sábado, 12 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24550: Manuscrito(s) (Luís Graça) (226): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVB: Enfermagem, Misoginia e Sexismo


Hôtel-Dieu de Paris > c. 1500 > O hospital como "locus religiosus", "pia causa" e "locus infectuas" >  Gravura de autor desconhecido. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

Legenda: English: Triptych showing the Hôtel Dieu in Paris, about ad 1500. The comparatively well patients (on the right) were separated from the very ill (on the left) | Français : Hôtel-Dieu de Paris. Armes de Jean V de Bueil et armes de France.







O hospital cristão medieval começou por ser simultaneamente: (i)  um locus religiosusdo ponto de vista eclesiástico, inspirado na arquitetura da casa de  Deus ("hòtel-Dieu", em francès), onde se acolhem "doentes pobres";  (ii) uma pia causa,  do ponto de vista canónico, gozando por isso de um certo número de direitos e privilégios: isenção de taxas, direito a fazer os enterros (jus funerandi), direito de asilo, etc; e, por fim, um locus infectus (e ontinuou a sê-lo, até muito tarde, até meados do séc. XIX), isto é,  um lugar de infecção e de propagação de doenças: o universo hospitalar era concentracionário e a morbimortalidade elevada, tanto entre a população internada como entre o pessoal. (Os ricos e poderosos eram tratados em casa.)

Neste tríptico, podem-se ver as armas de Jean V de Bueil e as armas de France (pia causa). o altar com a cruz ao centro e imagens de santos (locus religiosus) e a promiscuidade e falta de higiene das enfermarias (locus infectus): à direita as irmãs (freiras, enfermeiras) cuidam dos doentes, fazem-lhes a higiene,  servem-lhe  as refeições; e, â esquerda, no primeiro plano, amortalham os cadáveres dos doentes mortos, enquanto, em segundo plano, um padre administra a extrema unção a um moribundo.

 
1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...


Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parte da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos os nossos leitores a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recente de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade da publicação deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão, dependerá das "leituras" e dos "leitores"...

São textos com mais de 20 anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência (e sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": vai fazer  20 anos (!) em 23 de abril de 2024 (se lá chegar, se lá chegarmos).  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG



Luís Graça (2000)

Enfermagem, Misoginia e Sexismo

Grande parte do pessoal que prestava cuidados básicos aos doentes, pertencia originariamente a ordens religiosas e militares ou a confrarias e irmandades. Ao longo do tempo surgem referências a enfermeiros maiores e enfermeiros pequenos (nomeadamente no Regimento do Hospital Real de Todos os Santos, de 1504), hospitaleiros e hospitaleiras, irmãos e irmãs, religiosos e religiosas, enfermeiras ou simplesmente mulheres, servas ou serventes.

A enfermagem está historicamente associada ao desenvolvimento do monaquismo, tal como o ensino e a prática da medicina. No mínimo, cada mosteiro tinha já:
  • Uma enfermaria (infirmitorium) para tratamento dos monges que adoeciam;
  • Um irmão enfermeiro encarregue de prestar os cuidados básicos aos doentes;
  • Uma farmácia (armarium pigmentorium);

E inclusive um pequeno jardim botânico, com lotes para cultivo de plantas medicinais (tal como consta, por exemplo, do projecto arquitectónico da abadia beneditina de Sankt Gallen (em inglês, Saint Gall), por volta de 825, representando o modelo ideal de um mosteiro da época carolíngia, de acordo com as prescrições da reforma de Benedicto de Aniane e do sínodo de Inden).

Por outro lado, nunca ou raramente há uma referência, em documentos escritos da época, que vai da Idade Média ao fim do Antigo Regime, à figura da enfermeira religiosa (ou laica) fora do contexto hospitalar, emparceirando-os por exemplo com os outros praticantes de artes médicas que, com ou sem autorização do físico-mor ou do cirugião-mor, pululavam pelas cidades e aldeias: curandeiros, algebristas (ou endireitas), emplastradeiras, barbeiros-sangradores, dentistas, mezinheiros, parteiras e aparadeiras, cristaleiras e cristaleiros (ou seringas), abafadores (que tinham a sinistra função de apressar a morte em casos de doença terminal, usando para o efeito uma almofada), etc.

Muito simplesmente, não se fala do enfermeiro(a) como alguém que domina uma técnica ou um saber-fazer específico. Dele(a) se espera apenas que trate dos doentes com muita paciência, diligência e caridade. Dele(a) se exige apenas que seja homem (ou mulher), "caridoso, e de boa condição, e sem escândalo" (de acordo com o Regimento do HRTS, de 1504). Havia já, contudo, um esboço de diferenciação do pessoal de enfermagem, estando os cuidados de higiene e limpeza atribuídos aos enfermeiros pequenos (Graça 1994).

Contrariamente à medicina e à cirurgia, a enfermagem não constituía propriamente um ofício de arte aprovada para cujo exercício fosse necessário a competente autorização do físico-mor ou do cirurgião-mor do reino. Por outro lado, e até praticamente ao Século XX, não é reconhecida a especificidade dos cuidados de enfermagem.

Da leitura dos regimentos hospitalares (por ex., Hospital Termal das Caldas da Rainha, Hospital Real de Todos os Santos), depreende-se que o conteúdo funcional da enfermagem se resume, no essencial, aos cuidados básicos a ministrar aos doentes, para além das tarefas de limpeza e higiene das enfermarias. Em português vernáculo, a sua principal função é "o carrego dos doentes", o que implicava nomeadamente (Graça, 1996):
  • Acompanhar as visitas diárias feitas pelo físico ou cirurgião à respectiva enfermaria;
  • Aplicar os tratamentos prescritos pelo físico ou cirurgião;
  • Chamar o (e dar assistência ao) barbeiro-sangrador;
  • Levar os doentes às costas para os banhos e lavá-los (no caso do hospital termal);
  • Transportar as refeições às enfermarias;
  • Varrer e limpar as enfermarias;
  • Fazer as camas e mudar a roupa;
  • Fazer a vigília dos doentes, incluindo à noite;
  • Chamar o capelão para a extrema unção;
  • Amortalhar os cadáveres;
  • Despejar e limpar diariamente os tanques dos banhos (no caso do hospital termal):
  • Manter limpas as enfermarias;
  • Manter limpos os urinóis e os bacios;
  • Manter limpos os púcaros dos xaropes e purgas, etc.

A enfermagem é provavelmente o mais antigo dos deveres — a seguir à reprodução — imposto às mulheres nas sociedades humanas patriarcais. Há cem anos atrás, iria tornar-se, contudo, a primeira profissão feminina, organizada pelas próprias mulheres.

Afastadas do sacerdócio, as mulheres nem por isso deixaram de desempenhar um papel de relevo, embora discreto, na prestação de cuidados aos doentes pobres, primeiro como diaconisas, na Igreja do Oriente, e depois como freiras no Ocidente.

Apesar da tendência para a secularização do pessoal que prestava cuidados básicos aos enfermos, o termo monástico irmã (ou irmãzinha) vai manter-se como sinónimo da mulher que está encarregada de uma enfermaria (Quadro XIV). 

Umas vezes era nomeada de entre o pessoal de enfermagem ou de assistência aos doentes; noutros era recrutada de entre as mulheres domésticas da classe alta. A falta de qualificação e a negligência quer das matronas quer das irmãs em relação ao cumprimento dos seus deveres estão suficientemente documentadas em países como a Inglaterra (Graça, 1996).

Na realidade, quem prestava os cuidados técnicos de enfermagem (como diríamos hoje) não eram as nurses, mas os estudantes de medicina. Embora lhes fosse exigido, como requisito mínimo, o saber ler e escrever, as administrações hospitalares da época tinham que se contentar com as mulheres analfabetas, por dificuldades de recutamento de pessoal. Em suma, tratava-se de uma ocupação indigna de uma respectable woman (isto é, indigna de uma senhora)

Não admira, por isso, que o seu comportamento fosse muitas vezes reprovável e reprovado. Os livros de registo da maior parte dos hospitais ingleses da época dão-nos conta da impressionante frequência de casos de enfermeiras que eram admoestadas ou demitidas por alcoolismo, insolência, falta de disciplina, absentismo, roubo ou extorsão praticada na pessoa dos doentes.

Embora se façam alguns piedosos esforços para melhorar a qualidade dos cuidados de enfermagem, a situação não se alterou, no essencial, na primeira metade do Século XIX. Há todavia uma melhor compreensão humana dos problemas que tradicionalmente enfrentava a enfermagem, compreensão essa a que não será estranho o efeito de halo provocado pelo exemplo heróico e pioneiro de Florence Nightingale (1820-1910).

Mesmo nos próprios provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa, não há referência às irmãs de caridade (a não ser enquanto seres assexuados). Em geral, os frades são mais zurzidos do que as freiras nestas representações sociais estereotipadas que são os provérbios, embora o tradicional anticlericalismo também aqui esteja mesclado de atitudes misóginas e sexistas (Quadro XIV):
  • "Frade e mulher - duas garras do diabo";
  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
  • "Freiras e frieiras, é coçá-las e deixá-las";
  • "Pregar a padres, confessar freiras e expulsar cães é perder o tempo e o trabalho";
  • "Quando a abadessa é careca as freiras são pouco encabeladas";
  • "Quanto mais beata mais coirata".

Sobre a mulher, há inúmeros provérbios, todos eles reveladores de uma mentalidade predadora e doentia, alimentada pelo mito judaico-cristão do pecado original, e que vê nela um ser desprezível mas diabólico:
  • "Da cintura para baixo não há mulher feia";
  • "De má mulher te guarda e da boa não fies nada";
  • "Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca";
  • "Frade e mulher - duas garras do diabo";
  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira";
  • "Mulher beata, mulher velhaca";
  • "Mulher doente, mulher para sempre";
  • "Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira";
  • "Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer".

Em contrap
artida, são raras as referências às enfermeiras ou à enfermagem no feminino:
  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher";
  • "Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…";
  • "Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina";
  • "Há-de ser meu herdeiro quem for meu enfermeiro";
  • "Marta piedosa, mastiga o ovo aos enfermos";
  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras".
O mito da enfermeira como anjo da guarda à cabeceira do doente, esse, vai ser uma construção social do romantismo inglês e da sociedade vitoriana, ao fazer de Florence Nightingale "the lady with the lamp" ou "the ministering angel". Na literatura portuguesa do Séc. XIX, vamos encontrar ecos desta heroína romântica em personagens como a Margarida, a mulher-anjo de As Pupilas do Senhor Reitor (Júlio Dinis, 1863):a

"Durante a moléstia [ que atingiu a sua madrasta, a mãe de Clara ], foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas da aversão que nunca deixara de sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na afectuosa caridade com que a tratava" (Dinis, 1986. 103. Itálicos meus).

Objecto

Provérbio

Freira     Frade

  • "Amores de freira, flores de amendoeira, cedo vêm e pouco duram"

  • "Antes casada arrependida que freira aborrecida"

  • "Em caso de necessidade casa a freira com o frade"

  • "Em traseira de mula e dianteira de frade ninguém se fie"

  • "Falas de santo, unhadas de gato"

  • "Freiras e frieiras, é coçá-las e deixá-las"

  • "Quando a abadessa é careca as freiras são pouco encabeladas"

  • "Quanto mais beata mais coirata"

  • "Para o tempo que hei-de estar no convento cago-lhe e mijo-lhe dentro"

  • "Por falta de um frade não vai a terro o convento"

  • "Pregar a padres, confessar freiras e expulsar cães é perder o tempo e o trabalho"

Mulher

  • " A mulher e a mula o pau as cura"

  • "A raposa tem sete manhas e a mulher a manha de sete raposas"

  • "Até aos vinte, evita a mulher; depois dos quarenta, foge dela"

  • "Com mulher louca, andem as mãos e cale-se a boca"

  • "Da cintura para baixo não há mulher feia"

  • "De má mulher te guarda e da boa não fies nada" (Séc. XVI)

  • "Debaixo da manta tanto faz a preta como a branca"

  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher"

  • "Dia de Santo André, quem não tem porcos mata a mulher"

  • "Foge da mulher que sabe latim e da burra que faz ‘im’…"

  • "Frade e mulher - duas garras do diabo"

  • "Frade, freira e mulher rezadeira - três pessoas distintas e nenhuma verdadeira"

  • "Hábito de frade e saia de mulher chega onde quer"

  • "Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da mulher por todos os lados"

  • "Guarde-vos Deus de moça adivinha e de mulher latina" (Séc.XVI)

  • "Mulher beata, mulher velhaca"

  • "Mulher doente, mulher para sempre"

  • "Mulher não se enceleira: ou se casa ou vai ser freira"

  • "Mulher se queixa, mulher se dói, enferma a mulher quando ela quer"

  • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"

  • "O homem deve cheirar a pólvora e a mulher a incenso"

  • "Para perder a mulher e um tostão, a maior perda é a do dinheiro"

  • "Para se encontrar o Diabo não se precisa sair de casa"

  • "Três coisas mudam o homem: a mulher, o estudo e o vinho"

  • "Vaca triste e pançuda não presta e não muda"

Enfermeira/o Irmã/ão

  • "Desejo de doente, visita de barbeiro, serviço de mulher"

  • "Há-de ser meu herdeiro quem for meu enfermeiro"

  • "Marta piedosa, mastiga o ovo aos enfermos"


(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)
_______________


4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24549: Notas de leitura (1605): "O Elogio da Dureza", por Rui de Azevedo Teixeira; Gradiva Publicações, 2021 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se inegavelmente de uma surpresa, pelo assombro como desvela a intimidade, por descrições duríssimas, é muito difícil não acreditar que tudo isto que ali se escreve não vem da experiência vivida. Sabe-se que Rui de Azevedo Teixeira combateu em Angola, é doutor em Literatura Portuguesa, ensinou em universidades europeias e africanas e no seu currículo há obras de grande importância como A Guerra Colonial e o Romance Português: Agonia e Catarse ou O Fim do Império e a Novelística Feminina e também A Guerra de Angola: 1961-1974. Não custa crer que o autor entendeu que este legado de crueza e terror é importante para que as novas gerações recebam agora o que nos aconteceu há mais de 50 anos.

Um abraço do
Mário



O terror puro e duro para iluminar a noite interior

Mário Beja Santos

Rui de Azevedo Teixeira nasceu em Argivai, Póvoa de Varzim. Combateu em Angola. É doutorado em Literatura Portuguesa e ensinou em universidades europeias e africanas. Organizou os congressos internacionais sobre a Guerra Colonial (Instituto de Defesa Nacional, 2000) e a Guerra do Ultramar (Fórum Cultural do Seixal, 2001). Sobre o conteúdo do livro, Rui de Azevedo Teixeira deixa no ar: “Será Vila Velha do Mar a Póvoa ficcionada? E qual é a aldeia? E as personagens da vila e da aldeia, transfigurados pela ficção, serão alguns dos professores e estudantes do Liceu do fim dos anos 60 ou princípios de 70? São reconhecíveis? O jogo literário de quem é quem puxa pelas memórias saudosas dos leitores”, explica.

É um romance singular no amplo contexto da literatura da guerra colonial este "O Elogio da Dureza", Gradiva Publicações, 2021. Paira a sombra da autobiografia, o rasgar da intimidade de alguém que descobre que é filho ilegítimo de pai incógnito. Sabemos que na juventude muito leu, autores de diferentes proveniências e que cedo começou a escrever um diário incerto, mau aluno até chegar ao fim do Liceu, aí desabrochou; os estudos em Coimbra não o mobilizaram, Paulo de Trava Lobo Ferreira oferece-se como voluntário, lega-nos páginas manuscritas onde fala do padrasto, gente com quem se relacionou, as obras que leu. Salta no tempo, já regressou da guerra em Angola, onde viveu o último capítulo.

“Vivia entre dois tempos e dois espaços, entre o recentíssimo passado angolano e o presente português. Um tempo misturado em que a componente angolana dominava. Mesmo com as obsessivas leituras, mesmo com o processo revolucionário em curso, ainda assim eram as recordações de Angola que mais lhe ocupavam a cabeça. Pensou até em voltar lá como mercenário, numa empresa de um almirante comunista, para lutar pelo MPLA. Um mercenário marxista leninista?! Baralhado, largou a ideia, substituindo-a por outra, por uma vida também dedicada à violência”.

Os problemas familiares acentuam-se, reencontra-se com gente dos Comandos, convém não esquecer que estamos perante um oficial Comando, com prestação assinalável na contraguerrilha. E de novo regressamos a Luanda, salto diacrónico, Paulo está a chegar à guerra, fala-nos do violentíssimo curso de Comandos, provas brutais, tudo minuciosamente contado para se perceber como se cria um militar disciplinado, uma máquina de combate. Nos momentos de ócio, desce até à cidade de Luanda, anota o seu fervilhar:
“Circulavam miúdas e miúdos pretos com olhos brilhantes como refletores e sorrisos imensos. A estragar a alegria do quadro, os pretos descalços e os pretos de calções e os pretos de roupa rota e os pretos servis e os pretos com medo. Mas havia também um ou outro preto bem vestido e integrado no sistema colonial. E tropa e mais tropa. Soldados da pacaça em grupos de três e quatro, sem aprumo, com mal ajangadas fardas número dois e até com camisas de camuflado. E, de vez em quando, passavam os raros e orgulhosos Comandos de farda número dois, com cinturão, crachá ao peito e dístico no ombro esquerdo, calças e camisa de manga curta bem passadas e as mãos atrás das costas”.

Fala-se de comezainas, de sexo, caminhamos para a vida operacional, já temos os Comandos formados. Volta-se inopinadamente ao processo revolucionário, sabe-se que Paulo detesta os comunistas e esquerdistas e dentro deste processo diacrónico voltamos ao Paulo operacional, e aqui o autor esmera-se, a partir do Luso entramos diretamente na Operação Empurra Tudo, vamos assistir a homicídios com faca, escalpes, chegou a hora do puro horror: “Meteu então a faca na barriga do velho e fê-la girar lá dentro como o corno do motor numa colhida. O velho gritou. Paulo e Ferro viraram-se e ainda o viram a ser degolado. O meio bóer deu um pontapé no cadáver fresco do velho, antes de se dirigir para a bicicleta. Enlouquecido de violência, esfaqueou o selim, os pneus e até o farol. Paulo viu, então, junto a uma árvore, sentado, imóvel, uma mulher com um bebé que mamava regaladamente. Ambos miraculosamente ilesos. Paulo ordenou a Ferro que acabasse com os feridos graves. Antes da saída do quartel, tinha visto o furriel a raspar a ponta das balas no chão de cimento à entrada da secretaria. Em segundos, três tiros. As balas atravessaram as cabeças aos trambolhões e saíram levando pedaços de cada uma. Miolos à mostra”.

A operação prossegue, dão-se mais tiros de misericórdia a moribundos, descobrimos que há uma ética: “Os Comandos não abandonavam inimigos feridos. Deixados vivos, ficariam a morrer aos poucos, gritando de dor, antes de serem comidos e passados a esqueleto e a fezes de animais”. Havia, pois, tiros de misericórdia. Entre as operações Paulo leva uma rica vida com a amante e a criada da amante, tudo isto na zona militar leste. Ficamos a saber que nas dez operações dos primeiros quatro meses o corpo de combate de Paulo e os vinte e cinco mortos confirmados. Por vezes as coisas correm para o torto, mas mata-se muito mais do que se sofre. Mas Paulo está a mudar. “Paulo começava a dividir-se, a cindir-se mesmo, entre o idealismo imperial e a justiça histórica. Amava criticamente a História de Portugal e o Império, mas os angolanos já eram crescidos, tinham todo o direito a sair de casa. Todo o direito a serem independentes”. Do Leste irá partir para outro local, o Mayombe, mas, entretanto, damos outro salto diacrónico, voltamos ao processo revolucionário em curso, virá o 25 de novembro, Paulo volta aos estudos, torna-se bacharel, percorrerá vários lugares a dar aulas.

"O Mayombe, floresta equatorial ainda mais impenetrável do que as florestas tropicais, era o absoluto oposto à que agora parecia a Paulo a simpática savana”. Numa operação descobre-se um depósito de armamento, Paulo não sentiu orgulho, apenas sorte, e depois vem o grande combate, o inimigo atacava, eram da FLEC. “Chamou a atenção de Paulo um carregador furado e um cadáver de barriga para baixo. Pegou no carregador e foi tirando as balas. Encontrou o que procurava – a bala furada por uma bala dos Comandos. A bala da G3 acertara em cheio fazendo um buraco perfeito no cartucho da bala de Kalashnikov. Paulo guardou a bala furada, passou a ser o seu talismã”.

Veio o 25 de Abril, o bacharel irá fazer mais estudos, o professor Paulo Lobo tem destino universitário. De novo saltamos para o fim da guerra, quando ele se encontrava especificamente em pré-desagregação, regressa à pátria. Toda esta noite interior parece chegar à irradiação da luz, conhece o amor, dá-se a doce domesticação de Paulo, é já assistente estagiário do porto e acaba por descobrir, graças à mulher, que era filho de sangue do capitão Antero Gomes Ferreira. Não fica contente com aqueles pais que nunca se interessaram pelo seu sofrimento. E decidiu nunca mais voltar a falar com os pais. É uma irradiação de luz feita de trevas. Romance singular, está comprovado, percebe-se este elogio da dureza, é memória que não se apaga, talvez por isso a catarse da escrita, de indiscutível qualidade.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24538: Notas de leitura (1604): Uma nova biografia de Amílcar Cabral, de Peter Karibe Mendy (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII


Em representação das Nações Unidas nas zonas detidas pelo PAIGC: Folke Löfgren com alunos da escola de mato Areolino Lopes Cruz, na base de Cubucaré, consultando o livro escolar O Nosso Livro, impresso na Suécia, Uppsala, abril de 1972 (Foto gentilmente cedida por Folke Löfgren) (Fonte: 
Tor Sellström, op-. cit. 2008, pág. 167)


1. Tor Sellström, do Instituto Nórdico de Estudos Africanos, é autor de um livro, de 290 páginas, "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau" (publicado em 2008, em versão portuguesa). (Vd. ficha técnica a seguir.)

Nessa publicação ele conta-nos como é que os chamados "Grupos de África" (organizações suecas de solidariedade com a luta dos povos da África Austral, e nomeadamente contra o apartheid) e o governo sueco começaram a interessar-se pelo que se estava a passar na Guiné-Bissau, no final dos anos 60. 

O território, então sob administração portuguesa, com um escasso meio milhão de habitantes, e com um pequeno partido nacionalista, o PAIGC; a lutar pela sua independência, era na altura praticamente desconhecido do público sueco.

A partir de 1969, a Suécia começou a dar, ao PAIGC, uma "ajuda humanitária" substancial, primeiro em géneros, depois em dinheiro, que se prolongou muito para além da independência, até meados dos anos 90. Em meados dessa década, fechou abruptamente a torneira, ao perceber que estava a mandar o dinheiro dos contribuintes para o lixo.

"As exportações financiadas com doações da Suécia representavam, durante este período, entre 5 por cento e 10 por cento do total das importações da Guiné-Bissau". Estamos a falar de valores que chegaram aos 2,5 mil milhões (!) de coroas suecas [c. 269,5 milhões de euros] durante o período de 1974/75-1994/95 (sendo de 53,5 milhöes de coroas suecas, ao valor actual, ou sejam, cerca de 5, 8 milhões de euros, de 1969/70 até 1976/77).

Sáo factos que já pertencem ao domínio da História. Mas, passados estes anos todos, julgamos que ainda pode ter algum interesse, para os nossos leitores, saber um pouco mais sobre o envolvimento da Suécia, mesmo que indireto, na "nossa" guerra colonial.

Vamos continuar a seguir esta narrativa, reproduzindo, com a devida vénia, mais um excerto do livro de Tor Sellström. Já chamámos, logo no início, a atenção para alguns factos e dados que merecem a nossa contestação ou reparo crítico, nomeadamente quando o autor fala do trajeto do PAIGC e do seu líder histórico, não citando fontes independentes e socorrendo-se no essencial da propaganda do PAIGC (ou de fontes que lhe estavam próximas)...

Já apontámos, nos postes anteriores, para alguns exemplos desse enviesamento político-ideológico: (1) a greve dos trabalhadores portuários do Pijiguiti e o papel do PAI (mais tarde, PAIGC); (ii) a batalha do Como em 1964: (iii) o controlo de 2/3 do território e de 400 mil  habitantes (!) por parte do PAIGC; (iv) as escolas, os hospitais e as lojas do povo nas "áreas libertadas"; (v) a morte de Amílcar Cabral e o seu contexto, etc.

O texto (na parte que nos interessa, a ajuda sueca ao PAIGC, pp. 138-172) tem demasiadas notas de pé de página, que são úteis do ponto de vista documental e até têm informação relevante  mas são extremamente fastidiosas para  a generalidade dos nossos leitores. (Vamos mantê-las, para não truncar a narrativa; podem ser lidas na diagonal)

Os negritos são nossos: ajudam a destacar alguns dos pontos importantes do texto. O "bold" a vermelho são passagens controversas, são uma chamada de atenção para o leitor, devendo merecer um comentário crítico (ou o recurso a leituras suplementares).

Corrigimos um ou outro erro de português. Os excertos, que reproduzimos,  seguem o Acordo Ortográfico em vigor.

Para já aqui ficam os nossos agradecimentos ao autor e ao editor, Nordiska Afrikainstitutekl (em inglês, The Nordic Africa Institute).

Ficha técnica:

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Nordiska Afrikainstitutekl, Uppsala, 2008, 290 pp. Tradução: Júlio Monteiros. Revisão: António Lourenço e Dulce Åberg. Impresso na Suécia por Bulls Graphic, Halmstad 2008ISBN 978–91–7106–612–1.


Disponível em
https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:275247/FULLTEXT01.pdf

(Também disponível na biblioteca Nordiska Afrikainstitutekl (ou Instituto Nórdico de Estudos Africanos) aqui, em "open acess" .)


Resumo dos excertos anteriores (*):

Com base numa decisão parlamentar aprovada por uma larga maioria, a Suécia tornou-se em 1969 o primeiro país ocidental a dar ajuda oficial aos movimentos nacionalistas das colónias portugueses (MPLA, PAIGC, FRELIMO). O PAIGC vai-se tornar o principal beneficiário dessa ajuda (humanitária, não-militar).  
Muito também por mérito de Amílcar Cabral e da sua habilidade diplomática. 

Até então, e sobretudo na primeira metade da década de sessenta, o debate na Suécia sobre a África Austral tinha quase exclusivamente sido centrado na situação na África do Sul, onde vigorava o apartheid.

O êxito da campanha contra a participação da empresa sueca ASEA no projecto de Cahora Bassa em Moçambique, por volta de 1968–69, na altura em que decorria a guerra do Vietname, levou a que os principais grupos de pressão (“Grupos de África”, oriundos de cidade como Arvika, Gotemburgo, Lund, Estocolmo e Uppsala) se ocupassem, quase em exclusivo,  da luta armada nas colónias portuguesas, com destaque para a Guiné-Bissau (Parte I).

Em 3 páginas (pp. 141-143), o autor faz um resumo da "luta de libertação na Guiné-Bissau", usando unilatereal e acriticameente informaçáo propagandística do PAIGC, alguma particularmente grosseira como a pretensão deste de controlar 400 mil habitantes (numa população de pouco mais de meio milhão)... (Parte II).

Nas páguinas 144-147, fala-se dos primeiros contactos com o PAIGC e das primeiras visitas ao território (Parte III).

Nas páginas 148-152, é referido a primeira visita (de muitas) de Amílcar Cabral à Suécia em novembro de 1968 (Parte IV).

As conversações de Ström com o PAIGC foram bastante simples. No seu relatório, descreveu Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC, como ”um jovem agrónomo bastante jovial, elegante, intelectual e um conversador desenvolto e muito animado. Nada de apelos patéticos nem declarações solenes. As suas intervenções eram objectivas, claras e concisas” (Parte V, pp. 152-154).

Os suecos quiseram, na sua ajuda "não-militar", privilegiar os sectores da educação e a saúde. onde o PAIGC estava confrontado com "enormes desafios". O pressuposto era de que,  em 1971, calculava-se que viviam 400.000 pessoas nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, (...) na sua maioria artesãos e camponeses (sic) (Parte VI, pp. 154-157. Uma estimativa, disparatada, que fazia parte do arsernal de  propaganda do PAIGC...

Uma das maiores "mistificações" foi a entrega de 100 toneladas de "sardinhas" (ou arenques juvenis)  sob a forma de cerca de 400 mil latas de conservas, de 225 gr cada uma (peso líquido), e que terão sido profusamente distribuídas pelas "zonas libertas" (sic) até chegarem a Bissau... (O nosso amigo Cherno Baldé disse-nos que chegou a provar essas tais "sardinhas", e não lhe sabiam a nada...) (Parte VII, pp. 157-161). 

Tor Sellström - A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau: o caso da ajuda ao PAIGC - Parte VIII:

Amílcar Cabral e a ajuda sueea (pp. 161-168)

 Excerto do índice (pág. 4)

O PAIGC da Guiné-Bissau: Desbravar terreno

Pág.

As colónias portuguesas no centro das atenções

138

A luta de libertação na Guiné-Bissau

141

Primeiros contactos

144

Caminho para o apoio oficial ao PAIGC

147

Uma rutura decisiva

152

Necessidades civis e respostas suecas

154

Definição de ajuda humanitária

157

Amílcar Cabral e a ajuda sueca

161

A independência e para além dela

168

 


Amílcar Cabral e a ajuda sueea (pp. 161-168)


A cooperação com o PAIGC da Guiné-Bissau dominou a ajuda oficial sueca aos movimentos de libertação africanos durante a primeira metade dos anos setenta. Começando a um nível relativamente alto (131), a ajuda em bens aumentou de forma sustentada ao longo dos anos e, apesar das diferenças culturais e das circunstâncias, em geral difíceis, baseou-se em confiança mútua entre as partes e foi aplicada de forma satisfatória tanto para os doadores como para os beneficiários da ajuda. 

A experiência da cooperação com o PAIGC serviu como exemplo positivo para a ajuda humanitária posteriormente dada aos movimentos de libertação da África Austral.

O facto de o secretário geral do PAIGC se ter empenhado, pessoal e profundamente na concepção, aplicação e seguimento da ajuda oficial facilitou as operações de cooperação (132), como é natural.

Também ajudou o facto de, antes de se iniciar o relacionamento, o PAIGC ter já um
representante residente na Suécia, que participou activamente no debate, e com quem a ASDI teve consultas frequentes. Onésimo Silveira foi, contudo, destituído em novembro de 1972 (133) e apenas dois meses depois, a 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado (134).

Nessa altura, a cooperação com o PAIGC estava já firmemente enraizada. O assassinato de Cabral não provocou uma crise aberta no movimento de libertação, que fizesse com que o governo sueco tivesse de suspender a ajuda, como aconteceu aquando do assassinato do presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, em Fevereiro de 1969.

Tanto o sucessor de Cabral no cargo de secretário-geral (Aristides Pereira), como o seu irmão Luís Cabral, que viria a ser eleito presidente da Guiné-Bissau independente, tinham trabalhado desde o início, de forma estreita, com a ASDI e, a seguir ao assassinato, ficaram com os seus contactos junto da agência de ajuda (135). A ASDI retomou as remessas de ajuda para Conacri logo em meados de Fevereiro de 1973 (136).

A morte de Cabral teve um profundo impacto na Suécia (137). Descrito como o ”mais profundo, do ponto de vista teórico, dos líderes nacionalistas da África portuguesa” (138), tinha capacidades extraordinárias para conseguir apoios para o PAIGC num espectro político vasto, da esquerda não-parlamentar ao Partido Liberal. 

Ao longo do tempo aproximou- se muito da liderança social-democrata, à volta da pessoa do primeiro ministro Olofe Palme, mas tinha relações calorosas com a ASDI e com o movimento de solidariedade.

Dizendo que ”a ideologia era, acima de tudo, saber o que se pretendia nas circunstâncias particulares em que se estava”(139), as suas ideias seriam, contudo, muitas vezes citadas, mas também distorcidas, em prol de determinadas posições políticas.

Os Grupos de África consideravam Cabral como ”um dos mais destacados líderes revolucionários dos nossos tempos” e a luta do PAIGC como ”um dos pregos no caixão do imperialismo” (140). 

O movimento de solidariedade e a esquerda sueca eram, em geral, muito críticos da ajuda humanitária dada pelo governo social-democrata (no espírito da conferência de Cartum de 1969, onde se exigiu apoio incondicional em dinheiro e a tomada de uma posição clara a favor da luta armada do PAIGC) (141). Ao mesmo tempo, o próprio Cabral era o arquiteto principal do programa de ajuda em géneros.

Recebendo armas da União Soviética e seus aliados, ele tinha desde o princípio excluído o cenário da ajuda militar sueca, criando em vez disso um programa de cooperação civil que, nos finais dos anos sessenta, mais país nenhum dava. 

Tal como o próprio Amílcar Cabral havia previsto, a ajuda humanitária sueca acabou por aumentar o apoio internacional concedido ao PAIGC e abrir o caminho para a disponibilização de ajudas semelhantes por parte de outros países ocidentais, como foi o caso da Noruega, um membro da OTAN que, em 1972 desafiou a causa comum dessa organização com Portugal e criou uma dissidência muito significativa, sob a forma de ajuda oficial directa ao PAIGC (142).

A Suécia e a União Soviética eram os maiores doadores do PAIGC (143). Enquanto a Suécia privilegiava a componente civil, os soviéticos eram os principais municiadores da luta no  campo militar (144).

Havia uma divisão não coordenada, mas não menos real, de facto, entre os dois estados o que foi, em larga escala, copiado para os movimentos de libertaçãoda África Austral (145).  

O facto de, aos olhos dos Estados Unidos e de outros grandes estados ocidentais, a Suécia ser vista como estando a partilhar uma causa com o bloco comunista, não desencorajou o parlamento nem o governo suecos de fornecer ajuda não militar (146).

No início da década de setenta a maior crítica que se fazia ao governo social- democrata (tanto por parte da oposição não-socialista do Partido Liberal, como pelo movimento de solidariedade) tinha a ver com as relações comerciais que a Suécia mantinha com Portugal, seu parceiro na EFTA, pois dizia-se que aumentar a ajuda humanitária oficial ao PAIGC e seu aliados da CONCP e, ao mesmo tempo, aumentar o comércio com a potência colonial portuguesa era altamente imoral e contraditório (147). 

Para os Grupos de África este facto constituía a prova de que o governo ”protegia os interesses dos imperialistas suecos” (148). O escritor e activista Göran Palm que, depois de uma visita às zonas libertadas da Guiné-Bissau, nos finais de 1969, escrevera entusiasticamente que fora recebido ”como um príncipe” por causa da ajuda sueca (149),  concluía em 1971 que ”a Suécia dá com a mão esquerda social-democrata, mas tira com a mão direita, capitalista” (150).

As conclusões de Palm foram apresentadas no prefácio de um livro de textos em sueco, escrito por Amílcar Cabral, e publicado com o título A nossa luta, a Vossa luta. O título foi retirado de um discurso feito em 1964, no qual Cabral declarava que o Imperialismo era o inimigo comum da classe operária internacional e dos movimentos de libertação nacionais. Daí que devesse ser combatido numa ”luta comum” (151).  O discurso de Cabral, incluído na antologia Guerrilha (152), de Anders Ehnmark, foi muito citado pelo movimento anti-imperialista sueco.

Numa conferência em Estocolmo em que participaram os Grupo de África de Arvika, Gotemburgo, Estocolmo e Uppsala, que se auto-proclamavam ”grupos de trabalho anti-imperialistas” (153) e que definiram como um dos seus principais objectivos ”estudar e combater o imperialismo, especialmente o da Suécia em África” (154), foi adoptada uma directriz, em jneiro de 1971 ”para a actividade dos grupos” (155). 

Terminada conferência, os grupos enviaram cartas para os gabinetes da FRELIMO, do MPLA e do PAIGC, informando-os de que o trabalho do movimento de solidariedade se baseava ”no princípio formulado pelo camarada Amílcar Cabral”, nomeadamente que "a melhor forma de provar a vossa solidariedade é lutar contra o imperialismo nos vossos países,ou seja, na Europa. Enviar-nos medicamentos é positivo, mas secundário" (156).

Independentemente das suas posições quanto ao imperialismo, era difícil afirmar, pelo menos no caso da Suécia, que os líderes do PAIGC, da FRELIMO e do MPLA tenham ficado muito estimulados por, no início de 1971, terem sido informados da aplicação de uma declaração geral feita em 1964 e que se aplicava a uma situação concreta, existente nesse primeiro momento (157).  É além disso improvável que considerassem a ajuda humanitária como algo secundário, ou que vissem de todo a Suécia como um país imperialista (158).

O líder citado do PAIGC participara activamente na ajuda sueca. Cabral tinha também uma enorme abertura de espírito face ao relacionamento entre a Suécia e Portugal. Durante a sua primeira visita, realizada nos finais de 1968, declarou, segundo narra Pierre Schori, que Portugal não devia ser excluído da EFTA, pois isso significaria ”que o país poderia agir com ainda mais à-vontade” (159). 

 Como consta das notas de uma reunião entre o representante das Nações Unidas, Sverker Åström,  e Cabral, realizada em fevereiro de 1970, este último deixou clara a sua opinião, dizendo "perceber perfeitamente que a filiação de Portugal na EFTA impunha certos limites à Suécia, mas que queria destacar que não gostaria, de forma alguma, de recomendar uma interrupção das relações comerciais entre a Suécia e Portugal, corte esse que sabia ser exigido por certos núcleos radicais de jovens na Suécia" (160).

Uma vez que encabeçava uma luta de libertação que estava a correr bem e tendo a intenção de manter e desenvolver relacionamentos internacionais depois da independência da Guiné-Bissau, a diplomacia conduzida por Cabral caracterizava-se por um realismo pragmático

De acordo com o académico guineense Carlos Lopes, o seu principal mote condutor era ”a nossa ideologia é o nacionalismo, obter a nossa independência, e obtê-la de uma forma absoluta, e fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance usando as nossas próprias forças, embora cooperando com todos os outros povos para conseguir desenvolver o nosso país” (161). 

Esta posição não só contrasta com a interpretação ideológica do conceito de luta nacionalista feita pelo movimento de solidariedade sueco, como levou Cabral, nessa altura, a retirar algum destaque a várias iniciativas, levadas a cabo na cena internacional, em prol do PAIGC. 

Isso mesmo fica claramente demonstrado antes da Assembleia Geral das Nações Unidas em novembro de 1972 quando, por deferência estratégica para com a Suécia e os outros países nórdicos, recusou a possibilidade que lhe foi dada de se dirigir ao pleno da assembleia, como primeiro representante de um movimento de libertação.

O pano de fundo para essa recusa foi o seguinte: O Comité das Nações Unidas para a Descolonização (162) (também chamado Grupo dos 24) organizou uma visita única de apuramento de factos à Guiné em abril de 1972 ”com o objectivo de desmistificar as afirmações portuguesas segundo as quais não existiam quaisquer zonas libertadas e dar legitimidade aos movimentos africanos de libertação” (163).

 A delegação era composta por três jovens diplomatas das Nações Unidas, um dos quais (de nome Folke Löfgren, o primeiro secretário da missão permanente em Nova Iorque) representava a Suécia (164),  país que, na altura, era o único membro ocidental do Comité para a Descolonização (165). 

Uma vez que o governo sueco tinha alargado bilateralmente, e de forma considerável, a ajuda humanitária ao PAIGC, a iniciativa foi seguida com todo o interesse pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros em Estocolmo. 

Organizada ”de forma clandestina” (166), a missão das Nações Unidas provocou indignação em Portugal (167).  Durante a visita, os portugueses intensificaram os bombardeamentos aéreos e a actividade militar em geral contra as zonas libertadas. Löfgren diria depois que ”fomos ingénuos, ao ponto de não acreditar que Portugal poderia tratar as Nações Unidas desta forma” (168).

As Nações Unidas ficaram ”impressionadas com o entusiasmo e a cooperação abnegada que o PAIGC recebe das populações nas zonas libertadas e o grau de participação dessa mesma população na maquinaria administrativa criada pelo movimento de libertação” (169), concluindo que o PAIGC não apenas controlava militarmente, mas governava de facto os territórios libertados. 

Löfgren teve oportunidade de registar in loco que a ajuda humanitária sueca (nomeadamente em termos de material escolar, mormente na forma do livro escolar O Nosso Livro) chegava às populações no interior do país (170). 

Em geral,a missão confirmou o apoio popular de que gozava o PAIGC nas zonas visitadas, tendo recomendado o reconhecimento da declaração planeada de independência da Guiné-Bissau (171). 

 Com base nas suas conclusões, o Comité das Nações Unidas para a Descolonização aprovou, numa reunião em Conacri a 10 de abril de 1972, na qual participou Amílcar Cabral, uma resolução, em que reconhecia o PAIGC "como o único e autêntico representante do território da Guiné-Bissau, solicitando a todos os estados e agências especializadas, bem como outras organizações do sistema das Nações Unidas, que tomassem esse facto em consideração ao tratar de questões que se relacionassem com a Guiné-Bissau e Cabo Verde" (172).

Tratou-se de um grande êxito politico e diplomático para o PAIGC e, de uma forma mais geral, de ”um enorme avanço em termos da compreensão internacional para a maior legitimidade dos movimentos africanos de libertação junto das Nações Unidas”.173 

Com base no relatório da missão (**), o Comité das Nações Unidas para a Descolonização pôde então instar ao reconhecimento dos movimentos de libertação enquanto observadores, e não apenas como peticionários (174).

Ainda mais importante do que isso foi que, pela primeira vez na história das Nações Unidas, foi possível que um representante de um movimento de libertação se dirigisse directamente à Assembleia Geral das Nações Unidas, honra essa que teria cabido a Amílcar Cabral mas que, devido às reservas da Suécia e dos países nórdicos, não se veio a verificar. Numa entrevista datada de 1995, o presidente do Comité de Descolonização das Nações Unidas, Salim Ahmed Salim da Tanzânia, relembra:

"Amílcar Cabral veio a Nova Iorque e nós tentámos que ele falasse na Assembleia Geral dasNações Unidas. Nessa época era inconcebível que um representante de um movimento de libertação se dirigisse à Assembleia Geral, mas nós dispúnhamos dos apoios necessários para tal. 

"Contudo, os países nórdicos tinham reservas. Lembro-me do embaixador da Suécia e os outros embaixadores nórdicos me dizerem: ”Olhe que não estamos satisfeitos com isto. Em termos legais, teremos problemas se representantes dos movimentos de libertação se dirigirem à Assembleia Geral. É algo sem precedentes e que vai provocar imensos problemas.”(175). 

"Fui então ter com Amílcar Cabral e disse-lhe: ”Sr. Secretário Geral, se quiser dirigir-se à Assembleia Geral, nós dispomos de votos para tal. Temos o apoio necessário dos países africanos e asiáticos, bem como de um conjunto de países sul-americanos. Mas quero que saiba que os países nórdicos estão muito descontentes com isso. O que fazemos?” Cabral então disse: ”Olhe, os países nórdicos são nossos amigos. Ajudaram-nos nas alturas mais difíceis e não queremos criar-lhes dificuldades. Não me dirigirei à Assembleia Geral”.

"Havia imenso respeito pela posição dos países nórdicos. Nem se punha a possibilidade de duvidar da sua integridade ou da sua sinceridade relativamente aos movimentos de libertação. Se qualquer outro país ou conjunto de países tivesse dito que não, nós teríamos trazido a questão ao conhecimento da Assembleia Geral e recebido os votos necessários. [...] Nós sabíamos que a posição dos países nórdicos era de apoiar os movimentos de libertação de uma forma prática.

"Essa era, também, a única maneira de entender a posição de Cabral, pois ele era um desses visionários, um gigante entre as pessoas, que não hesita. Ele mostrou o respeito que nutria pelos países nórdicos e, como é óbvio, esse respeito foi partilhado por aqueles que o apoiavam e que apoiavam a luta (176).

__________

Notas do autor:

131. A primeira dotação ao PAIGC em 1969–70 foi de 1 milhão de coroas suecas. O primeiro donativo à SWAPO da Namíbia, concedido em 1970–71, foi de 30.000 coroas suecas e a ajuda regular ao ANC da África do Sul foi de 150.000 coroas suecas em 1972–73.

132. Amílcar Cabral opunha-se firmemente à ideia de receber ajuda oficial sueca via o Comité de Libertação da OUA (Marianne Rappe: Memorando (”Samtal med Folke Löfgren på SIDA den 21.4.1972: PAIGC”/”Conversa com Folke Löfgren na ASDI 21.4.1972: PAIGC”), ASDI, Estocolmo, 24 de Abril de 1972) (MFA). 

As relações diretas e bilaterais não só aumentaram a influência do movimento de libertação sobre o programa de apoio, mas fortaleceram também a posição do mesmo na cena internacional. Deve-se acrescentar a isto as limitações administrativas da OUA. Todos os movimentos de libertação da África Austral apoiados pela Suécia partilhavam do ponto de vista de Cabral neste aspeto. 

No caso do Zimbabué, o antigo vice-secretário das Finanças da ZANU, Didymus Mutasa, explicaria depois: ”Nós sentimos muito o peso da burocracia que reinava no seio da OUA. Eles diziam que tínhamos de esperar pela cimeira dos chefes de estado que, depois de reunir, ainda iria demorava muito tempo a decidir se era ou não necessário que avançássemos com a luta de libertação. Entretanto, nós ficávamos sentados ao sol, à espera e na esperança de que chegasse ajuda. Daí que tenhamos pensado porque não haveríamos de receber o dinheiro directamente” (Entrevista com Didymus Mutasa, p. 218). Cf. Ansprenger op. cit.

133. De acordo com Aristides Pereira, que visitou Estocolmo no início de janeiro de 1973, o afastamento de Silveira foi uma ”medida disciplinar”, motivada pelo facto deste se ter recusado a viajar para a Guiné, para debates com o PAIGC. Contudo, o movimento estava ”muito satisfeito com o trabalho feito por Silveira na Suécia” (Anders Möllander: Memorando (”Minnesanteckningar från besök 1973 01 02 av Aristides Pereira, PAIGC”/”Notas davisita de 1973 01 02 de Aristides Pereira, PAIGC”), Estocolmo, 4 de janeiro de 1973) (SDA). 

O novo representante do PAIGC, Gil Fernandes, foi apresentado por carta de Aristides Pereira pouco tempo depois (Carta de Aristides Pereira à ASDI, Conacri, 11 de janeiro de 1973) (SDA). Fez a sua primeira visita à ASDI em meados de fevereiro de 1973, na companhia de Fernando Cabral, irmão do líder do PAIGC recentemente assassinado (Carta (”Svensktvarubistånd till PAIGC”/”Ajuda sueca em géneros ao PAIGC”) de Marianne Rappe, ASDI a Gun-Britt Andersson, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 26 de fevereiro de 1973) (SDA). 

Em resumo, quanto à representação do PAIGC na Suécia, não houve grandes quebras no relacionamento. Silveira veio depois a trabalhar para as Nações Unidas em vários países africanos. Em novembro de 1998 formou um novo partido político, o Partido do Trabalho e da Solidariedade (PTS) em Cabo Verde, seu país de origem.

134. O governo português sabia do plano do PAIGC de declarar a Guiné-Bissau independente em 1973, e receava que isso se traduzisse num aumento da pressão no sentido de se fazer a descolonização em Angola e Moçambique, e num desafio à sua autoridade em Portugal. 

O assassinato de Cabral resultou duma operação iniciada pela PIDE, que contou com a ajuda de um grupo de dissidentes do PAIGC. Cabral foi alvejado a tiro em pleno dia, em frente ao gabinete do PAIGC em Conacri, por um antigo comandante naval do PAIGC (ver Chabal op. cit., pp. 132–43).

135. Aristides Pereira foi confirmado como novo secretário geral e Luís Cabral como vice secretário geral, no congresso do PAIGC realizado no Boé (no leste da Guiné-Bissau) em julho de 1973.

136. Carta (”Svenskt varubistånd till PAIGC”/”Ajuda sueca em géneros ao PAIGC”) de Marianne Rappe, ASDI para Gun-Britt Andersson, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Estocolmo, 26 de fevereiro de 1973 (SDA).

137. A memória de Cabral foi objecto de homenagem, entre outras, do primeiro ministro Palme, no parlamento (”Extracto do discurso de abertura do primeiro ministro, Olof Palme, no debate político na generalidade, Riksdag”, 31 de janeiro de 1973, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Pollicy: 1973, Estocolmo, 1976, pp. 19–20). 

Palme tinha já enviado as suas condolências ao PAIGC e à viúva do secretário geral assassinado, caracterizando-o como ”um dos líderes mais proeminentes do Terceiro Mundo” (Telegrama do Ministro dos Negócios Estrangeiros à delegação sueca nas Nações Unidas em Nova Iorque, Estocolmo, 22 de Janeiro de 1973) (MFA).

Mostra das tensas relações entre o movimento de solidariedade e o governo nessa altura é a forma como os pêsames de Palme foram descritos pelos Grupos de África, ou seja, como ”uma desagradável tentativa de tirar partido do bom nome e da reputação do PAIGC, à escala mundial, num momento de dor” (Södra Afrika Informationsbulletin, nº. 19, 1973, p. 9).

138. MacQueen op. cit., p. 21.

139. Carlos Lopes: Guinea Bissau: From Liberation Struggle to Independent Statehood, Westview Press, Boulder, Colorado and Zed Books, Londres e New Jersey, 1987, pp. 57–58.

 140. Södra Afrika Informationsbulletin, nº.  19, 1973, pp. 2 e 9.

141. Em janeiro de 1972, o presidente do Partido de Esquerda Comunista, C.H. Hermansson, apresentou uma moção ao parlamento, exigindo o ”fim do princípio de tutela para a ajuda humanitária aos movimentos de libertação nas colónias portuguesas e a favor de um princípio de ajuda incondicional” (Parlamento sueco 1972: Moção nº. 57, Riksdagens Protokoll, 1972, p. 5).

Entrevistado em 1996, Hermansson explicou que ”na nossa opinião, os movimentos de libertação deveriam, por exemplo, ter a possibilidade de comprar armas (e tudo o que precisassem para a sua luta) com a ajuda sueca” (Entrevista com C.H. Hermansson, p. 291).

142. O governo norueguês decidiu, em março de 1972, atribuir um milhão de coroas norueguesas ao PAIGC. Essa ajuda foi aumentada para 1,5 milhões de coroas norueguesas em 1973.  Para mais informações sobre a Noruega e o PAIGC, consulte Tore Linné Eriksen: ”As origens de um relacionamento especial: Noruega e África Austral 1960– 1975” em Eriksen (ed.) op. cit., pp. 72–77. 

Antes de o governo finlandês tomar, em 1973, uma decisão de princípio em prol da ajuda directa aos movimentos de libertação africanos, Cabral fez uma visita a Helsínquia. Convidado por um comité ad-hoc, de um conjunto muito largo em termos de base de ONGs, presidido pelo futuro primeiro ministro social democrata Kalevi Sorsa, Cabral foi oficialmente recebido em outubro de 1971 pelo presidente Urho Kekkonen. Segundo Soiri e Peltola, Cabral ”foi o primeiro líder dos movimentos de libertação africanos a ser tratado como um estadista na Finlândia”. A visita ”foi um êxito e congregou, pela primeira vez, os partidos políticos finlandeses à volta da questão de acabar com o colonialismo em África” (Iina Soiri e Pekka Peltola: Finland and National Liberation in Southern Africa /”A Finlândia e a Libertação Nacional na África Austral”/, Nordiska Afrikainstitutet, Uppsala, 1999, pp. 51–52).

143. Marianne Rappe: Memorando (”Samtal med Folke Löfgren på SIDA den 21.4.1972: PAIGC”/”Conversa com nFolke Löfgren na ASDI 21.4.1972: PAIGC”), ASDI, Estocolmo, 24 de Abril de 1972 (SDA). A ASDI solicitou informação sobre outros doadores ao PAIGC e aos movimentos de libertação da África Austral. A informação era regularmente incluída nos documentos apresentados ao Comité Consultivo para Ajuda Humanitária.

144. Na fase final da guerra de libertação, a União Soviética forneceu ao PAIGC mísseis terra-ar, dando a supremacia, de forma decisiva, ao movimento de libertação. Os mísseis foram pela primeira vez usados em março de 1973, altura em que o PAIGC abateu dois caças-bombardeiros fornecidos pela República Federal da Alemanha. No ano que se seguiu, os portugueses perderam trinta e seis aviões (Rudebeck op. cit., pp. 52–53).

145. No caso da ZANU do Zimbabué, o principal fornecedor de armas era a República Popular da China.

146. Ver, por exemplo, as entrevistas com o antigo director geral da ASDI (1965–79) Ernst Michanek (p. 323) e com a antiga Ministra para a Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (1985–91) e dos Negócios Estrangeiros (1994–98) Lena Hjelm-Wallén (p. 293). Em 1998, Hjelm-Wallén foi nomeada vice primeiro ministro.

147. Esta perspectiva era também partilhada por importantes grupos dentro do Partido Social Democrata, no poder. Birgitta Dahl, por exemplo, levantou no parlamento sueco a questão da legislação contra investimentos em Portugal e nas suas colónias (”Resposta do Ministro dos Negócios Estrangeiros a uma interpelação pela Sra. Dahl”, 10 de dezembrde 1973, em Ministério dos Negócios Estrangeiros: Documents on Swedish Foreign Policy: 1973, Estocolmo, 976, pp. 155–59).

148. AGIS op. cit., p. 194.

149. Göran Palm: ”Rapport från Guiné-Bissau”/”Relatório da Guiné-Bissau” sem indicação de local nem data (SDA).

150. Introdução por Göran Palm a Cabral (1971) op. cit., p. 25.

151. Cabral (1971) op. cit., p. 37.

152. Ehnmark (1968) op. cit., pp. 139–58.

153. ”Protokoll”/”Actas” (”Konferens mellan Afrikagrupperna i Sverige, 2–3 januari 1971”/”Conferência entre os Grupos de África na Suécia, 2–3 de janeiro de 1971”) sem indicação de local nem data (AGA).

154. Os Grupos de África na Suécia: ”Circular nº. 3”, sem indicação de local, 8 de abril de 1971 (AGA).

155. Ibid. Ver também Södra Afrika Informationsbulletin, nº. 11, 1971, p. 2.

156. Carta (em francês) em nome dos Grupos de África de Arvika, Lund, Estocolmo e Uppsala, escrita por Dick Urban Vestbro e enviada à FRELIMO, ao MPLA e ao PAIGC, Estocolmo, 3 de janeiro de 1971 (AGA).

157. Pelo contrário, numa alocução conjunta com Göran Palm na Universidade de Uppsala, em novembro de 1968, Cabral disse: ”Não se limitem a manifestar-se. Façam também algo de concreto. [...] Enviem-nos medicamentos e outros bens de que necessitamos” (Upsala Nya Tidning, 28 de novembro de 1968). 

O primeiro pedido de ajuda sueca à luta de libertação nas colónias portuguesas em África foi feito por Marcelino dos Santos em nome do MPLA, em 1961. Centrava-se no pedido de medicamentos para os refugiados angolanos na região do Baixo Congo.

Apercebendo-se da reacção positiva do jornal Expressen, Cabral também pediu ao jornal liberal sueco que ajudasse a conseguir medicamentos.

158. Cf. as entrevistas com Lúcio Lara do MPLA (pp. 18–21) e Marcelino dos Santos da FRELIMO (pp. 47–52).

159. Citado em ”Portugals argumentnöd bevisar: Kolonialkrigen går dåligt!” (”A falta de argumentos de Portugal prova que as guerras coloniais não estão a correr bem!”), em Arbetet, 13 de dezembro de 1968.

160. Carta (”Samtal med Amílcar Cabral om läget i Portugisiska Guinea”/”Conversa com Amílcar Cabral sobre a situação da Guiné portuguesa”) de Sverker Åström para o Ministério sueco dos Negócios Estrangeiros, Nova Iorque, 26 de fevereiro de 1970 (SDA).

161. Cabral citado em Lopes op. cit., p. 57.

162. Ou seja, o Comité Especial das Nações Unidas sobre a situação relacionada com a Aplicação da Declaração de concessão de independência aos países e povos coloniais, ou o Comité das Nações Unidas para o acompanhamento dos acontecimentos relativos à Declaração de Descolonização de 1960.

163. Entrevista com Salim Ahmed Salim, p. 244. Na altura, Salim era o presidente do Comité das Nações Unidas para a Descolonização. Pessoa próxima dos movimentos africanos de libertação, foi depois nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros (1980–84) e primeiro ministro (1984–85) da Tanzânia. Em 1989, Salim foi eleito secretário geral da OUA.

164. A missão das Nações Unidas foi chefiada por Horacio Sevilla-Borja, do Equador. O terceiro membro era Kamel Belkhiria,  da Tunísia. Acompanhados por uma numerosa escolta militar do PAIGC, os três diplomatas fizeram-se acompanhar de uma secretária e de um fotógrafo. A visita realizou-se entre 2 e 8 de abril de 1972.(**)

165. Carte de Brita Åhman ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, Nova Iorque, 7 de março de 1972 (MFA). A participação da Suécia no Comité das Nações Unidas para a Descolonização foi da maior importância, devido aos contactos que tinha e às políticas que desenvolvia com os movimentos africanos de libertação. 

Em abril de 1972, por exemplo, o representante sueco, Brita Åhman, participou nos debates deste comité com um total de quinze movimentos, em Conacri (Guiné), Lusaca (Zâmbia) e Addis Ababa (Etiópia). Num extenso relatório das ”audições”, enviado ao Ministério sueco dos Negócios Estrangeiros, fez uma avaliação das políticas e da força de cada um dos movimentos de libertação, dando uma orientação preciosa ao governo sueco (Brita Åhman: Memorando (”Kolonialkommitténs session i Afrika 1972”/”A sessão do Comité para a Descolonização em África, 1972”), Nova Iorque, 19 de junho de 1972) (MFA).

166. Entrevista com Salim Ahmed Salim, p. 244.

167. De forma notável, o embaixador sueco em Portugal, Karl Fredrik Almqvist, também repudiou a iniciativa

Enquanto o secretário geral das Nações Unidas, Kurt Waldheim, felicitava os membros da missão pela visita difícil, mas bem-sucedida, Almqvist descrevia-a como ”uma violação da soberania de outro país”, dizendo que a missão tinha ”violado a legislação internacional” e que a participação da Suécia poderia prejudicar a ”boa-vontade internacional” para com a Suécia (Carta de Karl Fredrik Almqvist ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 14 de abril de 1972) (MFA).

168. Citado em Marianne Rappe: Memorando (”Samtal med Folke Löfgren på SIDA den 21.4.1972: PAIGC”/”Conversa com Folke Löfgren na ASDI 21.4.1972: PAIGC”), ASDI, Estocolmo, 24 de abril de 1972 (SDA).

169. Nações Unidas: ”Relatório da Missão Especial das Nações Unidas à Guiné-Bissau”, Reimpresso de Objective: Justice, Vol. 4, Nº 3, Nova Iorque, setembro de 1972, p. 12.

170. Johnny Flodman: ”Svensk FN-diplomat jagades av portugiser i Guinea” (”Diplomata sueco das Nações Unidas foi perseguido pelos portugueses na Guiné”), em Svenska Dagbladet, 17 de abril de 1972.

171. A missão visitou a Guiné-Bissau numa altura em que o PAIGC estava a conduzir os preparativos para as primeiras eleições nacionais no país, nas zonas libertadas. As eleições para os conselhos regionais realizaram-se em agosto de 1972. Os conselheiros elegeram, por sua vez, os membros de uma Assembleia Nacional.

172. Nações Unidas: Secretariat News, Vol. XXVII, nº. 10, Nova Iorque, 31 de maio de 1972, p. 9.

173. Entrevista com Salim Ahmed Salim, p. 244.

174. Ibid.

175. De acordo com a delegação sueca às Nações Unidas, foi transmitido a Cabral que ”a Suécia votaria, naturalmente, a favor na questão da sua proposta alocução perante a Assembleia Geral, mas [...] chamava a sua atenção para o facto de parecer evidente que a própria causa de Cabral não vir a sair beneficiada, se uma tal proposta der azo a divisões de opinião e a uma votação” (Telegrama da representação sueca nas Nações Unidas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, Nova Iorque, 24 de outubro de 1972) (MFA).

176. Entrevista com Salim Ahmed Salim, pp. 244–45.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / itálicos / bold, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G ]

____________

Notas do editor:

16 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19592: (D)o outro lado do combate (48): A Missão Especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - III (e última) Parte: capa + pp. 9-11.