde veio esta expressão, mas a presença de europeus andou por aqui, como andou pela África, pela Oceânia e por outras paragens, pois as aldeias, vilas ou cidades, em qualquer “virar de esquina” por onde passamos, mostram-nos “Europa”.
Muitas vezes, mesmo na estrada, guiando, olhamos a paisagem e lá está, a casa “europeia”, a cerca em volta do quintal, o cão preso a uma corrente, as vacas pastando, um pequeno quintal em redor da casa, um poço com uma “roldana”, em geral as casas foram construídas próximo de um ribeiro, ou de um local onde existe água, às vezes são locais isolados, mas lá estão as árvores em seu redor, algumas já velhas, da idade da casa.
Existem zonas, por onde passamos, que são autênticas “savanas de África”, mas quando surge uma casa, é “europeia”, onde há cultivo, é quase igual ao modelo que se vê na Europa, não, como eu via em Mansoa, em Bissorã ou no Olossato, portanto lá na África, aqui, no que dizem ser o “Novo Mundo”, o modelo europeu está sempre presente, sempre se vê ao “dobrar de esquina”, como é costume dizer-se, embora os europeus também tivessem levado alguns costumes lá para África.
Nós, ainda era madrugada, abandonámos a estrada número 24, que nos levou de leste para oeste e de sul para norte, entrando por poucas milhas na estrada número 57, tudo isto no estado de Illinois e, lá está, sem nos apercebermos, estávamos a fazer o mesmo percurso que os missionários franceses fizeram muitos anos atrás, quando desembarcaram, talvez nos portos de New Orleans, Savannah, Charleston, Philadelphia, ou Boston, pois foram eles os primeiros europeus a explorarem a região do actual Illinois, quando em 1763 fazia parte da Nova França, altura em que passou ao domínio britânico, mas em 1783, após o fim da Revolução Americana de 1776, passa a fazer parte dos Estados Unidos e em 1818, tornou-se o 21.° estado americano.
Estávamos na parte sul do estado, onde a agricultura é uma importante fonte de renda e onde geograficamente, o Illinois se caracteriza por o seu terreno ser pouco acidentado e também pelo seu clima altamente instável, mas não nos afectava muito esta particular observação, pois passadas umas horas já circulávamos na estrada 64, com alguma chuva e um pouco de vento, mas não ciclónico, pois o Jeep e a Caravana ia segura, sempre sem dificuldade, com suficiente visibilidade e alguma segurança, indo a caminho da cidade de St. Louis, já no estado Missouri, que também foi fundada pelos franceses no ano de 1763, estando localizada na confluência do rio Mississippi e do rio Missouri, funcionando na altura como entreposto comercial. Esta cidade, devido à sua localização, foi motivo de guerras entre franceses e ameríndios, passou para as mãos espanholas e mais tarde, juntamente com o resto do território da Louisiana, foi devolvida à França, tendo a cidade sendo adquirida posteriormente adquirida a este país, pelos Estados Unidos, com a “Compra da Louisiana”.
A cidade de St. Louis, mais tarde, converteu-se em ponto de partida de exploradores do Oeste Americano e colonizadores que emigraram para Oeste e hoje quem se aproxime da cidade, mesmo a muitas milhas de distância, pode avistar o “Gateway Arch”, que dizem que é o mais alto monumento em solo norte americano.
Nesta cidade, que já pertence ao estado do Missouri, que também foi adquirido pelos Estados Unidos na célebre “Compra da Louisiana”, no ano de 1803, cujo cognome é Mother of the West (Mãe do Oeste), é uma das primeiras regiões do novo território a ser povoada por colonos norte americanos. À medida que o país passou a expandir-se em direção ao oeste, o Missouri passou a ser uma das principais escalas dos emigrantes, tendo-se tornado no 24.° estado norte americano em 1821. Dizem que a indústria agropecuária do Missouri fazia grande uso do “trabalho escravo”.
Deixando um pouco a história para trás, seguimos na estrada 70, com longas zonas desertas, quintas, algumas abandonadas, plantações de milho ou trigo, algumas manadas de vacas, áreas transformadas em zonas de caça, poços de petróleo trabalhando, geradores de energia movidos a vento, até à cidade de Kansas City, ainda no estado do Missouri, pois existem duas cidades com o nome Kansas City, uma no estado de Missouri, outra no estado de Kansas, onde depois de atravessar a cidade entrámos em Kansas City, Kansas, regressando de novo Kansas City, Missouri, rumo ao norte pela estrada 29, entrando no estado de Iowa, parando na cidade de Council Bluffs, no estado de Iowa, para ver o encontro de futebol, a contar para o campeonato do mundo, entre os USA e Portugal, com um resultado que não nos deu nem alegria nem tristeza, aqui fomos dormir.
Neste dia, percorremos 668 milhas, com o preço da gasolina variando entre $3.38 e $3.70 o galão, que são mais ou menos 4 litros.
Tony Borie, Julho de 2014.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 9 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13478: Bom ou mau tempo na bolanha (60): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (1) (Tony Borié)
Guiné 63/74 - P13502: Parabéns a você (770): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)
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Nota do editor
Último poste da série de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13480: Parabéns a você (769): Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Cond Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
Nota do editor
Último poste da série de 10 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13480: Parabéns a você (769): Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1961/63) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Cond Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
Guiné 634/74 - P13501: A propósito de praxes e do Polidoro Monteiro que eu conheci, em Bambadinca, quando fui instrutor de mílícias: "O médico está preso!" (Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho e Bambadinca, 1970/72)
1. Um texto do Paulo Santiago, já de 26 de fevereiro último, mas que esteve em "stand by", por decisão dos editores já que fazia referência explícita a um camarada nosso, que ainda está vivo, e que foi alf mil médico... Omite-se o seu nome, de acordo com as nossas regras editoriais. Não faz parte da Tabanca Grande. (LG
Assunto: Polidoro
Luís:
Ainda a propósito do poste do Armando Pires (*), e também do muito que se tem falado de praxes (**), lembrei-me de uma história do Polidoro [, ten cor inf, último comandamte do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, e entretanto já falecido], aflorada em tempos, muito pela rama. Se achares interessante, publica.
Paulo Santiago.
2. O Polidoro Monteiro que eu conheci:
"O médico está preso!"
Quando em outubro de 1971 cheguei a Bambadinca, havia lá um médico que conhecia de vista e de nome, melhor de alcunha...
No meu tempo, na Escola Agrícola de Coimbra, não havia praxes, tinham sido proibidas uns anos antes no seguimento de uma situação que tinha corrido mal. Os alunos dos liceus, e os caloiros da Universidade de Coimbra, ao contrário, viviam num certo "terror", evitando ter encontros, após o toque da "cabra" com os "praxadores mores". Nestes, os mais conhecidos, e mais temidos, eram o nosso futuro médico, e o "Mata-Gatos", assim chamado por maltratar gatos, naqueles dias em que se sentia frustrado por não efectuar "rapanços".
Foi o ex-praxador coimbrão que eu fui encontrar em Bambadinca como médico.
Um dia, estava a fazer um "cross" com a companhia de milícias, repentinamente caí redondo. Meio reanimado, trouxeram-me para o posto médico. Diagnóstico: tensão arterial situada em 4-7,5. O clínico manda uma caralhada, diz que estou bastante fodido, e receita-me... whisky, em bastantes tomas durante o dia. Também aconselhou descanso.
Pedi ao ten cor Polidoro para me dispensar de duas ou três formaturas matinais, mas não lhe disse qual tinha sido a receita para a subida da tensão arterial. Esta normalizou ao fim de uns dias e, claro, bebi mais que aquilo que já bebia. Soube mais tarde que não faltavam medicamentos para a baixa tensão.
Num dia de novembro, há uma coluna de abastecimentos ao Xitole, e um Unimog 411 vira-se. O condutor, um militar da CCAÇ 12, suicida-se dando um tiro na cabeça. Trouxeram o corpo para a capela de Bambadinca, onde numa pseudo autópsia aconteceu algo que não devia ter acontecido.
Pela mesma altura, o Pelotão Daimler foi rendido. O alferes médico em questão tinha lá a mulher (a primeira) mas quase todos os dias à hora de jantar, deixava-a no quartel e vinha comer e beber (bastante) para casa do gajo da PIDE/DGS, ou para casa do Rendeiro [, comerciante,] de quem era conterrâneo.
Na primeira noite de serviço dos "periquitos" do pelotão de cavalaria, o soldado de sentinela no posto, ao cimo da rampa, vê a altas horas um civil, branco, a aproximar-se, manda-o parar e pede-lhe a identificação. O civil era o médico, vinha bem "carregado" e pôs-se a disparatar com o militar. Felizmente, apareceu o sargento de dia, que informou o soldado:
- É o nosso alferes médico.
Tudo acalmado, o nosso alferes médico vira-se para o soldado de sentinela, dizendo:
- Andas com uma cor muito pálida, amanhã passas no posto médico para te dar um medicamento.
"Periquito", ingénuo, cumpridor da ordem de um superior, no dia seguinte lá estava no posto médico. Neste existia um soldado maqueiro, bruto, meio sádico... Quando o médico topou o militar de sentinela na noite anterior, disse:
- Oh Fulano Tal, este gajo necessita levar cinco ampolas de Vitamina C, subcutâneas dadas como tu sabes, e hoje leva duas e nunca mais vai esquecer a minha cara.
Diziam que aquelas injecções eram extremamente dolorosas, o certo é o militar ter ficado cheio de dores, nem sentado, nem deitado podia estar durante mais de um dia.
Acabou o curso de formação de milícias, fui passar o Natal e Ano Novo ao Saltinho. No dia 6 de janeiro de 1972, fui de heli para Bissau e, passados três ou quatro dias, regressei de avioneta a Bambadinca, juntamente com o 2.º comandante, o major Anjos de Carvalho. Na pista, à nossa espera, estava o ten cor Polidoro:
- Só vim aqui para vos dizer que o médico está preso. Está no quarto, a mulher foi embora e ele, quando terminar os dez dias, vai recambiado.
O pelotão de cavalaria, no fim do ano, fez uma festa convidando o comandante. Veio à baila a cena das injecções de Vitamina C. Parece que a tampa do Polidoro saltou, já havia os rumores da "autópsia" e outras cenas pouco edificantes. No dia seguinte, arranjaram transporte para a mulher do médico, e na Ordem de Serviço saiu a punição...
Julgo que ninguém ficou admirado com o sucedido.
Paulo Santiago
[ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72. instrutor de mílícias em Bambadinca; engenheiro técnico agrícola reformado; natural de Águeda]
_______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12742: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (12): Chegou Polidoro, "O Terrível"
(**) Vd. poste de 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...
Polidoro Monteiro, em Bissorã, 1971. Foto de Armando Pires (2014) |
Ainda a propósito do poste do Armando Pires (*), e também do muito que se tem falado de praxes (**), lembrei-me de uma história do Polidoro [, ten cor inf, último comandamte do BART 2917, Bambadinca, 1970/72, e entretanto já falecido], aflorada em tempos, muito pela rama. Se achares interessante, publica.
Paulo Santiago.
"O médico está preso!"
Quando em outubro de 1971 cheguei a Bambadinca, havia lá um médico que conhecia de vista e de nome, melhor de alcunha...
Pedi ao ten cor Polidoro para me dispensar de duas ou três formaturas matinais, mas não lhe disse qual tinha sido a receita para a subida da tensão arterial. Esta normalizou ao fim de uns dias e, claro, bebi mais que aquilo que já bebia. Soube mais tarde que não faltavam medicamentos para a baixa tensão.
Pela mesma altura, o Pelotão Daimler foi rendido. O alferes médico em questão tinha lá a mulher (a primeira) mas quase todos os dias à hora de jantar, deixava-a no quartel e vinha comer e beber (bastante) para casa do gajo da PIDE/DGS, ou para casa do Rendeiro [, comerciante,] de quem era conterrâneo.
- É o nosso alferes médico.
Tudo acalmado, o nosso alferes médico vira-se para o soldado de sentinela, dizendo:
- Andas com uma cor muito pálida, amanhã passas no posto médico para te dar um medicamento.
"Periquito", ingénuo, cumpridor da ordem de um superior, no dia seguinte lá estava no posto médico. Neste existia um soldado maqueiro, bruto, meio sádico... Quando o médico topou o militar de sentinela na noite anterior, disse:
- Oh Fulano Tal, este gajo necessita levar cinco ampolas de Vitamina C, subcutâneas dadas como tu sabes, e hoje leva duas e nunca mais vai esquecer a minha cara.
Julgo que ninguém ficou admirado com o sucedido.
Paulo Santiago
[ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72. instrutor de mílícias em Bambadinca; engenheiro técnico agrícola reformado; natural de Águeda]
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 19 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12742: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (12): Chegou Polidoro, "O Terrível"
(**) Vd. poste de 15 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13498: "Francisco Caboz", um padre franciscano, natural de Ribamar, Lourinhã, na guerra colonial (Horácio Fernandes, ex-alf mil capelão, BART 1913, Catió, 1967/69): Parte III: Um periquito praxado com pornografia à mesa do comandante... E as primeiras impressões (más) de Catió e do destacamento de Ganjola...
Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses
MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (CHERNO BALDÉ)
46 - RETRATO DE UMA FAMÍLIA
A GUERRA, A POBREZA E A PRESENÇA DOS SOLDADOS PORTUGUESES
A minha família, até meados de 1948, ano da morte de Braima Djame Baldé, mais conhecido por Branjame, régulo de Sancorla, integrava o núcleo restrito da casa real (Lamido) deste regulado, direito esse adquirido atravês da nossa avó materna, Eguê Baldé, tia de Branjame.
Nesta qualidade, não se pode dizer que não conheciam os portugueses antes do início da guerra colonial, tendo em conta as ligações de uma aliança histórica mais ou menos estreita, de mútua (des)confiança e de dependência que existiam entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa sediada nas circunscrições mais próximas em Geba ou Bafatá e/ou mais distantes como Bolama e Bissau, para onde os nossos pais, Nahôr e mais tarde Samba-Gaia (que disputaria o regulado com os filhos de Branjame), nossos patriarcas da família se deslocavam com frequência e, em nome das quais, se convocavam manifestações de júbilo ou se procedia a mobilização de homens válidos para as guerras de pacificação do território no decurso do último quartel do Séc. XIX e principios do Séc. XX.
Nessa altura, ouvia-se falar do homem branco como o eco de um som longínquo, que provocava curiosidade e medo pois se todos o queriam ver com os seus olhos, ao mesmo tempo todos tinham a consciência dos perigos que ele representava antes e depois. Antes porque associado ao temível fenómeno do desaparecimento de pessoas. Sim, pessoas que partiam para os seus campos de cultivo e desapareciam, de repente, sem deixar rastos. Depois porque, infelizmente, em África, este fenómeno de desaparecimento de pessoas não findou com o proclamado fim da escravatura, mas continuou durante algum tempo, inclusive sob a forma de sanções administrativas que consistiam na deportação das vítimas para terras distantes, o terrível desterro.
DESTERRO!!??...
Para o homem africano da época, não podia haver nada pior que o desterro que se traduzia no desenraizamento da pessoa e seu afastamento definitivo ou por largo período longe da sua família. Foi nessa época que apareceu no meio popular, entre os fulas, a frase que dizia: “O Branco que veja se o desterro é bom”, isto quando alguém queria fazer ver ao outro que, também ele, não tinha apreciado uma certa atitude deste num dado momento.
A figura do meu pai, El-haj Tambá Baldé
O meu pai, Aladje Tambá Baldé e o Cabo Tintim (nome emprestado
da BD), que frequentava a nossa casa em Fajonquito. A foto é de 1967/68,
pelo que o amigo Tintim deve ter pertencido à CCAÇ 1501 do Cap. Rui
Antunes Tomaz ou da CCAÇ 1685 do Cap. de Infantaria Alcino de Jesus
Raiano, cujas companhias passaram por Fajonquito entre 1967/68.
Nesta família pobre e simples que viveu e atravessou a Guerra colonial de ponta a ponta e, ainda sobreviveu ao genocídio silencioso do pós-independência, quero destacar o importante papel desempenhado pelo nosso pai, como chefe de uma família numerosa que conseguiu sobreviver sem sofrer muitos danos ou perdas de vida a lamentar, e tudo graças ao Deus todo poderoso em primeiro lugar e em segundo, graças ao talento de diplomata inato do nosso pai, acompanhado de uma boa dose de bom senso que o permitiram, sempre, aplicar o princípio segundo o qual: “O que é de César a César e o que é de Deus a Deus”, enquanto esteve à testa da família.
Vivendo num meio difícil, de sobreposição de vários poderes (oficial/tradicional, nacional/local, laico/religioso) e de constantes e rápidas mudanças, de guerras e montanhas de intrigas, soube sempre adaptar-se e relacionar-se bem com as condições vigentes sem nunca se comprometer inteiramente, mas também sem nunca se afastar demasiado para não criar suspeitas. Contrariando a vontade da mãe e nossa avó, desde sempre soube receber bem e criar amizades entre os soldados portugueses que, certamente, vinham a nossa casa por causa das nossas primas-irmãs que, na altura, andavam de corpo nu da cintura para cima e com as mamas ao léu.
Não sei, no fundo, se a sua admiração, como qualquer outro, do seu tempo e etnia, pelos portugueses era acompanhado de uma simpatia especial, o certo é que demonstrou sempre por estes muito respeito e consideração no que era largamente retribuído.
Ao contrário dos seus irmãos, nunca se ofereceu e nem foi mobilizado para a guerra e, felizmente, as suas funções de empregado comercial permitiam-lhe satisfazer o mínimo necessário, sem precisar de entrar em aventuras militares ou intrigas palacianas. O longo trabalho com comerciantes lusos criou nele a ambição legítima de fazer dos seus filhos pessoas preparadas para os desafios do futuro, numa época em que o obscurantismo predominava entre as massas camponesas, decisão a que nunca se renunciou apesar dos numerosos obstáculos pelo caminho.
A minha avó paterna, Eguê Baldé
Ao contrário do filho, a nossa avó paterna não mostrava simpatia pelos brancos em geral e, em particular, dos soldados que invadiam a nossa casa em Cambaju. Dizia sempre, referindo-se a presença destes: “Uoú!... tinha que viver para presenciar isto!..”. Fugia do olhar dos militares para se refugiar no interior da sua palhota. Designava-os por “orelhas vermelhas” e não perdia uma única ocasião para falar mal e criticar o comportamento pouco sóbrio dos jovens soldados que, muitas vezes, se comportavam, de facto, como se estivessem em terras por eles conquistadas bem ao estilo dos tempos romanos. Nunca aceitou nada que viesse do quartel e não queria que os seus netos o frequentassem como se tivesse medo que fossem alienados e entregues à razia da guerra que dava os seus primeiros passos e fazia as primeiras vítimas.
Morreu em Cambaju entre 1966/67, pouco antes de mudarmos para Fajonquito, numa idade bastante avançada. Provavelmente, ela era a única que carregava consigo os ecos dos tempos passados, contendo os resquícios de lembranças menos boas dos primeiros contactos com os europeus em África e da prática nefasta do comércio triangular de má memória e que contribuiu para esvaziar o continente da sua população.
O meu tio Dembaro Baldé
O irmão mais velho do meu pai, Dembaro, era a biblioteca da família, conhecedor profundo do percurso histórico dos fulas desde que saíram de Mácina, as crónicas épicas de Alfa Molo e de seu filho, Mussa Molo, no espaço sócio-cultural Firdunkê. Tinha uma grande admiração pelos portugueses em relação aos quais clamava alto e em bom som: “Sambu ghalel Tubakhô, khabhá pôlle gardânne” o equivalente, na língua fula, da famosa expressão latina “Veni-vidi-vici” de Júlio César ou das Lusíadas “Vós portugueses, poucos quanto fortes” (Canto VII) e, não se cansava de nos falar sobre as míticas figuras das guerras tribais no espaço sudanês de Mali, antes da chegada dos europeus e ainda sobre as guerras de pacificação sob a batuta de inigualáveis e intrépidos chefes de guerra portugueses como o Marques Geraldes, Graça Falcão ou Cap.Teixeira Pinto.
A minha mãe, Cadi Candé
A minha mãe era o que os portugueses vulgarmente chamariam de “moura” da casa, a primeira a levantar-se e a última a deitar-se e sobretudo no período de Ramadão, quando se impunha que as pessoas comessem durante a madrugada para poderem jejuar ao romper do dia, então ela, praticamente, não tinha tempo para se deitar e recuperar da fadiga do trabalho quotidiano da bolanha, do campo, da ordenha das vacas, trabalho caseiro e cozinha, sobretudo a maldita cozinha que lhe deu cabo dos olhos; pequeno almoço, almoço e jantar, quando tudo o que existia em casa era um grande amontoado de milho preto ou milho-basil no seu estado natural e que ainda precisava secar, pilar (esmagar), farinhar, separar em grãos, misturar com folhas da calabaceira em pó (lálôh), buscar lenha, pôr ao fogo, etc., etc.
Não sei o que ela pensava dos brancos, nunca nos disse e nunca ninguém lhe perguntou, mas como boa esposa, ela seguia os passos do nosso pai, isto é, tentar ser gentil, bem educada e acolher o melhor possível os hóspedes. Por falar em hóspedes, aqui está uma palavra mágica para os fulas do antigamente que, no decurso de toda a sua vida não faziam outra coisa senão preparar-se para receber bem e condignamente o seu hóspede. Lembro-me que, na infância, só acontecia comermos arroz e carne de galinha ou de algum outro animal no dia em que aparecia, saído de “nul part”, um hóspede qualquer, mesmo que se tratasse de um viajante maltrapilho, um vulgar vagabundo, bastava que não fosse das redondezas. “Felizes os servos que o Senhor, a sua chegada, encontrar vigilantes... porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Lucas 37/40).
Mas, mesmo nessas raras ocasiões, as crianças tinham muita sorte se lhes calhava algum osso para chupar. Lembro-me de ter comido muita tripa de galinha, sim a tripa que deitavam fora, depois de uma apressada limpeza do conteúdo, metia-se na brasa e a seguir para dentro das nossas barrigas redondas, inflamadas de desnutrição crónica. “Se deitas fora é carne desperdiçada, se o comes, comeste merda”, dizia a nossa avó a respeito das tripas.
Samba Candé ou Sam-forrea, meu avô materno
Por várias ocasiões, já aqui evoquei a figura do meu avô materno, o seu nome era Samba que as pessoas transformaram em Sam-Forrea por ser originário da região de Forrea (Contabane). Era caçador profissional e fez parte do contingente mobilizado para a guerra de Canhabaque. Conta a minha mãe que, quando voltou da guerra, estava irreconhecível devido a enorme cabeleira e a barba de muitos meses que lhe cobriam toda a face. Fizeram mais de 60 km a pé, de Bafatá a nossa aldeia de Farimbali. Voltaram de mãos a abanar, como tinham partido, sem dinheiro, sem espólio de guerra. Tinham lutado pela honra de Sancorla e da pátria portuguesa, afirmavam. Claro que esperavam obter alguma compensação material, o que neste caso não aconteceu.
No caminho de regresso a casa teria cruzado com o grupo de pessoas da sua aldeia que o vinham acolher, mas nem eles o puderam reconhecer envolto naquela enorme cabeleira e barba de um ano nem ele os reconheceu vindo daquela ilha maldita dos Canhabaques onde muitos dos seus companheiros tinham perdido a vida, incluindo o príncipe herdeiro de Sancorla, Abdu Branjame, que pouco antes tinha participado numa exposição colonial em Portugal, muito provavelmente a de junho de 1934 no Porto.
Na Guiné, desde o Séc. XIX que os portugueses tinham descoberto e privilegiado a contribuição da classe dos caçadores nos conflitos que os opunham a certos grupos indígenas. Homens singulares, de coragem ímpar e conhecedores do terreno, seriam largamente utilizados também, durante a guerra colonial, principalmente, como guias e/ou para organizar os grupos nativos de milícias e de auto-defesa.
Ao contrário do meu pai, ele era o que se podia classificar de anti-social e politicamente nulo, pois passava todo o seu tempo metido no mato a conviver com as aves e animais selvagens e raramente participava em eventos da comunidade. Homem de poucas palavras, durante as festas religiosas, quando toda a gente se preparava para vestir as suas melhores vestes e pavonear-se na reza colectiva, ele se oferecia para pastar o nosso gado bovino em substituição das crianças que, por norma, tinham essa incumbência.
Em Fajonquito, foi ele que teve a ideia genial de introduzir-me no quartel, quando, na verdade, nunca lá deveria pôr os pés por imposição da minha avó. Se não falava com os seus próprios conterrâneos muito menos o fazia com os jovens soldados portugueses que, inebriados com a visão das bajudas semi-nuas, raramente perdiam tempo com os velhos da tabanca. Pela manhã, quando estes entravam na morança ele pegava na sua “Longa” (arma de fogo de fabrico artesanal que funcionava por meio de pólvora e pedaços de metal embutidos no interior do cano, de frente para trás) e saía para o mato, onde fazia dias ou semanas antes de voltar. De vez em quando lá trazia partes de uma gazela ou de porco-espinho que distribuía pelos familiares, amigos e vizinhos.
Mariama Baldé ou Néné-Maudhô, a minha avó materna
De todos os membros da família, foi ela que mais me marcou em virtude da sua insistente e inútil teimosia de fazer de mim um homem de bem, deveras. Nunca desistiu, desde a idade de 4 ou 5 anos, em meados de 1964, quando fugimos juntos do primeiro ataque a nossa aldeia e, desorientados pelo medo, acabamos por dormir no meio de uma bolanha infestada de bichos e capim selvagem, com folhas tão afiadas que nem facas de cirurgião. No dia seguinte, quando finalmente nos encontraram, tínhamos cortes em tudo que era corpo, mas pelo menos estávamos vivos.
Incansável, todas as manhãs ia a casa que servia de dormitório dos rapazes para nos lembrar que a sorte estava com aqueles que se levantavam cedo, depois da primeira oração da manhã. Até hoje não o consegui fazer. Todas as tardes, antes de escurecer ia procurar-me a fim de certificar-se que já tinha tomado banho e trocado de roupa.
O seu nome era Mariama Baldé, ou Néné-Maudhô (Mamãe-velha) e faleceu em 1994 estava eu, na altura, em Lisboa. Como habitualmente acontece, só damos o devido valor àquilo que já perdemos. Era uma mulher alta e sofria de elefantiase numa das pernas o que lhe dava um aspecto algo bizarro em que uma das pernas era normal e pequena e a outra exageradamente grande e deformada, facto que a impedia de usar sapatos.
No entanto, era a todos os títulos uma pessoa especial e de valor inestimável para mim, pois ela foi a minha guardiã e verdadeira educadora durante a nossa atribulada infância e adolescência que se estende, praticamente, desde o inicio da guerra no norte (1964) até 1975, altura em que deixei a família para continuar os meus estudos no Liceu de Bafatá.
Dizem que ela viveu os cem anos, é bem provável. Não raras vezes, nas narrativas sobre a sua juventude, referia-se à cidade de Farim, importante centro de trocas comerciais em princípios do Séc. XX, onde as jovens bajudas iam trocar ou vender produtos junto dos comerciantes europeus e sirio-libaneses como o Coconote ou a borracha natural, extraído de uma planta selvagem e concentrado em formatos redondos como as bolas de futebol, resultado de meses e meses de labuta na floresta.
A Néné-Maudhô encarava a sua obrigação de nos dar uma boa educação de tal modo que era capaz de tudo para cumprir com a sua obrigação. Uma vez, já era quase noite e ainda não tinha saído do quartel para casa quando, surpreendendo tudo e todos pela ousadia, a minha avó penetrou dentro do quartel à minha procura. Passou pela sentinela na porta de armas que ou estava apanhado do clima e já não distinguia uma bajuda de uma mulher grande ou se calhar julgara tratar-se da lavadeira do 1.º Sargento e por isso, não queria arranjar encrencas.
A semelhança de todas as mulheres grandes que conheciam o irreverente atrevimento dos soldados nas tabancas, procuravam sempre ficar longe para não servir de bode expiatório às suas maluquices o que, de forma alguma não queria dizer ter medo, pois no dizer da minha avó, estes não passavam mesmo de “crianças grandes”, irrequietas e mal-educadas.
A sentinela saiu da sua sonolência acordado pelo barulho das vozes que de todos os lados gritavam dentro do quartel dirigindo-se a pobre da minha avó com uma canção que lhes era peculiar naquele tempo:
- “mulher grande cá tem cabaço óh-lé-lé-lé-lé... foi o Manel que o tirou óh lé-lé-lé-lá...”- no meio da algazarra de assobios e gargalhadas.
Imperturbável, ela seguiu caminhando e a todos que a perguntavam através da mímica gestual o que procurava ali, respondia em língua fula por uma única frase que ela sabia ser irreversível, aconteça o que acontecesse, universal, até ao fim do mundo: “Tcherno Abdulai!.. o meu neto... vai pra casa... já e agora!..”. Com excepção dos meus colegas rafeiros, ninguém sabia quem era o Tcherno Abdulai, pois no quartel o meu nome era Chico e por isso, os soldados pensavam estar diante de uma velha maluca com duas pernas diferentes uma da outra.
Assolada por uma multidão cada vez maior de soldados curiosos, não arredou pé enquanto não foram à caserna dos condutores, onde era faxina, para me alertarem. Tinha sido a primeira vez, mas não seria a última e, as tantas, o Dias (o meu amigo e patrão), quando via a sua silhueta invulgar aproximar-se da porta de armas, antes que se iniciasse o diálogo de surdos entre a sentinela e a minha avó, gritava com a sua voz rouca:
- Óh Chico, desanda dai que a velha já está a tua espera!...
Com estas palavras de alerta, sabia que estava na hora de deixar o quartel e voltar pra casa, que a minha avó estava ali a minha espera donde não arredaria o seu pé de elefante com que assustava os soldados, mesmo com tiros de G3.
Passados muitos anos depois, quando li o maravilhoso livro “A Mãe” do escritor russo, Máxim Gorki (Alekxei Makxímovich Peshkov), não podia deixar de pensar na minha avó e compreender finalmente, que estava perante um fenómeno universal. Então os meus sentimentos de raiva e de ódio devidos a teimosia daquela mulher grande se transformaram, de repente, numa grande compaixão.
No que me concerne, depois do choque inicial, pouco a pouco comecei a ser atraído pelo quartel tal qual a luz nocturna atrai os pequenos bichos voadores. A curiosidade de conviver e conhecer pessoas diferentes, o gosto pela comida do quartel tinha começado desde Cambaju entre 1965/67, mas em finais de 1967 ou inicio de 68, o nosso pai foi transferido e mudou com a família para Fajonquito. Nessa altura o aquartelamento situava-se no meio da tabanca e havia alguma promiscuidade entre a população local e os militares ocupantes do quartel que se traduzia na infiltração constante das crianças na zona ocupada pelos soldados.
Em 1969, com a chegada da companhia do Cap. Carvalho fez-se um reordenamento que transferiu toda a população do lado oeste para leste e isolou o aquartelamento com arame farpado e portas fechadas. Este sistema de apartheid, por assim dizer, por um lado permitiu separar as águas e impor certa ordem e disciplina no quartel, mas por outro criou um fosso enorme entre dois mundos que se complementavam mutuamente e que, pouco a pouco, se foi aumentando para se transformar numa guerra fria de mútua desconfiança. Este facto não será alheio ao destino final do comandante da companhia antes do fim da sua comissão.
Cherno Baldé, estudante do Instituto Superior de Economia de Kiev (1986/90), com duas colegas (russa e ucraniana) da mesma promoção. A imagem que serve de fundo é o rio Dnepr que divide a cidade de Kiev em duas partes
O meu irmão Carlos (2 anos mais velho, hoje Farmacêutico, formado pela faculdade de Farmácia da Universidade Técnica de Lisboa), durante a alocução por ocasião do dia 10 de Junho de 1971, Dia de Portugal e de Camões, na escola primária de Fajonquito. Na imagem estão dois oficiais da companhia do Cap. Figueiredo (CART 2742), um dos quais, o Alferes Félix encontrou a morte no mesmo dia que o seu Capitão. Talvez o José Bebiano que esteve na mesma altura em Fajonquito, em rendição individual, possa ajudar o identificar os dois oficiais aqui presentes.
Festa em Fajonquito com a presença de artistas portugueses para animar a malta (1971), ao fundo está o Cap. Borges de Figueiredo a esquerda da cantora Eva Maria.
Foto cedida por José Bebiano
O mesmo grupo de artistas portugueses, constituido por Eva Maria, Tino Costa e Fernando Correia, actuando no palco, em Galomaro (1971)
Foto de Antonio Tavares, BCAC 2912 (1970-72), extraida do nosso Blogue (P13433)
Os nossos amigos da Ferrugem, Torres Berliet e o 1.º Cabo Sérgio (CCAC 3549) na nossa morança, em Fajonquito (1972/73).
Homenagem póstuma ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo(*)
Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap. Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciava alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.
O Cap. Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.
Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap. Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.
Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo.
A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap. Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.
Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen. Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor”.
Bissau, Agosto de 2014
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Notas do editor
(*) - Sobre o Cap Carlos Borge de Figueiredo, ver poste de Cherno Baldé de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)
Último poste da série de 3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque
46 - RETRATO DE UMA FAMÍLIA
A GUERRA, A POBREZA E A PRESENÇA DOS SOLDADOS PORTUGUESES
A minha família, até meados de 1948, ano da morte de Braima Djame Baldé, mais conhecido por Branjame, régulo de Sancorla, integrava o núcleo restrito da casa real (Lamido) deste regulado, direito esse adquirido atravês da nossa avó materna, Eguê Baldé, tia de Branjame.
Nesta qualidade, não se pode dizer que não conheciam os portugueses antes do início da guerra colonial, tendo em conta as ligações de uma aliança histórica mais ou menos estreita, de mútua (des)confiança e de dependência que existiam entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa sediada nas circunscrições mais próximas em Geba ou Bafatá e/ou mais distantes como Bolama e Bissau, para onde os nossos pais, Nahôr e mais tarde Samba-Gaia (que disputaria o regulado com os filhos de Branjame), nossos patriarcas da família se deslocavam com frequência e, em nome das quais, se convocavam manifestações de júbilo ou se procedia a mobilização de homens válidos para as guerras de pacificação do território no decurso do último quartel do Séc. XIX e principios do Séc. XX.
Nessa altura, ouvia-se falar do homem branco como o eco de um som longínquo, que provocava curiosidade e medo pois se todos o queriam ver com os seus olhos, ao mesmo tempo todos tinham a consciência dos perigos que ele representava antes e depois. Antes porque associado ao temível fenómeno do desaparecimento de pessoas. Sim, pessoas que partiam para os seus campos de cultivo e desapareciam, de repente, sem deixar rastos. Depois porque, infelizmente, em África, este fenómeno de desaparecimento de pessoas não findou com o proclamado fim da escravatura, mas continuou durante algum tempo, inclusive sob a forma de sanções administrativas que consistiam na deportação das vítimas para terras distantes, o terrível desterro.
DESTERRO!!??...
Para o homem africano da época, não podia haver nada pior que o desterro que se traduzia no desenraizamento da pessoa e seu afastamento definitivo ou por largo período longe da sua família. Foi nessa época que apareceu no meio popular, entre os fulas, a frase que dizia: “O Branco que veja se o desterro é bom”, isto quando alguém queria fazer ver ao outro que, também ele, não tinha apreciado uma certa atitude deste num dado momento.
A figura do meu pai, El-haj Tambá Baldé
Nesta família pobre e simples que viveu e atravessou a Guerra colonial de ponta a ponta e, ainda sobreviveu ao genocídio silencioso do pós-independência, quero destacar o importante papel desempenhado pelo nosso pai, como chefe de uma família numerosa que conseguiu sobreviver sem sofrer muitos danos ou perdas de vida a lamentar, e tudo graças ao Deus todo poderoso em primeiro lugar e em segundo, graças ao talento de diplomata inato do nosso pai, acompanhado de uma boa dose de bom senso que o permitiram, sempre, aplicar o princípio segundo o qual: “O que é de César a César e o que é de Deus a Deus”, enquanto esteve à testa da família.
Vivendo num meio difícil, de sobreposição de vários poderes (oficial/tradicional, nacional/local, laico/religioso) e de constantes e rápidas mudanças, de guerras e montanhas de intrigas, soube sempre adaptar-se e relacionar-se bem com as condições vigentes sem nunca se comprometer inteiramente, mas também sem nunca se afastar demasiado para não criar suspeitas. Contrariando a vontade da mãe e nossa avó, desde sempre soube receber bem e criar amizades entre os soldados portugueses que, certamente, vinham a nossa casa por causa das nossas primas-irmãs que, na altura, andavam de corpo nu da cintura para cima e com as mamas ao léu.
Não sei, no fundo, se a sua admiração, como qualquer outro, do seu tempo e etnia, pelos portugueses era acompanhado de uma simpatia especial, o certo é que demonstrou sempre por estes muito respeito e consideração no que era largamente retribuído.
Ao contrário dos seus irmãos, nunca se ofereceu e nem foi mobilizado para a guerra e, felizmente, as suas funções de empregado comercial permitiam-lhe satisfazer o mínimo necessário, sem precisar de entrar em aventuras militares ou intrigas palacianas. O longo trabalho com comerciantes lusos criou nele a ambição legítima de fazer dos seus filhos pessoas preparadas para os desafios do futuro, numa época em que o obscurantismo predominava entre as massas camponesas, decisão a que nunca se renunciou apesar dos numerosos obstáculos pelo caminho.
A minha avó paterna, Eguê Baldé
Ao contrário do filho, a nossa avó paterna não mostrava simpatia pelos brancos em geral e, em particular, dos soldados que invadiam a nossa casa em Cambaju. Dizia sempre, referindo-se a presença destes: “Uoú!... tinha que viver para presenciar isto!..”. Fugia do olhar dos militares para se refugiar no interior da sua palhota. Designava-os por “orelhas vermelhas” e não perdia uma única ocasião para falar mal e criticar o comportamento pouco sóbrio dos jovens soldados que, muitas vezes, se comportavam, de facto, como se estivessem em terras por eles conquistadas bem ao estilo dos tempos romanos. Nunca aceitou nada que viesse do quartel e não queria que os seus netos o frequentassem como se tivesse medo que fossem alienados e entregues à razia da guerra que dava os seus primeiros passos e fazia as primeiras vítimas.
Morreu em Cambaju entre 1966/67, pouco antes de mudarmos para Fajonquito, numa idade bastante avançada. Provavelmente, ela era a única que carregava consigo os ecos dos tempos passados, contendo os resquícios de lembranças menos boas dos primeiros contactos com os europeus em África e da prática nefasta do comércio triangular de má memória e que contribuiu para esvaziar o continente da sua população.
O meu tio Dembaro Baldé
O irmão mais velho do meu pai, Dembaro, era a biblioteca da família, conhecedor profundo do percurso histórico dos fulas desde que saíram de Mácina, as crónicas épicas de Alfa Molo e de seu filho, Mussa Molo, no espaço sócio-cultural Firdunkê. Tinha uma grande admiração pelos portugueses em relação aos quais clamava alto e em bom som: “Sambu ghalel Tubakhô, khabhá pôlle gardânne” o equivalente, na língua fula, da famosa expressão latina “Veni-vidi-vici” de Júlio César ou das Lusíadas “Vós portugueses, poucos quanto fortes” (Canto VII) e, não se cansava de nos falar sobre as míticas figuras das guerras tribais no espaço sudanês de Mali, antes da chegada dos europeus e ainda sobre as guerras de pacificação sob a batuta de inigualáveis e intrépidos chefes de guerra portugueses como o Marques Geraldes, Graça Falcão ou Cap.Teixeira Pinto.
A minha mãe, Cadi Candé
A minha mãe era o que os portugueses vulgarmente chamariam de “moura” da casa, a primeira a levantar-se e a última a deitar-se e sobretudo no período de Ramadão, quando se impunha que as pessoas comessem durante a madrugada para poderem jejuar ao romper do dia, então ela, praticamente, não tinha tempo para se deitar e recuperar da fadiga do trabalho quotidiano da bolanha, do campo, da ordenha das vacas, trabalho caseiro e cozinha, sobretudo a maldita cozinha que lhe deu cabo dos olhos; pequeno almoço, almoço e jantar, quando tudo o que existia em casa era um grande amontoado de milho preto ou milho-basil no seu estado natural e que ainda precisava secar, pilar (esmagar), farinhar, separar em grãos, misturar com folhas da calabaceira em pó (lálôh), buscar lenha, pôr ao fogo, etc., etc.
Não sei o que ela pensava dos brancos, nunca nos disse e nunca ninguém lhe perguntou, mas como boa esposa, ela seguia os passos do nosso pai, isto é, tentar ser gentil, bem educada e acolher o melhor possível os hóspedes. Por falar em hóspedes, aqui está uma palavra mágica para os fulas do antigamente que, no decurso de toda a sua vida não faziam outra coisa senão preparar-se para receber bem e condignamente o seu hóspede. Lembro-me que, na infância, só acontecia comermos arroz e carne de galinha ou de algum outro animal no dia em que aparecia, saído de “nul part”, um hóspede qualquer, mesmo que se tratasse de um viajante maltrapilho, um vulgar vagabundo, bastava que não fosse das redondezas. “Felizes os servos que o Senhor, a sua chegada, encontrar vigilantes... porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Lucas 37/40).
Mas, mesmo nessas raras ocasiões, as crianças tinham muita sorte se lhes calhava algum osso para chupar. Lembro-me de ter comido muita tripa de galinha, sim a tripa que deitavam fora, depois de uma apressada limpeza do conteúdo, metia-se na brasa e a seguir para dentro das nossas barrigas redondas, inflamadas de desnutrição crónica. “Se deitas fora é carne desperdiçada, se o comes, comeste merda”, dizia a nossa avó a respeito das tripas.
Samba Candé ou Sam-forrea, meu avô materno
Por várias ocasiões, já aqui evoquei a figura do meu avô materno, o seu nome era Samba que as pessoas transformaram em Sam-Forrea por ser originário da região de Forrea (Contabane). Era caçador profissional e fez parte do contingente mobilizado para a guerra de Canhabaque. Conta a minha mãe que, quando voltou da guerra, estava irreconhecível devido a enorme cabeleira e a barba de muitos meses que lhe cobriam toda a face. Fizeram mais de 60 km a pé, de Bafatá a nossa aldeia de Farimbali. Voltaram de mãos a abanar, como tinham partido, sem dinheiro, sem espólio de guerra. Tinham lutado pela honra de Sancorla e da pátria portuguesa, afirmavam. Claro que esperavam obter alguma compensação material, o que neste caso não aconteceu.
No caminho de regresso a casa teria cruzado com o grupo de pessoas da sua aldeia que o vinham acolher, mas nem eles o puderam reconhecer envolto naquela enorme cabeleira e barba de um ano nem ele os reconheceu vindo daquela ilha maldita dos Canhabaques onde muitos dos seus companheiros tinham perdido a vida, incluindo o príncipe herdeiro de Sancorla, Abdu Branjame, que pouco antes tinha participado numa exposição colonial em Portugal, muito provavelmente a de junho de 1934 no Porto.
Na Guiné, desde o Séc. XIX que os portugueses tinham descoberto e privilegiado a contribuição da classe dos caçadores nos conflitos que os opunham a certos grupos indígenas. Homens singulares, de coragem ímpar e conhecedores do terreno, seriam largamente utilizados também, durante a guerra colonial, principalmente, como guias e/ou para organizar os grupos nativos de milícias e de auto-defesa.
Ao contrário do meu pai, ele era o que se podia classificar de anti-social e politicamente nulo, pois passava todo o seu tempo metido no mato a conviver com as aves e animais selvagens e raramente participava em eventos da comunidade. Homem de poucas palavras, durante as festas religiosas, quando toda a gente se preparava para vestir as suas melhores vestes e pavonear-se na reza colectiva, ele se oferecia para pastar o nosso gado bovino em substituição das crianças que, por norma, tinham essa incumbência.
Em Fajonquito, foi ele que teve a ideia genial de introduzir-me no quartel, quando, na verdade, nunca lá deveria pôr os pés por imposição da minha avó. Se não falava com os seus próprios conterrâneos muito menos o fazia com os jovens soldados portugueses que, inebriados com a visão das bajudas semi-nuas, raramente perdiam tempo com os velhos da tabanca. Pela manhã, quando estes entravam na morança ele pegava na sua “Longa” (arma de fogo de fabrico artesanal que funcionava por meio de pólvora e pedaços de metal embutidos no interior do cano, de frente para trás) e saía para o mato, onde fazia dias ou semanas antes de voltar. De vez em quando lá trazia partes de uma gazela ou de porco-espinho que distribuía pelos familiares, amigos e vizinhos.
Mariama Baldé ou Néné-Maudhô, a minha avó materna
De todos os membros da família, foi ela que mais me marcou em virtude da sua insistente e inútil teimosia de fazer de mim um homem de bem, deveras. Nunca desistiu, desde a idade de 4 ou 5 anos, em meados de 1964, quando fugimos juntos do primeiro ataque a nossa aldeia e, desorientados pelo medo, acabamos por dormir no meio de uma bolanha infestada de bichos e capim selvagem, com folhas tão afiadas que nem facas de cirurgião. No dia seguinte, quando finalmente nos encontraram, tínhamos cortes em tudo que era corpo, mas pelo menos estávamos vivos.
Incansável, todas as manhãs ia a casa que servia de dormitório dos rapazes para nos lembrar que a sorte estava com aqueles que se levantavam cedo, depois da primeira oração da manhã. Até hoje não o consegui fazer. Todas as tardes, antes de escurecer ia procurar-me a fim de certificar-se que já tinha tomado banho e trocado de roupa.
O seu nome era Mariama Baldé, ou Néné-Maudhô (Mamãe-velha) e faleceu em 1994 estava eu, na altura, em Lisboa. Como habitualmente acontece, só damos o devido valor àquilo que já perdemos. Era uma mulher alta e sofria de elefantiase numa das pernas o que lhe dava um aspecto algo bizarro em que uma das pernas era normal e pequena e a outra exageradamente grande e deformada, facto que a impedia de usar sapatos.
No entanto, era a todos os títulos uma pessoa especial e de valor inestimável para mim, pois ela foi a minha guardiã e verdadeira educadora durante a nossa atribulada infância e adolescência que se estende, praticamente, desde o inicio da guerra no norte (1964) até 1975, altura em que deixei a família para continuar os meus estudos no Liceu de Bafatá.
Dizem que ela viveu os cem anos, é bem provável. Não raras vezes, nas narrativas sobre a sua juventude, referia-se à cidade de Farim, importante centro de trocas comerciais em princípios do Séc. XX, onde as jovens bajudas iam trocar ou vender produtos junto dos comerciantes europeus e sirio-libaneses como o Coconote ou a borracha natural, extraído de uma planta selvagem e concentrado em formatos redondos como as bolas de futebol, resultado de meses e meses de labuta na floresta.
A Néné-Maudhô encarava a sua obrigação de nos dar uma boa educação de tal modo que era capaz de tudo para cumprir com a sua obrigação. Uma vez, já era quase noite e ainda não tinha saído do quartel para casa quando, surpreendendo tudo e todos pela ousadia, a minha avó penetrou dentro do quartel à minha procura. Passou pela sentinela na porta de armas que ou estava apanhado do clima e já não distinguia uma bajuda de uma mulher grande ou se calhar julgara tratar-se da lavadeira do 1.º Sargento e por isso, não queria arranjar encrencas.
A semelhança de todas as mulheres grandes que conheciam o irreverente atrevimento dos soldados nas tabancas, procuravam sempre ficar longe para não servir de bode expiatório às suas maluquices o que, de forma alguma não queria dizer ter medo, pois no dizer da minha avó, estes não passavam mesmo de “crianças grandes”, irrequietas e mal-educadas.
A sentinela saiu da sua sonolência acordado pelo barulho das vozes que de todos os lados gritavam dentro do quartel dirigindo-se a pobre da minha avó com uma canção que lhes era peculiar naquele tempo:
- “mulher grande cá tem cabaço óh-lé-lé-lé-lé... foi o Manel que o tirou óh lé-lé-lé-lá...”- no meio da algazarra de assobios e gargalhadas.
Imperturbável, ela seguiu caminhando e a todos que a perguntavam através da mímica gestual o que procurava ali, respondia em língua fula por uma única frase que ela sabia ser irreversível, aconteça o que acontecesse, universal, até ao fim do mundo: “Tcherno Abdulai!.. o meu neto... vai pra casa... já e agora!..”. Com excepção dos meus colegas rafeiros, ninguém sabia quem era o Tcherno Abdulai, pois no quartel o meu nome era Chico e por isso, os soldados pensavam estar diante de uma velha maluca com duas pernas diferentes uma da outra.
Assolada por uma multidão cada vez maior de soldados curiosos, não arredou pé enquanto não foram à caserna dos condutores, onde era faxina, para me alertarem. Tinha sido a primeira vez, mas não seria a última e, as tantas, o Dias (o meu amigo e patrão), quando via a sua silhueta invulgar aproximar-se da porta de armas, antes que se iniciasse o diálogo de surdos entre a sentinela e a minha avó, gritava com a sua voz rouca:
- Óh Chico, desanda dai que a velha já está a tua espera!...
Com estas palavras de alerta, sabia que estava na hora de deixar o quartel e voltar pra casa, que a minha avó estava ali a minha espera donde não arredaria o seu pé de elefante com que assustava os soldados, mesmo com tiros de G3.
Passados muitos anos depois, quando li o maravilhoso livro “A Mãe” do escritor russo, Máxim Gorki (Alekxei Makxímovich Peshkov), não podia deixar de pensar na minha avó e compreender finalmente, que estava perante um fenómeno universal. Então os meus sentimentos de raiva e de ódio devidos a teimosia daquela mulher grande se transformaram, de repente, numa grande compaixão.
No que me concerne, depois do choque inicial, pouco a pouco comecei a ser atraído pelo quartel tal qual a luz nocturna atrai os pequenos bichos voadores. A curiosidade de conviver e conhecer pessoas diferentes, o gosto pela comida do quartel tinha começado desde Cambaju entre 1965/67, mas em finais de 1967 ou inicio de 68, o nosso pai foi transferido e mudou com a família para Fajonquito. Nessa altura o aquartelamento situava-se no meio da tabanca e havia alguma promiscuidade entre a população local e os militares ocupantes do quartel que se traduzia na infiltração constante das crianças na zona ocupada pelos soldados.
Em 1969, com a chegada da companhia do Cap. Carvalho fez-se um reordenamento que transferiu toda a população do lado oeste para leste e isolou o aquartelamento com arame farpado e portas fechadas. Este sistema de apartheid, por assim dizer, por um lado permitiu separar as águas e impor certa ordem e disciplina no quartel, mas por outro criou um fosso enorme entre dois mundos que se complementavam mutuamente e que, pouco a pouco, se foi aumentando para se transformar numa guerra fria de mútua desconfiança. Este facto não será alheio ao destino final do comandante da companhia antes do fim da sua comissão.
Cherno Baldé, aos 14 anos, em Fajonquito (1974)
Cherno Baldé, estudante do Instituto Superior de Economia de Kiev (1986/90), com duas colegas (russa e ucraniana) da mesma promoção. A imagem que serve de fundo é o rio Dnepr que divide a cidade de Kiev em duas partes
O meu irmão Carlos (2 anos mais velho, hoje Farmacêutico, formado pela faculdade de Farmácia da Universidade Técnica de Lisboa), durante a alocução por ocasião do dia 10 de Junho de 1971, Dia de Portugal e de Camões, na escola primária de Fajonquito. Na imagem estão dois oficiais da companhia do Cap. Figueiredo (CART 2742), um dos quais, o Alferes Félix encontrou a morte no mesmo dia que o seu Capitão. Talvez o José Bebiano que esteve na mesma altura em Fajonquito, em rendição individual, possa ajudar o identificar os dois oficiais aqui presentes.
O amigo José Cortes (CCAC.3549 - 1972/74), junto a porta d’armas do quartel de Fajonquito
Festa em Fajonquito com a presença de artistas portugueses para animar a malta (1971), ao fundo está o Cap. Borges de Figueiredo a esquerda da cantora Eva Maria.
Foto cedida por José Bebiano
Foto de Antonio Tavares, BCAC 2912 (1970-72), extraida do nosso Blogue (P13433)
Os nossos amigos da Ferrugem, Torres Berliet e o 1.º Cabo Sérgio (CCAC 3549) na nossa morança, em Fajonquito (1972/73).
O 1.º Cabo Condutor-auto, Sérgio Rodrigues, fazendo companhia às bajudas, Fajonquito (1972/73)
Homenagem póstuma ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo(*)
Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap. Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciava alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.
O Cap. Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.
Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap. Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.
Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo.
A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap. Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.
Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen. Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor”.
Bissau, Agosto de 2014
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Notas do editor
(*) - Sobre o Cap Carlos Borge de Figueiredo, ver poste de Cherno Baldé de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)
Último poste da série de 3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque
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