domingo, 10 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2519: As Nossas Madrinhas de Guerra (1): Os aerogramas ou bate-estradas do nosso contentamento (Carlos Vinhal / Luís Graça)


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Um Lassa, ferido em combate, recebendo assistência... Era esperado que as madrinhas de guerra (uma figura criada ou ressuscita pelo MNF em 1963) ajudassem a curar as feridas, sobretudo psicológicas, da guerra. Uma madrinha de guerra tinha a obrigação de escrever, pelo menos semanalmente, ao seu afilhado...

Lembro-me de o meu pai, 1º cabo de infantaria, expedicionário, durante a II Guerra Mundial, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente (1941/43), me contar que escrevia semanalmente dezenas de cartas para os seus camaradas que não sabiam ler nem escrever... E que só um deles tinha 22 madrinhas de guerra...

Portanto, esta figura não é uma criação genuína, original, do MNF... O movimento fundado e liderado por Cecília Supico Pinto dê-lhe mais consistência ideológica e visibilidade mediática:

"Que cada uma de nós se lembre que lá longe, nas províncias ultramarinas, há rapazes que deixaram tudo: mulheres, filhos, mães, noivas e o seu trabalho, o seu interesse, tudo enfim, para cumprirem o seu dever de soldados. É preciso que as mulheres portuguesas se compenetrem da sua missão, e assim como eles estão cumprindo o seu dever, lutando pela nossa querida Pátria, também vós tendes para cumprir o vosso, lutando pelo bem-estar dos nossos soldados- luta essa bem pequenina, pois uma só palavra, um pouco de conforto moral basta para levar alguma felicidade aos que estão contribuindo para a defesa da integridade do nosso Portugal.

OFEREÇAM-SE PARA MADRINHAS DE GUERRA. MANDEM O VOSSO NOME E A VOSSA MORADA PARA A SEDE DO MOVIMENTO NACIONAL FEMININO".

("Madrinhas de guerra". In: Revista Presença. Nº 1, 1963, p. 36-37).


Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.




Um original aerograma, escrito em linhas concêntricas, reproduzido no livro do nosso camarada António Graça de Abreu, Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura, Lisboa, Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007. Preço: € 22... Que continua vender-se bem, segundo o autor me confidenciou há tempos (*)...

Foto: © António Graça de Abreu (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do co-editor Carlos Vinhal para o Luís Graça:

Luís: Encontrei esta pérola (**). Podíamos republicar este teu trabalho na série Álbum das memórias, como introdução à nova série As Nossa Madrinhas de Guerra.

Enquanto não me respondes, vou fazer os rascunhos respectivos.
Um abraço
Carlos

2. Resposta do L.G.:

Carlos:

É um texto meu, antigo (**)... É, de facto, cronologicamente falando, o nosso poste nº 1... Quis, com ele, dar início à divulgação de escritos sobre a guerra, o que só veio acontecer um ano depois... com o aparecimento do Sousa de Castro, o tertuliano nº 2... O texto é de facto de 23 de Abril de 2004...

Mas devo acrescentar-te, a título pessoal, o seguinte: (i) nunca tive madrinha de guerra; (ii) nunca escrevi um aerograma... Tenho, apesar de tudo, uma colecção de cartas e aerogramas desse tempo, de pessoas conhecidas que mos emprestaram ou deram...

23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Um abração do Luís

PS - Temos que fazer um apelo à malta para nos mandar cópias (ou excertos) de aerogramas com interesse para o nosso blogue... Quem os terá ?

O Beja Santos, por exemplo, tem a colecção das cartas e aerogramas que mandava, todos os dias, à noiva (e futura esposa e mãe das suas filhas, a Cristina Allen)... Foi graças a esse material que ele pôde, em grande parte, reconstituir o seu dia a dia em Missirá e em Bambadinca, nos anos de 1968, 1969 e 1970... Mas isto é um caso raro, que podes referir...

Também tens o caso dos aerogramas do Lobo Antunes (que esteve em Angola, Alferes Miliciano médico, 28 anos, recém-casado)... A primeira mulher dele guardou esses aerogramas que foram depois publicados pelas filhas, a seguir à sua morte (***)...

Enfim, também tens o exemplo do nosso camarada António Graça de Abreu cujo livro (Diário da Guiné: Lama, Dangue e Água Pura) baseia-se nos aerogramas que ele mandou (cerca de 300) à sua namorada (com quem de resto, não chegou a casar, segundo ele me confidenciou)... Há colecções de correspondência epistolar que podem ser recuperadas, se não foram parar ao lixo... O que será feito dos milhões e milhões de bate-estradas que escrevemos às nossas madrinhas de guerra, pais, noivas, namoradas, amigos ?...

Julgo que muitos desses aerogramas hoje poderiam ter interesse para a investigação socioantropológica sobre a guerra colonial e os homens que a fizeram...

Temos de fazer um apelo veemente para que a malta que ainda os tem (ou sabe onde podem estar guardados), não os destrua e faça uma doação desse material ao Arquivo Histórico Militar. Hoje, amanhã, no futuro, haverá certamente investigadores interessados nesse material... Uma selecção dessa correspondência poderá ser publicada no nosso blogue, nalguns casos omitindo-se o nome dos correspondentes, por razões óbvias de sigilo...

Segundo leio na recente biografia de Cecílio Supico Pinto, escrita poor Sílvia Espírito Santo (Lisboa, Esfera dos Livros, 2008), a campanha das Madrinhas de Guerra data de 1963, e foi uma das mais bem sucedidas iniciativas do MNF:

"A madrinha de guerra escreve ao seu afilhado pelo menos todas as semanas. E, ao passo que as cartas de casa são tanta vez deprimentes e lamentosas (a queixarem-se das saudades que têm, das dificuldades que passam, do receio que sentem pela segurança do rapaz), as cartas da madrinha de guerra procuram ser sempre agradáveis, versando os assuntos que mais possam interessá-los. A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado.

E sabe que não basta distraí-lo: que é tanbém necessário fortificar-lhe a coragem, transmitir-lhe confiança, torná-lo psicologicamente mais apto para bem cumprir - e cumprir com satisfação" (Presença, revista do MNF, nº 1, 1963, pp. 36-37, citado por Espírito Santos, 2008, pp. 78)


3. O nosso poste nº 1... > Saudosa(s) madrinha(s) de guerra,
por Luís Graça

Trinta e cinco anos depois.

No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.

Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.

Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.

Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.

Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.

Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.

Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.

Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.

E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.

______________

Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra.

Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge.

Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir. Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra. Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos.

Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida.

E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 () na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas.

Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos.

Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)
_________
Notas (L.G.):

(1) Abreviatura de areograma. Também era conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").

Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981)

(2) Por mor de = por causa de (expressão usada no Norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminutivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1200 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.

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Notas do co- editor CV:

(*) Vd. entre outros os postes de:

7 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2414: Notas de leitura (5): Diário da Guiné, de António Graça de Abreu (Virgínio Briote)

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

(**) Vd. poste de 23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Lista dos dez primeiros postes do nosso blogue (1ª série):


23 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

25 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - II: Excertos do diário de um tuga (1) (Luís Graça)

28 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - III: Excertos do diário de um tuga (2) (Luís Graça

7 de Dezembro de 2004 > Guiné 69/71 - IV: Um Natal Tropical (Luís Graça)

20 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - V: Convívio de antigos camaradas de armas de Bambadinca (Luís Graça)

22 de nAbril de 2005 > Guiné 69/71 - VI: Memórias do Xime, do Rio Geba e do Mato Cão (Sousa de Castro)

25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)

28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)

29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1) (Luís Graça)

Vd. também poste de 24 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1693: Blogoterapia (20): Blogando... há dois anos

Saudosa(s) madrinhas(s) de guerra... Este foi o nosso primeiro poste, numerado, não avulso, publicado no dia 23 de Abril de... 2004, no meu blogue pessoal, que na altura se chamava muito simplesmente... Blogue-Fora-Nada... e que tinha sido criado em 8 de Outubro de 2003.

Eu, que não escrevia aerogramas (e muito menos para madrinhas de guerra~), estava longe de imaginar as consequências do meu gesto, dando origem depois a um blogue que se pretendia que fosse colectivo... Para a petite histoire, aqui faço a reprodução desse primeiro poste que não teve qualquer eco na blogosfera...

Na realidade, foi preciso que começasse a aparecer, um ano depois, em Abril de 2005, a malta do triângulo Bambadinca-Xime-Xitole: o Sousa de Castro e o David Guimarães, que são historicamente os dois primeiros membros da nossa tertúlia, além de mim próprio...

Por exemplo, foi o Sousa de Castro que me fez chega, em 4 DVD, a reportagem de vídeo feita pelo Albano Costa e seu filho Hugo Costa, por ocasião da sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000... Depois, em Maio de 2005, começaram a aparecer outros camaradas: o Humberto Reis, meu vizinho, amigo e camarada da CCAÇ 12 (6 de Maio), o A. Marques Lopes, de Matosinhos (14 de Maio)... E o nosso primeiro amigo, o José Carlos Mussá Biai (10 de Maio), que vivia no Xime, em criança, no nosso tempo (CCAÇ 12, 1969/71)...

O resto da história sabem-na vocês: criámos a nossa tertúlia e o blogue começou a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné... Foi um dique de imagens, textos, lugares, recordações, sentimentos e emoções que se rompeu... e que nos tem ajudado a reconstituir/reconstruir o tal puzzle da memória... Hoje já percorremos um bom caminho (mais de 2500 postes) e por aqui já passou gente suficiente para formar duas companhias... Muitos camaradas de armas daquele tempo não dão a cara, mas visitam-nos: temos mais meio milhão de visitas, mais de mil por dia... (LG)


(***) Vd. postes de:

6 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

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