quarta-feira, 1 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14819: Os nossos seres, saberes e lazeres (103): Tomar à la minuta (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 2 de Junho de 2015:

Queridos amigos,
O Convento de Cristo tem um polo magnético, atrai e nunca repele. Domina a cidade, é o ADN da Reconquista, do fervor das cruzadas, o alfobre da Ordem de Cristo, indo por aí fora chegamos mesmo à industrialização. E há igualmente a história que se omite ou que se encara como uma acidentalidade: as suas belas quintas, o romanço do Nabão, as capelas, o lugar de encruzilhada. E há também outra evidência, o fervor do Espírito Santo, que se irá manifestar em Julho na grandiosidade desse rio místico que dá pelo nome da Festa dos Tabuleiros.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (6)

Beja Santos


Não acredito que exista no mundo uma rotunda tão fluorescente, flamejante, mística e grandiosa como esta. E não é só a rotunda e os seus apelos aos guerreiros da Ordem do Templo que aqui vinham buscar tónus e ardor para a missão que os esperava, algures no Próximo Oriente. E depois é envolvente, a mais estranha simbiose de retábulos dourados, de prodígios da figura flamenga, nunca se viu tão desmesurada convocação do Antigo e do Novo Testamento. É por isso que vou e venho, regresso e parto, com bonomia e vivacidade, sei que há muito a aprender, até gente admiradora da cabala aqui vem fazer as suas preces, à procura de mensagens encriptadas templárias. E o que seria a vida sem este furor misterioso dos segredos templários?


Bom, nesta imagem nada há de transcendente, há mesmo para ali um escusado negrume. É só para vos mostrar como os artistas de D. João III quiseram entaipar os delírios manuelinos, não serve qualquer prédica de moral, mas fico triste como foi possível, sei lá se por pretexto religioso, por zanga de filho contra o pai, este atentado de lesa-cultura, emparedara a beleza do altissonante manuelino.


Isto de ser turista encartado tem as suas vantagens, adquire-se um bilhete sénior e é um regabofe, entra-se e sai-se sempre na mira de apanhar detalhes com luz suficiente. Foi o caso destas lápides, a construção do convento não escapou à regra das reciclagens e confesso que gosto do resultado, é assim em toda a parte do mundo. Já vi uma imponente casa senhorial inglesa construída com pedras pilhadas de abadias medievais, o efeito é surpreendente, lembra certas igrejas de Roma e os aproveitamentos dos templos imperiais. Não faz mal, a gente aprende a ler a História ao contrário, às vezes dá jeito.



À entrada do convento temos esta imagem belíssima, vibro com as cores do panejamento do Pai Celeste e a ternura com que suporta o seu Filho Unigénito. Vou deambulando, vejo túmulos em série, alguns deles encravados em nichos, o resultado é espetacular. Quem não sabe é como quem não vê, é o meu caso mas que gosto gosto, e muito. E não se discute mais.


O que aqui me atrai é o ângulo da charola, parece que se embebe à torre cimeira, e depois há o verde, a Primavera tem o dom de gerar estas luminescências, estes sombreados, até parece que a charola ganha tons púrpura, ao sol do meio-dia, fica uma charola afogueada.




E pronto, voltei à charola, agora sim tenho a luz que preciso para me deslumbrar com este arco mandado fazer pelo Rei Venturoso, é um forrobodó de cores, a seguir temos pintura da muito boa, não só a charola foi restaurada como se limpou toda a arte envolvente, esta capela parece que tem lingotes de ouro, fico enternecido com as dimensões do altar e o equilíbrio que lhe dá a imagem. Questiono se esta disposição vem assim do passado, não importa, o que estou a ver e a emoção estética é que prevalecem.


Do lado de fora está a janela do capítulo, enganei-me na hora para captar a boa luz, peço desculpa, mas há acidentes que ajudam a ver melhor aquelas nervuras que parecem puzzle e que aumentam, por ilusão ótica, a altura da sala do Capítulo. É um bonito acasalamento entre a sobriedade e a espetacularidade de nervuras tão singelas.



Chegou a hora de nos despedirmos do Convento de Cristo, um espaço muito procurado por esotéricos e cabalistas. É uma formosura sem par, está aqui alguma da melhor pedra cinzelada que se pranta no nosso território, lindas galerias e claustros, veja-se este pormenor e pergunte-se o que seria deste monumento se estivesse aprimorado de uma ponta à outra. Agora o turista desanda para outras paragens, quer captar pormenores aquém e além deste vigor transcendental templário. É só uma questão de nos pormos a caminho. Tomar é inextinguível, é uma história interminável.

(Continua)
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Nota do editor

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Guiné 63/74 - P14818: Parabéns a você (930): Silvério Lobo, ex-Soldado Mecânico Auto do BCAÇ 3852 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14811: Parabéns a você (929): Manuel Maia, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 30 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14817: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIb Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

1. Conclusão da II Parte de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 20 de Junho de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67).


GUINÉ, IR E VOLTAR - II

Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (2)

Coluna para Farim

Viaturas prontas, sacos de areia nos lugares da frente para o condutor e acompanhante, se houvesse voluntário. Os militares, oito a dez, mais nativos com paus, sacos aos ombros, galinhas, porcos, bidões vazios, tudo a monte nas caixas das Mercedes e GMCs.
Como é que todo este pessoal teve conhecimento que havia coluna para Farim, se só ontem à noite fora informado pelo comandante da companhia que a preparasse?

À saída de Cuntima, rumo a Farim com paragem em Jumbembem

A coluna tinha-se posto em marcha de Cuntima para Farim, com uma paragem em Jumbembem para os habituais cumprimentos ao pessoal da CCav 488 e ao comandante, um jovem tenente11, chegado também não há muito tempo.

Pessoal de Jumbembem, amigo e simpático

Cerca de trinta e tal quilómetros em pouco mais de três horas, com impedimentos menores. O furriel Covas descrevera-lhe os procedimentos habituais. Largar o pessoal civil à entrada de Farim, atravessar a povoação rumo ao posto de comando do batalhão e depois como manda a cavalaria, dispor as viaturas em linha, militares dentro delas em sentido, bolsos apertados, e o comandante da coluna deveria dirigir-se para o posto de comando e apresentar-se ao Comandante do batalhão, Tenente Coronel F. Cavaleiro.
Dá licença, meu Tenente-Coronel, apresenta-se o comandante da coluna procedente de Cuntima.
Mande seguir aos seus destinos, encarregue o sargento mais antigo, o nosso alferes fica aqui, almoça connosco.
Apresentou-se aos alferes, capitães e ao major Paixão Ribeiro, 2.º comandante, quase todos com trombas de 18 meses de comissão.
Depois, à mesa, perante o silêncio geral, seguiram-se as perguntas do Tenente-Coronel Cavaleiro. E como vão as coisas por Cuntima? Quando foi a última vez que saíram para o mato? Para onde? O que aconteceu? A que horas? Quanto tempo lá estiveram? Quando foi a última vez que o vosso capitão saiu com vocês? Quando? Com quem? Nem dava tempo a engolir o arroz com frango do almoço.

O rio Cacheu na margem do lado de Farim. © Foto do Autor.

Deu as voltas todas durante a tarde, inteirou-se dos carregamentos, teriam que pernoitar em Farim, os combustíveis vindos de Bissau estavam ainda a ser descarregados.
Uma volta pela povoação, pouca coisa para ver, uma lata de anchovas e uma cerveja numa esplanada para entreter.

Homem Grande da tabanca

O rio Cacheu em Farim

Tabanca de Farim. © Foto do autor.

Onde dorme? No quarto do alferes Mealha, lá tem sempre vaga, respondeu-lhe o capitão Arriscado Nunes.
No meio do silêncio que já se sentia àquela hora, um chinfrim enorme, do quarto que lhe indicara o capitão. É ali que vou dormir?

O Mealha? Excesso, em tudo! Intelecto vigoroso, ironia cortante, um autoclismo a falar, muita cerveja, todas as noites até cair para o lado, ele e quem tivesse o azar ou a sorte de estar nas proximidades. E sempre a suar, como se estivesse a sair do chuveiro. Tudo nota vinte, uma força da natureza, concordavam todos os que com ele privavam.
Nascera com sorte, de boas famílias como então se dizia, latifúndio registado no Alentejo, espigara rodeado de mimos, criadas para quase todas as dependências da casa. Mal dera pela passagem pelo liceu, anos e cadeiras a jacto. Registada na caderneta escolar ficou a suspensão decretada pelo reitor, apesar do respeito reverencial pela família, sanção imposta pelo pai que, nessas coisas primava pelo exemplo.
No decorrer de um campeonato que metia fita métrica, a jovem professora de inglês tê-lo-á apanhado a medir o instrumento, numa cadeira lá para trás de uma turma com 31 rapazes. Corada até nos cabelos loiros, contou o Zé Russo, a professora decidira acabar ali a aula e chamar o reitor, uma medida demasiado drástica no entender de quase todos os alunos e de alguns professores.
E a aula de inglês daquele dia acabou mesmo ali. Parece ter sido este o facto mais marcante da passagem, aliás brilhante em termos de aproveitamento escolar, do Mealha pelo liceu.
O pai, advogado, da situação ainda a somar, despachou-o com uma criada, para uma casa que tinham em Lisboa, ali para os lados do Príncipe Real, naqueles anos ainda um sítio muito calmo.
Nas recomendações iniciais que o pai lhe fizera, a importância em assistir às aulas dos mestres dos direitos todos, sem esquecer claro, a brilhante cabeça do Professor Caetano, uma inteligência de agora e do futuro, que ele, Mealha, deveria ter em conta se quisesse encarreirar. As aulas, como era de prever, passaram depressa, mal deu por elas, as necessárias para medir o pulso dos professores, pedidos de esclarecimento contínuos, tudo entendido até à próxima aula, quando calhasse.
Em cinco anos tinha a licenciatura na mão que era o que o pai queria. A tropa, à espreita, mal acabou o curso, vestiu-lhe um fato zuarte, que ele, como outros, nunca vira nem em sonhos e despachou-o para a escola mais perto de casa, no caso a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, onde deu abundantes provas de como montar a sério.

No cais da Rocha Conde de Óbidos estavam todos de escuro, a mãe, as avós, as criadas que couberam nos dois carros, todas com lenços nas mãos, as lágrimas a escorrerem, e o pai claro, comovido, uma oportunidade única na tua vida, a defesa da Pátria, os valores da civilização, foi assim que contou quem assistiu.
Acordou na Guiné sem se lembrar bem de todos os episódios da viagem, salvo uma conversa que fora obrigado a ter no navio, com o Comandante do Batalhão, conversa que não lhe correra lá muito bem. O Tenente-Coronel, militar encarniçado, homem direito e competente, discursara-lhe na cara os valores da Pátria, do Exército, da Cavalaria, até a família nomeara!
Há três dias em Bissau, novo episódio, desta vez com a participação da Polícia Militar. O Tenente-Coronel fartou-se, deve ter concluído que tinha mais que fazer.
E o Mealha continuou o seu percurso, sempre ao lado do batalhão, cervejas até cair para o lado, ele e quem o acompanhava, às vezes com as cadeiras, as mesas, as garrafas vazias, empregados, patrões, polícia militar, o que estivesse na frente. E foi assim que um oportunista, daqueles que aparecem sempre, lhe chamou Medalhas, e logo a seguir, um nome mais abrangente, Medalha com letra grande para abarcar todas.
Os três alferes que partilhavam a enorme sala que lhes servia de quarto estavam a começar mais uma noitada, eram para aí nove da noite, os dois frigoríficos a abarrotarem de líquidos, garrafas já vazias pelo chão, lençóis desalinhados, sumaúma a cair de pára-quedas, camisas desabotoadas até baixo, o Mealha só com umas cuecas, mas até ao joelho.
Cama para mim há?

Mal tinha acabado de adormecer, acordou, a cama molhada, bêbedo de cheiro a cerveja, o Mealha com sabão na cara, ó maçarico dum raio, a coluna está lá fora à tua espera.
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Nota:
11 - Fernandes Thomaz

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Javalis na estrada

A coluna estava diferente, as viaturas atestadas de farinha, vinho do Cartaxo em garrafões, leite condensado e outros líquidos, cunhetes com munições, marmelada em caixotes, latões com chouriço e outros enchidos, outros nativos com outros sacos, outras galinhas, porcos diferentes, uma ninhada acabada de ser parida. Ainda não tinha percebido bem este movimento dos civis, vêm uns para cá, vão outros para lá, mas adiante para o posto de comando, outra vez viaturas em linha, procedimentos idênticos aos da chegada.
Iam a andar bem, mais devagar, claro, até que atingiram a curva da morte, uma história que se contava em todos os lados ter-se-ia passado ali também.


De um momento para o outro sentiu-se empurrado para a berma da picada, uma fuzilaria tão grande que nem nos exercícios da carreira de tiro da Carregueira. Deu por ele deitado, a G-3 em posição, com o dedo no gatilho. Olhou em frente, a bolanha a perder de vista, saltou para o lado errado, claro, foi o que pensou.

Deixa lá ver, deve ser do outro lado, a fuzilaria em bom ritmo, pensou duas vezes, mais uma, aí foi, agachado, quase colado ao chão como lhe ensinaram nas matas de Mafra, ziguezague por entre duas viaturas até à outra margem da estrada, outra vez a G-3 em posição, olhou em frente, tudo capinado, um tronco aqui, outro além, montículos de baga-baga12 ainda pequenos. Então, onde estão os turras? Alguns soldados de pé, gargalhadas nervosas, o Furriel Covas, não é nada, alto ao fogo, não é nada, parem essa merda, porra!
Na caixa da viatura da frente, um soldado da secção do furriel Quadrado atento a todos os movimentos, terá visto uma vara de javalis a atravessar a picada e deve ter-se lembrado da fome que passou no Como.
Que grande reabastecimento, dedo fácil no gatilho, as balas a bater nas rodas das viaturas lá de trás e a resposta concludente, como ainda se ouvia. Quase tudo normalizado, rodas para substituir e um militar não ouvia nem via nada, nem queria, só a G-3, as mãos no carregador encravado, a aflição na cara, não sai, encravou-se!
Quase noite entraram em Cuntima.
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Nota:
12 - Baga-baga é o nome por que são conhecidas na Guiné as formigas térmitas, que constroem ninhos de argila, duros como pedra, com metros de altura.

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Sitató

Um dia destes vou sair com o pelotão, meu capitão, mas a outras horas, se não vir inconveniente, claro. Para onde? Para onde costumamos ir, Faquinas, Sitató, para esses lados!
Tem mas é juízo, pá, o Didi logo. Já tivemos guerra que chegasse, não precisamos de mais sarilhos! Temos tido paz aqui na zona, custou-nos muito ganhá-la. Cuidado, meu capitão!
O pessoal está cá há muitos meses, há muito tempo, já viu e já fez muita guerra. Falta-lhe pouco para regressar à metrópole. Precisa mais de quem o proteja do que gente que o meta ao barulho. Mas Cuntima, meu capitão, isto é um corredor, uma pista desimpedida para a guerrilha, para meterem minas e armas no Oio, vêem-se os trilhos pisados de fresco, passam todos os dias por eles.

A minha ideia, meu capitão? Sair daqui sem espalhafato, a uma hora diferente, permanecer na zona até eles aparecerem. Se vamos sempre para o mesmo sítio montar emboscadas, se nunca os encontramos e se o caminho está sempre pisado de fresco, só não os apanhamos se não quisermos.
Ao princípio de uma tarde daquelas, numa conversa com o Covas, escolheu-se quem deveria sair dali a uma hora. A seguir formou-se o pelotão na presença do capitão, que fez questão de assistir à partida. Vamos dar uma volta por aí, quem quer vir?
Voluntários, só voluntários, atalhou o capitão, e o pelotão todo a dizer, eu vou.
Tu, tem mas é juízo! Mas eu também quero ir, meu capitão, o soldado a insistir!
Dos furriéis só não foi um, que alegou estar um pouco febril e se calhar não tinha muito jeito para voluntário. 22 mais um guia indígena e 5 auxiliares nativos prepararam-se logo de seguida. Saíram da povoação em duas viaturas, em direcção à fronteira, logo ali. Uns minutos depois, apearam-se e internaram-se no mato, por um carreiro que mal se via, de há tanto tempo não passar ali ninguém.

Pelotão a caminho de Sitató, na fronteira com o Senegal. © Foto do autor.

Foram andando com cuidado, devagar, mais separados uns dos outros, sem grandes barulhos. Afinal, o pessoal sabe andar no mato. Avistaram a tabanca de Faquina Mandinga, abandonada há anos. Chegados perto do local onde costumavam emboscar-se, prosseguiram pelas margens do trilho, até à fronteira.
Para os lados de Sitató13, quase em frente a Koldá, no Senegal, da mata avistaram um local descampado e acertaram com um trilho todo marcado com pegadas recentes. Abrigados em arbustos e montes de baga-baga, estabeleceram uma frente em curva de cerca de 100 metros, ao longo do trilho que vinha do Senegal, com a bolanha em frente, um ângulo de visão de mais de 180 graus. Uma volta pelo pessoal para ajustar algumas posições individuais, pareceu estar tudo em ordem.
Todos na expectativa, prontos para o que desse e viesse. E dispostos a esperar, pelo menos até ao meio-dia do dia seguinte. Mas eles devem aparecer antes.
Deitou-se com a G3 ao lado, tirou do casaco a Agfa que recebera de Angra uns dias antes, para o caso de haver motivos.
Eram para aí 17, 17 e 30, quando se ouviu uma voz muito baixa dizer, atenção malta, vêm aí gajos! É agora, o coração a dizer-lhe conta comigo. No meio de um silêncio enorme, ouve-se uma culatra a ser puxada atrás, um barulho que até eles devem ter ouvido. Agora? A que propósito?
Uns tiros, uma rajada, depois uma girândola de rajadas para o descampado em frente, tudo em pouco mais de um minuto. Sacos pelo chão, gritaria, um intruso a mancar com uma bicicleta ao lado, a tentar montar para cima dela, uns tipos caídos a gemer, um nem se mexia, os valentes alentejanos pareciam que estavam a jogar rugby, todos ao monte para cima deles, para aí 5 ou 6, cada um a fugir para seu lado, seus filhos desta e daquela. Sacos, de arroz, sal e cola, duas bicicletas, um caixa com granadas, duas com munições, uma Mauser, portuguesa em tempos, livros de leitura em português e correspondência, no meio de outras tralhas. Uma pequena secção de reabastecimento do PAIGC posta fora de combate em pouco mais de meia hora.
E o trabalhão que foi pegar naqueles alentejanos e pô-los de regresso, com os prisioneiros feridos em padiolas improvisadas? Levou mais tempo a regressarem do que a irem, está bom de ver.
Pelo caminho iam fazendo perguntas aos infelizes que tinham sido apanhados, para onde tanto arroz, para família, e livros, para meninos da família aprender a ler, cola para a família também, e que família é essa? É uma família muito grande, não é?

E quem foi o artolas que puxou a culatra atrás? Quem usa Mauser14 aqui, os milícias, quem havia de ser! Meu alfero, turra vinha lá! Mas porquê, logo quando eles estavam a entrar na zona de morte?
Este sim, foi um baptismo de fogo! Era assim que gostaria que fosse sempre, apanhá-los à sorrelfa, sem darem por ela.
Avistaram Cuntima ao longe, a noite já fechada, os petromaxes acesos, e, junto ao arame farpado, militares e população civil a olharem. O capitão, ao encontro deles, então?
Eu não lhe dizia que era uma questão de horário, meu capitão?
Vamos ver, vamos ver! Vá-me dando pormenores, vamos para o posto de rádio, vá falando15.
Uma desorganização total, meu capitão. Um milícia precipitou tudo, lembrou-se de puxar a culatra da Mauser. E depois, cada um fez o que lhe deu na mona, abriram fogo, a correrem todos a monte, sem segurança nenhuma. Mesmo assim não foi mau, meu capitão.
Espera-lhe pela volta, o Didi a virar costas, quem havia de ser?
Mas a guerra, de facto, tomou conta de Cuntima. Foi como se tivessem mexido num enxame de abelhas. Uma ou duas semanas mais tarde, a outras horas, nova emboscada, e desta vez ninguém puxou a culatra antes. Depois, umas minas, a seguir um ataque a Cuntima. Nunca mais houve paz ali.

A fronteira da Guiné tinha sido riscada num mapa, era mais administrativa que outra coisa, não correspondia a nenhuma divisão real entre as pessoas ou etnias. Familiares viviam de um lado e do outro, às vezes mudavam-se com as famílias todas atrás.
Em Cuntima fazia-se muita psicossocial. O médico, um açoriano da Terceira, era um homem bom, com espírito muito prático, não protestava com as condições precárias. Era preciso, fazia-se. Sempre disposto a dar uma ajuda àquelas populações, eram sempre horas.
Mais que uma vez, o doutor Lourenço tivera que ir ao Senegal ver gente doente. A tropa conduzia-o até à fronteira, depois entregava-o aos guardas senegaleses que o acompanhavam até à tabanca.
No passado, aquela gente nunca tinha tido um apoio tão grande como agora. Ajudavam-se os nativos na construção das casas, providenciavam-se mosquiteiros, faziam-se desinfestações, limpavam-se caminhos, abriam-se outros. Nunca faltavam voluntários para ajudar. Nem precisavam de arregaçar as mangas, andavam sempre quase todos em tronco nu.
De facto, naqueles dois ou três anos, desde que o PAIGC tinha iniciado a guerrilha, estava a fazer-se mais por aquela gente do que nos outros anos todos para trás. Isto, se se levasse em conta o que se via feito até então. Quase nada. A guerra tem destas coisas.
A companhia militar estacionada em Cuntima, Colina do Norte como era agora chamada, tinha um efectivo a rondar os 150 homens, a esmagadora maioria já a meia dúzia de meses de regressar à metrópole.
Alguns, muito poucos, estavam lá em rendição individual, para tapar as falhas que ocorrem sempre. Era o caso do alferes chegado há pouco mais de um mês e de outro chegado dois ou três meses antes.
Os outros alferes, o Didi e o Ferreira tinham partido de Estremoz com o 490.

O Didi tinha o tamanho de um português, um ar de bem-nascido, com o sotaque do Rio, muito pronunciado. Totalmente contra, dava a entender, por vezes, estar tão próximo dos guerrilheiros como das tropas que comandava. Um bom coração para as questões humanitárias, sempre pronto a ajudar, quase sempre de má vontade para tudo o que fosse acção ofensiva contra a guerrilha.
O Ferreira mantinha-se ao largo destas discussões, não se manifestava, por cansaço ou por outro motivo. Falava da namorada e da mãe, com os olhos brilhantes para as fotos ao lado da cama. Tinha ganho no Como a imagem do alferes mais operacional da companhia, os soldados falavam dele com respeito, via-se que tinha ascendente.
Os outros dois alferes da Companhia que com eles tinham partido de Estremoz, já estavam na metrópole, ambos evacuados, o Sequeira por doença incapacitante e o outro, o Monteiro, atingido por estilhaços de um engenho explosivo que obrigaram à evacuação para o Hospital Militar da Estrela.
O alferes que estava a substituir o camarada evacuado para a Estrela, acreditava no Império, em Portugal do Minho a Timor. De mãos dadas com as populações, de arma na mão contra os que se opunham.
Impensável, não via como podiam ter entre eles quem pensasse como o Didi. Tanto choque de pontos de vista em tão pouco tempo, a guerra deixou de ser motivo de conversa, evitavam-na. Limitaram-se a conviver o resto do tempo que permaneceram juntos. Quando, por qualquer motivo, um deles insistia na conversa da guerra, o outro, como se tivessem combinado antes, punha-se a falar do Benfica e do Sporting ou então ia dar uma volta.

O capitão, um pouco sobre o alto, magro, algo distante, olhar desconfiado, deixava as coisas andarem. Via-se nele o desejo de acabar a comissão o mais depressa possível, sem mais chatices, o que não era nada fácil com um Tenente-Coronel daqueles.
O doutor Lourenço falava dos doentes e de Angra, a cidade onde nascera. Agora que tinha ali um recém-chegado da sua terra puxava-lhe pela língua. Conheceste o quê? O Monte Brasil e as Lajes, claro, a Praia da Vitória, a Terra Chã, a Serreta, os Biscoitos, e que mais? Visitaste o Palácio dos Capitães-Generais, o Outeiro da Memória, a Igreja da Misericórdia, os Impérios, o Algar do Carvão? E que gente conheceste? Em que café paravas, ora diz lá! No Internacional do Mário?
Horas de conversa, perguntas atrás de perguntas que lhe serviam para matar saudades da sua ilha. E a namorada terceirense, que tal? Não tens? Então de quem são as cartas que vem de Angra? Como sei? Ora, pelo endereço, calhou ver, só isso, mais nada. Olha, por acaso conheço a família dela, e a ela também, cheguei até a ver-lhe a garganta!
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Notas:
13 - Um dos corredores que a guerrilha utilizava para Canjambari e daí para o Oio
14 - Espingarda de repetição, de origem alemã
15 - Nas regiões fronteiriças, o adversário procura pôr-se a coberto da acção das NT refugiando-se nos territórios vizinhos. Uma emboscada montada nas cercanias de Cuntima, foi bem sucedida e causou dois mortos e vários feridos confirmados. Os bandoleiros fugiram para a República do Senegal, donde flagelaram as NT. Nesta acção foi capturado armamento, munições, material diverso e abastecimentos.’ Do Boletim n.º 6, do E.M.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

Guiné 63/74 - P14816: Agenda cultural (414): Apresentação do livro, da autoria do nosso camarada António Marques Lopes, "Cabra Cega - Do Seminário para a Guerra Colonial", dia 3 de Julho, pelas 17h30, na Biblioteca Municipal do Marco de Canaveses

C O N V I T E


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Nota do editor

Último poste da série de 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14791: Agenda cultural (411): "Guiné-Bissau: Biodiversidade, desenvolvimento e cooperação", audição pública promovida pelo Grupo Parlamentar de Amizade Portugal-Guiné Bissau: Lisboa, Assembleia da República, sala do Senado, 6ª feira, 26, 14h30-18h: sessão de livre acesso.

Guiné 63/74 - P14815: Sondagem: Os rios Geba (26%), Cacheu (20%) e Corubal (14%) colhem as preferências de 60% dos votantes... Resultados preliminares (n=85)... A votação encerra a 3 de julho, 6ª feira, às 7h00


Guiné > Região de Quínara > Mapa de Empada (1955) > Escala 1/50 mil > Rio Fulacunda (ou Bianga), afluente do Rio Grande de Buba.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  "Porto fluvial", no Rio Fulacunda > Chegada de uma LDP [, Lancha de Desembraque Pequena]

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados.[Edição: L.G.]



Guiné > Região de Cacheu > Bissorã  > "Eu e o Forcado, ambos em traje domingueiro, atravessando a ponte sobre o rio Armada, que separava Bissorã da Outra Banda". [Foto do álbum do Armando Pires, ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70].

Foto (e legenda): © Armando Pires (2009). Todos os direitos reservados [Edição: LG].

O meu conterrâmeo, amigo, vizinho e colega de escola Ludgero Henriques de Oliveira, sargento chefe (Sch), reformado, da Marinha (1947-2011), fez parte, como fogueiro, da tripulação da mítica LDM 302. atacada e afundada em 19 de dezembro de 1967, quando descia o rio Cacheu, frente à clareira de Tancroal.   Mas já antes, em 4/10/1965,  no rio Armada, afluente do Cacheu, em missão de transporte de forças terrestres, a LDM 302 fora  atacada das margens com metralhadoras ligeiras e granadas de mão, resultando 10 feridos ligeiros entre os militares embarcados. São apenas dois episódios do seu historial de guerra. (LG)



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) > Catió - Porto exterior > Foto 3 > "Cais do porto exterior de Catió no Rio Cagopere. Da esquerda para a direita, os  fur mil Cabrita Gonçalves, Machado e Mendonça,  e o civil sr. Barros.

Foto (e legenda) do nosso saudoso grã-tabanqueiro Victor Condeço (1943/2010), ex-fur mil, mecânico de armamento, CCS/BART 1913  / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Destacamento de Ganjola > Rio Cumbijã > 1965 >O nbosso ex-mil João Sacôto,num "momento de descontração"

Foto (e legenda): © João Sacôto (2015). Todos os direitos reservados [Edição: LG]


I. Eis os primeiros resultados da nossa sondagem desta semana (*):

Três rios recebem as preferências de 60% dos nossos leitores que votaram, até agora:

5. Geba > 22 (25,9%)
1. Cacheu > 17 (20%)
3. Corubal > 12 (14,1%)


Seguem-se mais quatro  rios que congregam as preferências de menos de um terço (31,7%) dos votantes;

2. Cacine > 7 (8,2%)
4. Cumbijã > 7 (8,2%)
7. Mansoa > 7 (8,2%)
6. Grande de Buba > 6 (7,1%)

Eis as restantes categorias (residuais) escolhidas:

8. Tombali > 0 (0%)
9. Outro (o que corria junto do sítio onde estive) > 3 (3,5%)
10. Outro (não referido acima) > 1 (1,2%)
11. Nenhum > 3 (3,5%)


Nº de votos apurados: 85 (às 12h00 de hoje)

Dias que restam para votar: 2 (até às 7h00 d0 dia 3/7/2015)


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Nota do editor:

Vd poste anterior > 30 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14812: Sondagem: O rio da minha... tabanca... O meu rio da Guiné, aquele que mais amei / odiei... Responder até ao dia 3 de julho

Guiné 63/74 - P14814: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (IIa Parte) Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

1. Em mensagem do dia 20 de Junho de 2015, o nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489 (Cuntima), e Comando do 2.º curso de Comandos do CTIG (Brá), CMDT do Grupo Diabólicos (1965/67), enviou-nos a continuação do seu trabalho a que deu o título de "Guiné, Ir e Voltar".


GUINÉ, IR E VOLTAR - II

Em Cuntima, na fronteira Norte com o Senegal (1)

A festa não era para ele, aquela gente toda na pista de aterragem, alguns com máquinas fotográficas, não estavam ali para o fotografar, nem para lhe dar as boas-vindas, festejava era a chegada da avioneta. Não demorou muito tempo a perceber o porquê de toda aquela agitação e da romaria em volta do aparelho. Caixas de uísque e tabaco, grades de cerveja espalhadas pelo chão e todo o pessoal a rodear um saco, o saco do correio. A pressa em abri-los, maços e maços de cartas nas mãos, Carlos Correia, Manuel Revés, ó Tomé, as mãos estendidas, estou aqui, meu furriel!

Em Cuntima, a Dornier acabada de aterrar. © Foto do autor.

É o alferes que vem substituir o Monteiro, não é? Bem-vindo a Cuntima! Um tipo de mão estendida, calções, camisa de caqui e havaianas, capitão Pato Anselmo, comandante da companhia. Estes são os seus camaradas, o alferes Adilson, mais conhecido entre nós por Didi e o alferes Ferreira, aquele ali é o doutor Lourenço, um açoriano da Terceira. Adilson, hoje já tem que fazer, trate de lhe mostrar a cidade, os aposentos do hotel onde vai ficar, a casa de banho, mostre-lhe tudo.

Cuntima com o edifício do posto administrativo à direita. © Foto do autor.

Cuntima era uma rua, casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima e casitas de adobe atrás. A rua, uma recta de 200 a 300 metros, era a estrada de terra que ligava a fronteira com o Senegal a Farim, cerca de trinta quilómetros, com passagem por Jumbembem, mais ou menos a meio do trajecto.
No lado nascente, em frente a um antigo celeiro, que agora era a camarata do pelotão do recém-chegado, ficava a casa do comando, com um quarto para o capitão, outro para a estação de rádio e um compartimento que servia de posto de socorros e de capela quando vinha o capelão. Duas casas depois, a messe, em tempos mais calmos, moradia de alguém importante na terra.
Era aqui que se encontravam para as refeições os alferes da companhia, o capitão, o médico e o 1.º sargento Torres, um senhor a rondar os 50 anos que se fazia acompanhar da mulher, a única senhora branca que ali habitava. À entrada, à frente do bar, o Fininho servia cerveja, uísque, leite condensado, água Perrier, por esta ordem conforme a existência, e a seguir, o que havia num frigorífico a petróleo com aspecto de já ter arrefecido o suficiente para a reforma.
No primeiro jantar em Cuntima, ficou logo a conhecer a história deles e do batalhão. Do capitão não, que se retirou cedo.
O Adilson era mais brasileiro que português, criança ainda fora com os pais para o Rio de Janeiro. Questões relacionadas com morte de familiar e heranças forçaram-no a vir a Portugal. Não havia forma de fugir, tinha que ser. E pronto, foi assim, acabou-se-me a Gávea, Copacabana, Ipanema, o Leblon, o Leme.
Didi, estás em Cuntima, uma beleza de terra também, não tem praias, mas tem bolanhas1, palmeiras, bajudas2, calor, que queres mais, o Ferreira, um tipo pequeno, olhos vivos, muito negros, ar de indiano, à gargalhada.
Dali para a frente, as conversas entre eles eram sempre as mesmas, só umas pequenas variações, um acrescento aqui ou ali. Sempre à volta do mesmo, os meses que faltavam para o regresso. Fosse qual fosse o princípio, terminava sempre na Rocha Conde de Óbidos3 e no encontro com a namorada, mulher, filhos, os pais, os amigos, a rua, o café, o quiosque.
Guiné Portuguesa? Que é isso? Nem penses, esta é uma guerra perdida! Não tenhas ilusões, isto não é Portugal, nunca foi, o Didi ansioso por passar a ideia.
Tirando a tropa, vivem em toda a Guiné para aí 50 brancos, no máximo, o resto da população são naturais da Guiné e algumas centenas de emigrantes que fugiram às secas de Cabo Verde! Quando vires a tralha a cair-te em cima, nessa altura sim, vais começar a pensar no buraco em que acabas de entrar. E toma nota, há gajos em Lisboa que engordam com este negócio, a mercadoria somos nós. Daqui a uns tempos falamos, quando estiveres mais habituado a estes calores. A minha posição é esta, muito clara, sou totalmente contra esta guerra, mas cumpro os meus deveres de oficial do Exército Português.
Depois desta introdução o Didi despediu-se e os outros mudaram o disco, começaram a querer saber novidades da metrópole.

O Tenente-Coronel de Farim insistia em ordens de saída para o mato, patrulhamentos, emboscadas, vigilância das picadas, capinagem, o diabo a sete. Saíam, claro que sim, mas via-se-lhes na cara que a vontade não era muita, as pernas, contrariadas, a arrastarem-se, em fila de pirilau4, muito chegados uns aos outros, como se assim ficassem mais protegidos. Os alferes e os furriéis já não tinham ânimo para imporem as regras de segurança. Já tinham passado por muito.
O Como, pá, o Como! Os dois feridos que tivemos mal desembarcámos! E aquela história, lembras-te Ferreira, e mais um episódio a sair aos bochechos.
Ao fim de uns dias, o alferes maçarico5 era um veterano de guerra, esteve no Como6 aqueles dias todos, os turras chateavam-no a toda a hora.
Ao jantar, à luz do petromax7, a presença do capitão baixava o tom das conversas à mesa. Era o único ali que tinha acesso aos relatórios da situação militar em toda a província. Com voz baixa, ar confidencial, punha-os vagamente em dia com o que se passava nos outros pontos da Guiné, Oio, Morés, Tite, Cantanhez, Buba, Guilege, Bedanda, Cacine, Cameconde. Flagelações, emboscadas, ataques, minas, baixas.

Numa daquelas noites, ao levantarem-se da mesa, o capitão deitou-lhe uma mão no braço, venha daí, vamos até ao posto de rádio. Uma noite linda, não? Mágicas, estas noites de África, não?
Porta fechada, viu-o estender um mapa junto à luz do petromax. As referências bem assinaladas com marcadores grossos a tinta vermelha, o dedo a apontar.
A fronteira, Cuntima aqui, Jumbembem, Farim a seguir, aqui em baixo, está a ver? Agora para cima, emboscada aqui, entre Faquina Fula e Faquina Mandinga, o dedo apontado para um ponto do mapa. Esta madrugada, neste trilho tem que lá estar entre as 6 e as 6 e 30. Preste atenção, levante-a ao meio-dia e saia da zona rapidamente. Fale com o Furriel Covas, ele trata da logística. Boa noite.
A caminho do barracão, antigo celeiro, onde pernoitava com o seu pelotão, Faquina Fula e Faquina Mandinga, nomes absurdamente estranhos, misturavam-se na cabeça com os restos da cerveja que ainda trazia de Bissau.
Pôs o Furriel Covas ao corrente da missão, pediu-lhe que fosse ele a comandar.
Era a sua primeira saída para o mato, até aí tinham sido só treinos em Mafra, Carregueira e Santa Margarida e a G3 tinha-a experimentado pela primeira vez ontem, na pista, contra as garrafas vazias de cerveja dependuradas no arame farpado.
Deixe estar, meu alferes, eu trato de tudo, fique descansado.
Na cama, nada de leituras que a lanterna estava sem pilhas. Num rádio, lá para o fundo, Bécaud cantava baixinho "Et maintenant", de outro saía música árabe e ressonava-se por ali fora com força. E Faquina Fula com Faquina Mandinga na cabeça, sempre a rodar, até adormecer.

Quando o Furriel Covas o acordou, mal se pôs a pé a cabeça voltou a rodar, ao ritmo daqueles dias. Na rua, ainda noite, cheirava a café quente, tomava-se o pequeno-almoço, pão fresco com chouriço e marmelada.
Puseram-se a andar, ainda não eram cinco da manhã. Dois guias naturais da zona abriam a coluna do grupo de combate, armas pousadas nos ombros, mãos a segurarem os canos, coronhas para trás, como quem leva um cajado. Parecia uma romaria a S. Bento da Porta Aberta, um restolho enorme, tanto barulho com os pés. Não se pode andar com menos barulho, Furriel Covas, o pessoal não pode levantar os pés em vez de os arrastar? É, poder podem, os olhos pequeninos do furriel para ele.
Tomava pela primeira vez contacto com a mata, as árvores, os ruídos, ansioso por dar atenção a tudo. Espevitou ainda mais com a floresta a acordar. São macacos-cães a ladrar, quando estivermos perto deles deixam de se ouvir. Falta pouco, é para aqueles lados, o trilho é depois daquela bolanha, ali em frente.
Pouco passava das 7 instalaram-se ao longo das margens de um carreiro, uns deitados, outros de joelhos, G3 em posição, escondidos na mata, abrigados em arbustos dispersos pelo capim e ficaram a aguardar que os turras aparecessem.
O tempo a passar, turras nem vê-los, o silêncio cortado de vez em quando por um ou outro ronco de alguém a passar pelas brasas, o sol bem alto a queimar, moscas grandes, peludas, a pousarem neles, e nem se ouviam. O Covas aproximou-se, apontou para o relógio, é quase meio-dia, hora de levantar a emboscada, vamos?
Curvado nas margens do caminho, percorreu-o com os olhos de uma ponta a outra. Viu pegadas e sinais de rodas de bicicleta.
Sim, pessoal passou aqui. Ontem, sim, pode ser, sinal fresco ainda, arriscou-lhe um milícia guineense num português difícil.
Este é um caminho que eles utilizam para introduzirem armas, comida, sei lá que mais, pensou. Só que passam aqui a outras horas, claro. E se continuasse aqui até eles passarem? Agora não, que as ordens são outras.
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Notas:
1 - Terreno alagadiço, próprio para a cultura do arroz
2 - Rapariga, donzela, moça virgem
3 - Cais da Rocha Conde de Óbidos, de onde partiam os navios com tropas para África
4 - Coluna por um
5 - Designação pejorativa que era dada aos acabados de chegar. Com o tempo passaram a chamar-se piriquitos.
6 - Operação ‘Tridente’. No Como gastaram-se 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia, 550 granadas de morteiro, 8900 rações colectivas de combate e 4000 rações individuais, no meio de 15.500 garrafas de cerveja, 22.900 litros de vinho e do fumo de 10.100 maços de tabaco.
7 - Candeeiro a petróleo.

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Os dias em Cuntima

Andamos a enlatados, lulas, sardinhas e atum, há 3 semanas sem reabastecimentos. Não há frescos, acabou a cerveja e o vinho, há batatas e arroz. A proibição é absoluta de insistir com a população para vender galináceos ou cabritos. A situação não é inédita, já ocorreu antes e houve problemas com as queixas da população.
O Didi chegou agora de férias da metrópole.
Então como está Lisboa? O que é que se diz por lá?
O que se diz por lá, pá? O que é que querias que se dissesse? Que se falasse da Guiné e da malta? Guerra é aqui, pá, lá não há guerra! Na metrópole ninguém quer saber da Guiné para nada, querem lá saber da maralha. E em Bissau é a mesma coisa, não há lá guerra nenhuma, há é lá uns gajos empregados no QG que fecham a guerra deles às 5, saltam para a piscina, jantam no Grande Hotel e o resto da noite passam-na a jogar bridge na Associação Comercial.

A CCav 489 formada na estrada que atravessava Cuntima. © Foto do autor.

Estou aqui há pouco mais de dois meses, tiros só ouvi os da minha G3, quando a estive a experimentar contra as latas e garrafas, junto ao arame farpado.
Até agora tenho tido uma vida pacata, sem problemas. A calma é que é excessiva, pesa um bocado. Do posto de radio ouvem-se comunicações de várias unidades próximas relatando a ocorrência de rebentamentos de minas, contactos com a guerrilha, mortos, feridos evacuados.
Isto é mesmo um intervalo na minha vida, passo os dias a olhar para a rua cheia de pó, o nariz cheio de catinga8, o ar abandonado de todos, tudo precário.

Poço de água aberto pela Companhia. © Foto do autor.

Há dias dei por mim a lembrar-me de qualquer coisa que, em tempos, li sobre a entrada do Exército Português na 1ª Grande Guerra. O entusiasmo dos políticos, Portugal não pode ficar de fora, Portugal tem que fazer parte do esforço na guerra contra os boches, não pode deixar de pensar nas colónias, como então chamavam a estas terras. Depois, mal equipadas, mal armadas, desfalcadas de oficiais, as forças portuguesas ainda enfrentaram a falta de rendição das tropas na frente de batalha. De 9 para 10 de Abril, exactamente no dia em que iam ser rendidas, um ataque alemão pôs fora de combate o corpo expedicionário português. O aço alemão vinha de todo o lado às toneladas, as nossas tropas defenderam-se como puderam, mas não conseguiram evitar o desastre de La Lys.
Quem pagou? As tropas, claro. Um massacre9, os gases, as amputações, as vidas desfeitas. Depois despacharam-nos para a terra, umas lápides nas casas de alguns que morreram, nomes em ruas e monumentos a enfeitar praças de cidades, e depois nunca mais quiseram saber deles. Vai acontecer-nos aqui o mesmo? Talvez não, os turras também não são os boches, pelo menos ainda.
Quantos dias faltam para a gente se ver livre desta merda? É o que se ouve a toda a hora, estendidos nas tarimbas, mosquiteiros fechados, uns por cima dos outros, falam alto das amizades, da velha mãe, do pai seco da fome, da jovem mulher a labutar como uma moura, dos filhos que vêem crescer nas fotografias, de tudo o que deixaram no Alentejo10 deles.

Grupo de combate com o antigo celeiro que lhes servia de camarata, atrás. © Foto do autor.

Depois de jantar uma sopa com batatas, arroz e uma rodela de chouriço, papaia e manga, sentamo-nos um pouco nas traseiras da casa que nos serve de messe, a olhar as estrelas. O calor sente-se, a humidade escorre pelo peito, pelas costas, todo o corpo escorre água. É tempo de aguardar que refresque um pouco antes de ir dormir. Ficamos ali, calados, a ouvir os ruídos da mata que nos cerca. Custa-me entrar no celeiro, dou a volta por fora, sento-me nas traseiras, num cadeirão de madeira, com a mata em frente. Olho o céu com tanta luz que nem preciso da lanterna.
Lembro-me da Barca do Lago, do rio Cávado a correr devagar, sem vontade de se perder no mar, dos tempos de ontem, de há 3 meses só, à espera que as conversas dentro do barracão esmoreçam. A sentinela ao meu encontro, olhos na escuridão da mata em frente, a lua africana, um disco de luz a bater-lhe, a recortar-lhe os traços.
A gente, mê alferes, quando chega fica assim, mais saudosa, depois, com o tempo, habitua-se, também não tem outro remédio, não é?
É melhor nem falar, mostrar só um sorriso, tenho medo do que diga, de mim próprio até.
Já nada se ouve, apenas o sono. Acordo dos pensamentos, amanhã não tenho trabalho, é o meu dia de folga. Como se aqui houvesse dias de trabalho e de folga, mas enfim, levantar-me-ei mais tarde, puxarei a corda do regador, a água duma vez por mim abaixo, rexina, água outra vez no regador, corda nele, secar, fresco para o almoço, limpo deste suor pegajoso, disposto a aguentar os queixumes do capitão à mesa.
O senhor é profissional, ofereceu-se voluntário, foi para cavalaria, a especialidade de carros de combate vê-se aí no seu peito. Essas queixas não têm razão de ser na sua boca, apetece-me dizer-lhe. Sei que estou errado, ele é novo como nós, nem trinta tem, também tem direito a dizer mal disto.
Faz-me bem escrever, às vezes não consigo, saem-me palavras sem nexo.
Tenho pensado muito, o ambiente é propício. Espero dias mais claros, menos nevoentos.
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Notas:
8 - Dizia-se do suor característico dos nativos. Estes, por seu lado, diziam que branco cheirava a morto.
9 - Entre mortos, feridos e prisioneiros, o corpo expedicionário português sofreu mais de 7 mil baixas, sem contar com as registadas em África, onde só em Moçambique morreram 4811 militares. Notas recentes indicam que as baixas atingiram cerca de 36% dos mobilizados.
10 - Os soldados e cabos do BCav 490 eram, na sua maioria, originários do Alentejo.

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As noites

Ao fim do dia havia que preparar os petromaxes e acendê-los. Equipas deslocavam-se até ao arame farpado, conferiam as protecções, depois juntavam-se para jantar. No fim ficavam por ali um pouco à conversa até o amanhã de um e depois de outro. As noites entravam rápidas, o silêncio chegava com a noite, entrecortado por uma ou outra fala mais alta que logo esmorecia enquanto, de vez em quando, o vento trazia dos lados da fronteira os tantans de batuques de algures do lado de lá.
Dentro do celeiro, pelo meio dos beliches, orquestra a sono solto, madrugada ainda a meio. Portão entreaberto, o céu a brilhar de pontinhos. Noites como aqui, com tanta luz, parece dia! A casa do capitão em frente, os alfas rómios da casa do rádio a ouvirem-se, aroma a café a vir de lá. Uma novela no quarto de banho do capitão, Capricho ou parecida. Na volta, outra vez o céu, bocados de estrelas a caírem.
As matas, escuras, misteriosas, rodeiam todo o aquartelamento-povoação.
Quando se lembrarão eles de vir até cá? Se soubessem como era fácil, todos a dormir agora, bastava chegarem-se, sorrateiros, escondidos pelo matagal, espiar o movimento das sentinelas, evitar os petromaxes, colados ao chão, devagar a caminho do celeiro, a curta distância, cem metros chegava. Dedos com vontade no gatilho, entrarem, uma chacina nos tugas. Se não tivessem medo também. Algum dia vão perdê-lo.
De novo na cama, a vontade de dormir a ir-se, as recordações a virem. O comboio da linha de Sintra, a chegada à Amadora nas horas de ponta, centenas a saírem, todos com pressa, a desaparecerem nas ruas, depois nas casas, as luzes a acenderem-se, o vento a dar, as praias de Oeiras, Carcavelos, a areia do Guincho pelo ar, e o vento a levar-me por aí acima até ao Porto, à estação de S. Bento, o passeio das Cardosas, a Avenida dos Aliados, os Clérigos, a ver o eléctrico, o 6, a subir para os Leões, o Hospital de S. António, a Aníbal Cunha, a Carvalhosa, o ardina a apregoar olhó Popular Diário, a subida da Oliveira Monteiro até ao Carvalhido, as ruas, os quiosques.
A circunvalação, a via Norte, a recta do Mindelo, Modivas, sempre a subir até Vila do Conde, terra linda, a Póvoa do Varzim, os banhistas com os sacos às costas, toalhas coloridas debaixo dos braços, a estrada para Viana, Aver-o-Mar, o cheiro da casa dos frangos, tão bons não havia, a Apúlia por fim.
E o sossego daqueles fins de tarde do último Setembro na praia dos sargaceiros, as marés cheias por volta das sete, ondas enormes, certinhas como um compasso, os mergulhos com o André, o Eurico, o Beleza. O regresso a casa, bicicleta nos caminhos pelo meio das latadas das uvas americanas, a secar ao vento, a chegada a casa, o Sol a pôr-se, a mãe à espera, a estas horas, só agora?

Aqui não há mar, jornais da metrópole há, de há semanas, rodam entre todos, a Bola, o Eusébio, o Coluna, o José Augusto, o Pedroto, o Virgílio, o Vicente, o irmão do Matateu, o Costa Pereira a defender fora da área de cabeça, em mergulho, no estádio 28 de Maio em Braga, nunca vira uma defesa assim!
E como é que ela vai reagir à carta? Que ideia, pedir-lhe que o considerasse agora mais que um amigo, estivera com ela mais de duas horas da última vez, não lhe dissera nada, nem um sinal lhe dera. Tão longe, tanto tempo à frente, tão nova ainda, tanta vontade de ir aos bailaricos da queima, em casa das amigas, nas festas familiares. Que absurdo! Que ousadia também! O amor a dar-lhe tão súbito, tão fulminante, talvez por estar longe, ou quem sabe, só uma correspondência que sempre lhe daria jeito, uma madrinha de guerra talvez, com notícias diferentes, da metrópole.

Uma rajada comprida vinda de muito longe entrou-lhe pelos ouvidos dentro. Olhos mais que arregalados, o salto de gato da cama.
Queria gritar outra coisa, saiu-lhe pessoal aos seus lugares, lembrou-se logo do cobrador das camionetas do Marinho em Braga, nada que se parecesse com um grito de guerra. Se calhar, por isso ninguém saiu, só ele. Em voo pelo buraco aberto na parede das traseiras, a pancada na cabeça, um estrondo enorme, estrelas a brilhar mais que as do céu. Finalmente cá fora, a mão na cabeça, o sangue a escorrer, pronto, fui atingido, logo à primeira.
Silêncio, ninguém para o socorrer, só a sentinela a chegar-se.
Pareceu-me ver umas luzes suspeitas ali da mata, mandei para lá uma rajada. Alarme falso, afinal deviam ser pirilampos. Temos que estar sempre atentos!
Sangue na cabeça? O meu alferes bateu com a cabeça na parede, ainda não está calhado com o buraco, é o que é.

Posto de Comando e posto médico. Doentes que aguardavam a consulta. © Foto do autor.

Posto médico, manhã cedo, com nativos da tabanca e outros vindos do Senegal em fila para a consulta, o médico a atendê-los, cheio de paciência, para um ora abre a boca, diz aaah, outra vez, aaah, o enfermeiro com a mão num frasco enorme, comprimidos, drageias, cápsulas, todas as cores da paleta, dá-lhe duas dessas, outra dessa cor, amanhã se não estiveres melhor vai ao feiticeiro.
O que estás aqui a fazer? Praxado esta noite, ah?

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 28 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14803: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (I Parte): Introdução, Dedicatória e A Caminho

Guiné 63/74 - P14813: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (9): De 16 a 19 de Maio de 1973

1. Em mensagem do dia 25 de Junho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

9 - De 16 a 19 de Maio de 1973


16 de Maio de 1973 (quarta-feira) - Tudo é instável e provisório

O meu Grupo de Combate entrou de serviço às 6 horas da manhã. Entreguei-o à responsabilidade dos meus furriéis e, aproveitando uma coluna, fui a Aldeia Formosa pedir contas ao Cap. J. C. Cmdt de Operações) e falei também com o Major D. M. para saber qual a nossa futura situação e para me arranjar o armamento necessário. Fiquei a saber que não continuaremos aqui em Mampatá depois da “grande operação” (3 dias), [BALANÇO FINAL], e que o armamento só me será entregue à tarde, porque chegará num avião (Nord-Atlas) por volta das 17 horas. Fiquei para almoçar lá, regressando a Mampatá quase de noite com uma escolta e trazendo 2 morteiros de 60 mm e 2 bazucas (LGF).

Em Aldeia Formosa reina a confusão, devido ao do excesso de tropas e, talvez, falta de organização, tudo por causa da “grande operação”. Será o objectivo da “operação” a entrada em Nhacobá? [Naquela altura ainda era uma base do PAIGC e respectiva tabanca]. “O problema das estradas”: focar e desenvolver. [Nunca cheguei a desenvolver o tema mas, neste caso, não tinha muito que saber: alguém traçou uma estrada que vinha de Mampatá, passava por Colibuia e Cumbijã e entrava Nhacobá adentro. Estrada estratégica e de custos humanos muito elevados. Mas não tinha nada que saber!...].

À noite, uma trovoada colossal e bastante chuva. A trovoada é mesmo por cima de nós e eu estou sentado sozinho no alpendre da messe de sargentos enquanto eles, lá dentro, jogam às cartas, creio. Mas eu estou a precisar disto. Parece que estas descargas eléctricas me ajudam a descarregar a minha própria tensão. Por vezes cai um raio mais próximo e, nesses instantes, deixo de ver tudo à minha volta, enquanto o trovão ribomba com tal fragor que parece estremecer a terra e pulverizar tudo. De repente, um raio cai na minha frente sobre uma árvore enorme nos limites da tabanca, a não mais de cem metros. No clarão produzido ainda dá para perceber uma projecção de fogachos a partir do centro da árvore e o som de madeira a rachar. Quase a tactear, com a vista baça, saio dali e junto-me aos demais no interior. Chega de terapia. É um risco muito alto continuar lá fora.

1973 – Mampatá numa tarde de paz. Nem ciclones, nem tiros

17 de Maio de 1973 (quinta-feira) – Entrada em Nhacobá.

Da História da Unidade do BCAÇ 4513 transcrevo, eliminando algumas abreviaturas, a actividade operacional relativa a este malfado dia, pois que, por falta de informação concisa e disponibilidade de tempo, as notas do meu diário são parcas. É uma descrição tão sucinta e seca, - certamente como deveria ser -, mas que bem poderia descrever uma excursão lúdica da rapaziada a Nhacobá. Todavia, tratou-se de um verdadeiro embate militar, quer pela acção da CCAV 8351 no terreno, quer pelo impacto e significado em toda a zona : entrou-se em Nhacobá e expulsou-se o inimigo. Antes de transcrever, devo referir que só conheci a História do BCAÇ 4513 muito recentemente, mais de 40 anos depois do regresso e por gentileza do nosso camarada e Grã-Tabanqueiro Antero Santos (CCAÇ 18-Aldeia Formosa), a quem estou muito reconhecido. Interessante como só agora, ao lê-la, fiquei a conhecer detalhes e ocorrências passadas ali à minha frente mas que, naquela altura, de grande movimento e confusão, escapavam à corrente de informações passadas de boca em boca. Talvez por isto, noto algumas discrepâncias entre a referida História da Unidade e os meus escassos apontamentos. Ou nem só por isso:

“Para cada acontecimento os testemunhos divergem segundo as simpatias e a memória de cada um”. (Tucídides – historiador grego, 460 a.C. / 395 a. C.).


Da História da Unidade:

“17 (de Maio) – OPERAÇÃO “BALANÇO FINAL”. — Forças da CCAV 8351 atingem NHACOBÁ e capturam 13 elementos da população (7 homens, 2 mulheres e 4 crianças) e 1 SIMONOV. Às 12h00 e às 12h15 estabelecem-se contactos com Grupo IN estimados em cerca de 40 elementos, tendo as NT sofrido 3 feridos graves e 3 feridos ligeiros. O IN sofreu 4 mortos e vários feridos prováveis. Capturou-se 1 SIMONOV e material diverso.

- Este Grupo IN ao fugir encontra-se com a 3.ª CCAÇ. Estabelecido o contacto as NT sofrem 1 ferido grave e 5 feridos ligeiros e causaram 4 mortos confirmados, vários feridos prováveis e capturam 1 RPG, 3 espingardas KALASHNIKOV e diverso material.

- Devido a forte temporal, o NORD-ATLAS que veio efectuar a evacuação, manteve-se na pista de A. Formosa durante toda a noite e só ao alvorecer descolou.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos da estrada”.



Do meu diário:

Hoje, e até às 18 horas o meu GC continuará de serviço em Mampatá. Acordei com mais dois camaradas alferes de Mampatá, ao som de obuses (15 a 20 minutos), por volta das 5 horas da manhã. Mesmo no decorrer do dia não soube se tinham sido as NT a “embrulhar” ou a baterem zona, mas teve decerto a ver com a posterior entrada das NT em Nhacobá.

Soube que o camarada T. B. e restante pessoal em Colibuia não conseguiram dormir toda a noite, por causa das águas das chuvas. Colibuia não tem condições.

À tarde passaram aqui em Mampatá duas Chaimites a toda a velocidade, com feridos para Aldeia Formosa. Houve “contactos” com o IN entre Cumbijã e Nhacobá, tendo havido 5 mortos turras (a História da Unidade diz 4) e captura de material.

À noite um tornado limpou todo o pó aqui da zona e depois choveu muito. Com o vento caiu o telheiro das oficinas auto em cima de uma Berliet.

1973 – Emissor Regional de Mampatá e o marco do correio

18 de Maio de 1973 – (sexta-feira) – Nhacobá ainda a “arder”.

Da História da Unidade:

“18 (de Maio) – Novo contacto IN da CCAV 8351 que sofreu 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. O IN fugiu desconhecendo-se se com baixas.

- O CMDT INTº do Batalhão deslocou-se a Nhacobá para apreciar a evolução dos trabalhos de estrada”.


Do meu diário:

Chuva gelada durante muito tempo. Hoje o meu Grupo vai fazer serviço de apoio à retaguarda (das acções em Nhacobá). Consta de percursos em viaturas entre Aldeia Formosa e Nhacobá e retorno a Aldeia Formosa, para escoltas e demais serviços, sempre que as situações o exijam.

Às 6 horas da manhã, aqui em Mampatá, entrámos na coluna que já vinha de Aldeia Formosa, com destino a Cumbijã, com o meu pelotão distribuído por uma Berliet e um Unimog. A coluna estendia-se por não sei quantos quilómetros e, em todo o percurso, nunca consegui ver a cauda e a cabeça da coluna ao mesmo tempo: muitas viaturas, muita tropa, muita Engenharia e muita pressa em acabar a estrada para Nhacobá. À chegada a Cumbijã soubemos que durante a madrugada tinha havido novo contacto da 51 do Cap. V. da G. com grupo IN: tivemos 2 mortos (a História da Unidade refere 1) e vários feridos. A situação era grave (em Nhacobá) e por isso a maquinaria da Engenharia foi já muito tarde para a “frente”. Durante todo o dia não parei senão para comer, pois a escolta a viaturas com feridos e a outras viaturas para Aldeia Formosa, e as idas ali para trazer material e rações de combate para os grupos da “frente”, não me deram descanso. a)

À noite doía-me a cabeça e estava cansado. Regressámos a Mampatá todos exaustos.

a) – Julgo que foi neste dia que assisti a uma cena terrível, passada com um dos evacuados de Nhacobá. Não tenho registos sobre isso, pelo menos nesta sequência cronológica, mas também não dava para registar tudo: eram demasiadas coisas. Mas aquela imagem nunca mais se me apagou da memória: na confusão de gente que entrava e saía da mata, muitas viaturas paradas, algazarra, enfim..., surgiu um soldado negro, provavelmente da CCAÇ 18, com um soldado branco às costas que berrava e esperneava como um louco ou como uma criança magoada mas com a força de um touro. Vinha mesmo enlouquecido. O resto não recordo, mas deve ter sido metido numa Chaimite e evacuado para Aldeia Formosa.

Certamente fiz a escolta dessa evacuação, que era uma coisa muito “engraçada” para me dar cabo dos nervos: as duas Chaimites arrancavam e eu, para as proteger, seguia atrás delas mas, quando chegavam a Aldeia Formosa, eu ainda estava a chegar a Mampatá. É certo que em caso de ataque no trajecto, eu aparecia logo com o meu grupo, mas... Mas que me irritava, irritava. Ou seria apenas a mania de contestar as ordens que vinham de cima? Digo isto agora, sei lá...

1973 – Mampatá e a estrada, ao fundo, que leva a Colibuia, Cumbijã e Nhacobá.

19 de Maio de 1973 – (sábado)

Hoje o meu Grupo ficou numa “pedreira” a proteger as obras da estrada e as máquinas da Engenharia, entre Cumbijã e Nhacobá. A estrada leva um grande avanço e as máquinas não têm descanso, mas a estrada só está alcatroada até Cumbijã. Regressámos a Mampatá às 14 horas. Dia sem incidentes.

(Continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

Guiné 63/74 - P14812: Inquérito online: O rio da minha... tabanca... O meu rio da Guiné, aquele que mais amei / odiei... Responder até ao dia 3 de julho



Rio Mansoa > Ponte destruída | Foto Carlos Fraga



Rio Mansoa > Bolanha e ponte  | Foto César Dias



Rio Corubal > Rápidos do Saltinho | Foto Albano Costa


Rio Cumbijã > Imediações de Cufar | Foto António Graça de Abreu



Rio Cacine > Corrida de sintex | Foto João Martins


Rio Udunduma > Jangada | Foto Renato Monteiro



Rio Cacheu > LFG Sagitário | Foto cmdt A Rodrigues da Costa | Cortesia de Manuel Lema Santos

Edição Blogue Luís  Graça & Camaradas da Guiné (2015). Direitos reservados


I. Mensagem enviada ontem pelo correio interno da Tabanca Grande:


Assunto - O rio da minha... tabanca

Amigos/as e camaradas:

Há um poema lindíssimo do Alberto Caeiro (um dos muitos heterónimos, como sabem, do genial Fernando Pessoa) que começa assim: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia" ... Podem lê-lo ou relê-lo a seguir, aqui, no sítio da Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro. (*)

Mas eu esta semana queria falar do rio da nossa... tabanca. Todos, ou quase todos, ou muitos de nós, também deixaram lá, na "nossa" Guiné, o seu rio de "estimação"... Em muitos casos, terá havido uma relação de amor/ódio... Não admira: estávamos em guerra, não em turismo...

Não vamos aqui discutir a diferença entre rios, rias, braços de mar... A Guiné tinha/tem, para além do deslumbrante (e de trágicas memórias) Corubal, outros rios (, de água doce e/ou salgada, ) que cruzámos, por onde viajámos, ou em cujas imediações fizemos operações ou estivemos aquartelados, do Cacheu ao Cacine... Noutros, mais pequenos (Udunduma, Caium, Armada ...), nadámos, pescámos, andámos de piroga... Enfim, quem não tem recordações dos rios, rias e braços de mar, a começar pelos nossos camaradas da Marinha ? Muitos de andámos fizemos uma ou mais viagem de de LDG, de LDM, de sintex, de piroga  e até  de "barco turra" (as embarcações civis que faziam a ligação a Bissau, nomeadamente no Rio Geba).

A sondagem desta semana é sobre "O meu rio da Guiné (o que mais amei/odiei)"... As hipóteses de resposta são;

1. Cacheu

2. Cacine

3. Corubal

4. Cumbijã

5. Geba

6. Grande de Buba

7. Mansoa

8. Tombali

9. Outro (o que corria junto do sítio onde estive)

10. Outro (não referido acima)

11. Nenhum


NÃO RESPONDAM por email, mas no blogue, "on line", ao alto, na coluna do lado esquerdo:

Só podemos dar uma resposta. A sondagem encerra no dia 3 de julho.

2. Aproveitem também para mandar fotos e histórias ligadas aos nossos rios da Guiné... Grandes e pequenos...



E se forem para férias, cá dentro ou lá para fora (, o que não está lá muito convidativo, o mundo está feio...) , mandem um "bate-estradas" (aerograma), a dizer que estão vivinhos da costa como a sardinha... (Até esta, infelizmente, está a desaparecer da nossa costa!).

Já inaugurámos a série "Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas" (**):

Um bom resto de dia... Bebam muito água... porque por estes dias vai estar uma brasa... Xicorações apertados, Luís Graça

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Notas do editor

(*) Cortesia de Casa Fernando Pessoa | Banco de Poesia | Autores | Alberto Caeiro

XX

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

In O Guardador de Rebanhos

In Poesia, Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001.

(**) Vd. poste de 26 de junho de 2015  > Guiné 63/74 - P14799: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (1): Carta aberta aos camaradas da Tabanca Grande: o que fiz (e não fiz) como cofundador e dirigente da associação APOIAR (Mário Gaspar, ex-fur mil at art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)