Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2539: As nossas mulheres (2): Em Dia de São Valentim... ou o amor e a morte em tempo de guerra (Mário Fitas, Torcato Mendonça, Manuel Bastos)
Cópia de aerograma, tendo por remetente o Manuel Correia de Bastos, SPM 8244...
Foto: Blogue de Manuel Correia de Bastos > Cacimbo - Episódios da Guerra Colonial
1. Em dia de São Valentim, lembrei-me de mandar a seguinte mensagem à malta da nossa Tabanca Grande:
Assunto - O São Valentim não andou na guerra
Amigos/as & camaradas:
Então, em Dia de São Valentim (uma modernice da sociedade de consumo, diga-se de passagem…) não há um carta de amor escrita em tempo de guerra ? Onde estavam os (e)ternos namorados de antigamente ? Ou a guerra matava a paixão, o desejo e a inspiração poética ?
Camaradas, no feminino, não havia, tirando as enfermeiras pára-quedistas… Mas essas eram de mau agoiro, por mim nem vê-las nem cheirá-las… Como eu costumava dizer, elas eram as nossas Jocastas que vinham arrancar os seus filhos às guerras da morte... Só levavam os feridos, nunca os mortos... Restavam as saudosas madrinhas de guerra que, afinal, não eram assim tantas como a gente pensava…
Segundo a nossa sondagem, a que responderam, até agora 89 participantes:
(i) cerca de dois terços (64%) não tinham madrinha de guerra.
(ii) dos 32 que se correspondiam com madrinhas de guerra (excluindo esposa, noiva ou namorada), um terço era "monogâmico" (tinha só uma);
(iii) 16 tinham duas ou três;
(iv) apenas uma minoria de nós (5%) correspondia-se com quatro, cinco, seis ou mais madrinhas de guerra…
A nossa amostra, como tudo o indica, não é representativa da população de militares (soldados, cabos, furriéis, sargentos, alferes, milicianos e não milicianos, etc.) que fizeram a guerra colonial... Afinal, quem é que coleccionava madrinhas de guerra ? Os escriturários ? Os básicos ? Eu sempre ouvi dizer que havia malta a receber dezenas e dezenas de cartas e aerogramas...
De qualquer modo, ainda faltam dois dias para terminar o prazo de resposta.
Um Bom São Valentim.
Um Beijinho às bajudas da nossa Tabanca Grande. Tratem bem os vossos homens grandes.
Um Alfa Bravo para os nossos moiros e morcões. Sejam gentis com as vossas bajudas. Luís
2. Tive, de imediato, a resposta de três camaradas: o Mário Fitas, o Torcato Mendonça e o Manuel Correia Bastos. A resposta do Manuel Bastos, que andou por Çomçanique, e é o autor de um belíssimo blogue, o Cacimbo, merece um especial destaque (vd. a seguir, ponto 3).
2.1. Do Mário Fitas:
Mentira! Estão mas é todos caladinhos, para não se saber os malandros que foram!
Estou a brincar, Chefe. De qualquer forma, e complicado como foi, alguém que partiu ainda em botão escrevia-me todos os dias. Com os recatos devidos, se quiseres, podes publicar as pag. 145 a 148 de Putos, Gandulos e Guerra. Amor, desvaneio, prosa e poesia em tempo de Guerra. Umas décadas de avanço à época em que vivíamos. Dor e saudade, tresmalhados nos carreiros da mata de Cbolol.
Se o fizeres, para mim será um louvor a essa criança Mulher, que não teve tempo para viver a vida.
Chefe da Tabanca Grande, somos tão piquenos! Força para os homens e
mulheres que o souberam ser.
Do tamanho do Cumbijã, o Abraço de sempre.
Comentário: Uma Oscar Bravo, muito sentido. Não será hoje, mas publicarei esse teu texto de homenagem à criança-mulher que a morte levou cedo... Lamento muito. Depois aviso-te. LG
2.2. Do Torcato Mendonça:
Abro e dou de caras com o S. Valentim. Já, no nosso tempo teriam inventado o dia dos namorados ?
Havia muitos apaixonados. Tanto assim que alguns escreviam diariamente… Era obra!
Não tenho carta ou bate-estradas desse tempo… E tudo o vento levou (com a devida vénia)...Nem os amores da altura ficaram... as madrinhas de guerra... Ccomeço a recordar… Ainda um dia escrevo.. Melhor, junto letras e por aí fora...
Sabes(sabem), camarada(s), a espera do correio desesperava muita gente. Era faca de dois gumes: por um lado levantava o moral das NT mas, se recebido na véspera de uma operação... era uma chatice... A malta tinha a cabeça cá. Pior: tinha as duas e isso desestabiliza(va) um homem.
Mas só tu… te lembravas do S. Valentim dentro da guerra… Oh, oh,oh… porro em riste, como arma ia o Santo... Se usei linguagem menos própria, perdão, não ao Santo mas enfim… Como se chamará o Santo da paciência?
Um abraço que vos envolva a todos
Torcato Mendonça
Comentário de L.G.: Fico à espera dessas letras, todas juntinhas uma a uma...LG
3. Do Manuel Bastos, que foi furriel miliciano em Moçambique, e é autor do blogue Cacimbo onde tem publicado belíssimos textos como este, que ele nos manda:
Boa tarde, Luís Graça:
A título de contributo para a celebração do Dia dos Namorados anexo um texto que publiquei em tempos no meu blog. Se achares de algum interesse e o quiseres publicar basta copiar o texto que leva os códigos de html para exibir uma foto e colá-lo directamente no separador de html do editor de texto para uma nova mensagem do bloger.
Um abraço
Manuel Bastos
Cacimbo - Episódios da Guerra Colonial Aerograma
Mueda, 10 de Março de 1972
Meu amor,
Hoje morreu o Rivelino. Disseram que morreu. É irremediável, mas queria falar disto a alguém.
Sabes? Quando morre alguém nós ficamos um pouco mais sós. Por isso te escrevo, um dia quando te conhecer, quando nos amarmos e quando eu precisar de dizer isto outra vez a alguém, entrego-te este aerograma, para me fazeres companhia.
Aqui onde estou, a meio mundo de ti e a meia vida de te conhecer, há uma guerra e todos os dias morre alguém, é como se deus fizesse connosco o que eu estou a fazer agora com aquelas latas de cerveja alinhadas na vedação. Hoje a lata em que deus acertou chama-se Rivelino e eu precisava de chorar um pouco.
Eu choro sempre que morre alguém, mesmo que morram várias pessoas por dia. É a minha maneira de não aprender a morte; mesmo que não me apeteça chorar, choro. É uma espécie de exercício para não me esquecer que sou humano.
De vez em quando interrompo este aerograma e dou um tiro numa lata de cerveja e não vejo que prazer pode dar isso. É por pura curiosidade que o faço, para ver o que pode ter sentido deus quando o Rivelino morreu.
Falhei. Não é fácil acertar numa lata de cerveja com uma G3 a esta distância. Se aquela lata fosse o Rivelino eu hoje talvez não tivesse chorado, talvez não estivesse a escrever este aerograma e talvez não te viesse um dia a conhecer.
Mas o Rivelino morreu e eu sinto que é imperioso não deixar que isso passe em vão.
Aponto de novo a G3 e a lata de Laurentina aguarda ao longe que a minha pontaria volte a falhar. Eu enchi as latas de areia e quando lhes acerto em cheio elas explodem. É mais divertido assim, pensei eu, do que com uma lata vazia. Mas quando se trata de destruição e de morte não vejo que o espectáculo divirta mais.
Será por isso que dizem que deus pôs uma alma dentro de nós, será que é para ela explodir quando morremos, para ser mais divertido?
Não faças caso. Eu sei muito bem que não é deus que faz connosco o que eu faço com as latas de cerveja; são pessoas como eu que fazem isso, pessoas que aceitaram a missão de nos irmos abatendo uns aos outros por um motivo de que já nem sequer nos lembramos.
Quando esta guerra acabar ninguém se lembrará mais do Rivelino, então um dia, quando eu me sentir tão só como hoje e me apetecer dar tiros em latas de cerveja, eu hei-de encontrar este aerograma e dar-to-ei como se tu fosses a minha correspondente de guerra e nessa altura a solidão desvanecer-se-á um pouco.
Mas tenho que te encontrar primeiro, tenho que ir tentando pela vida fora até ter a certeza que és tu a destinatária deste aerograma.
Saberei que és tu se ao olhar-te não me apetecer chorar ninguém, como se não tivesse havido uma guerra, como se eu não tivesse feito com homens como eu, o que agora faço com as latas de cerveja.
E então sentirei um apelo enorme para te contar tudo isto, como se a música de um piano se soltasse, retinindo pérola a pérola sobre o pesado mármore do silêncio e acordasse em mim o riso e a inocência.
Se fores tu, lembraremos o Rivelino como uma criança inocente antes de lhe terem dado a missão que só é costume desculpar aos deuses e que na verdade nos transforma a todos em predadores ou em presas, em projécteis ou em alvos.
Se fores tu, terei a certeza que não aprendi a lição da morte, e este aerograma terá finalmente a sua destinatária.
Com todo o meu amor,
Manuel
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