sábado, 16 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2543: As Nossas Madrinhas de Guerra (2): Minha querida Madrinha de Guerra (José Teixeira)


1. As CARTAS ÀS MADRINHAS DE GUERRA cuja 1ª edição saiu em 1929, no Porto são uma colectânea de 43 cartas, cujo autor foi o então jovem Ten Afonso do Paço, nascido no lugar de Além do Rio, da freguesia de Outeiro, concelho de Viana do Castelo, que combateu na Grande Guerra, de 1914 a 1919.

As 18 primeiras cartas foram escritas, durante o período desgastante da guerra nas trincheiras, as 20 seguintes, nos campos de concentração de Lille, Rastatte Breesen, depois de ter ficado prisioneiro dos alemães, em 9 de Abril de 1918, e as 8 últimas, desde a saída da Alemanha até ao regresso a Portugal.
Como o título do livro deixa adivinhar, as cartas tiveram por destinatárias as Madrinhas de Guerra que, conforme o autor afirma, foram os "entes mais queridos da guerra, que lançaram sobre as trincheiras regadas de sangue catadupas de amor e de carinho...". Estas senhoras, pertencentes a qualquer estatuto social, mantinham correspondência assídua com os soldados da linha da frente, contavam-lhes novidades e faziam chegar até eles recordações e presentes, que muito contribuíram para os encorajar e mitigar as suas dores físicas e morais .

(Foto e texto tirados do site da Câmara Municipal de Viana do Castelo, com a devida vénia)



Crónica Feminina, cujo primeiro número saiu em 29 de Novembro de 1956. Nas suas páginas apareciam imensos anúncios de militares a pedir Madrinhas de Guerras para troca de correspondência



Madrinhas de Guerra


2. Apoio Moral

[...] O MNF passou a dedicar-se prioritariamente ao apoio moral e social dos militares e suas famílias, muitas vezes através de acções populares a que não faltavam o cunho da demagogia, mas que em muitos casos se revelaram eficazes na resolução de problemas dos jovens e dos seus agregados familiares face à burocracia e ao desconhecimento das situações decorrentes da guerra.

Ao MNF se deve o lançamento dos aerogramas, alcunhados de “bate-estradas”, que constituíram o meio mais difundido de correspondência entre os militares e as famílias.

Destes aerogramas foram, cujo o fornecimento e transporte era gratuito para os militares, estima-se, impressos cerca de 300 milhões.

Das actividades do MNF destacaram-se a organização de visitas de artistas aos teatros de operações, as ofertas de Natal, com o envio de lembranças, discos, bolas de futebol, isqueiros... . Deve-se ainda ao MNF a promoção da troca de correspondência entre os soldados e as madrinhas de guerra.

Foto e texto retirados do site do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, com a devida vénia.
CV


3. Madrinhas de Guerra
Por José Teixeira

Minha querida madrinha de guerra.
Muito estimo que esta minha simples carta a encontre de perfeita e feliz saúde na companhia de seus queridos paizinhos e demais família. Eu encontro-me bem Graças a Deus


Possivelmente foi deste modo que o João, oriundo de uma aldeia no Douro vinhateiro, iniciou a primeira carta dirigida a uma das suas madrinhas de guerra, conquistada através das revistas Plateia ou Crónica Feminina (1).

Das três cartas que recebera de candidatas a madrinhas, uma atraiu-o pela forma carinhosa e afectiva, como a candidata se expressava.

Palavras, algumas delas ininteligíveis, para a sua 4.ª classe (linguagem da época) arrancada aos 10 anos, num tempo em que misturava a escola com a guarda das cabras no monte ou andar à frente dos bois, na lavoura do campo do Zé da Caluba, para ter direito a uma malga de caldo com a tora de carne de porco.

Luxo que não tinha no barraco que partilhava com os pais e mais quatro irmãos.

Os pais analfabetos, raramente conseguiam que o seu irmão lhe enviasse uma carta e mesmo essa não dizia nada.

A madrinha, parecia ser gente fina, escrevia coisas lindas e até lhe mandou uns versos. Quem sabe se ainda arranjava um namorico, ou pelo menos uns petiscos via SPM!

A Sofia, viúva de 75 anos, beirã dos quatro costados, com 12 filhos e uma ranchada de netos e bisnetos, uma referência na Igreja local pela sua piedade, ao passar os olhos por uma revista feminina, esbarrou com a página dedicada aos pedidos de madrinhas de guerra, por parte de militares na Guerra Colonial.
Um entretimento como outro qualquer, pensou, ou uma forma de ajudar estes jovens valentes a suportar melhor a solidão e o sofrimento.

Como portuguesa e patriota, deste modo, faria alguma coisa e sobretudo correspondia ao apelo que o Senhor Abade tinha feito na prática da missa do domingo passado, ao falar nos heróicos rapazes que lá longe defendiam a pátria das garras do comunismo internacional.

Escolheu ao acaso um João que estava na Guiné e toca a escrever-lhe uma missiva consoladora, disponibilizando-se para o acompanhar à distância como sua madrinha de guerra.

A partir de então, todas as semanas fazia seguir uma carta para o afilhado. Quase todas as semanas recebia, um esquisito papel amarelo, escrevinhado em todos os cantos numa letra, difícil de ler.

A avioneta do correio, começou a vir com uns gramas a mais.
O João todo contente e ufano, mal ouvia o roncar anunciador, corria para a pista como tantos outros o faziam, para fazer uma espécie de guarda de honra ao saco do correio.

Depois, era o esperar pacientemente que o Escritas fizesse a separação e viesse à porta da caserna, anunciar os felizes contemplados.
Depois eram os sorrisos anunciadores de boas novas para uns. O seu isolamento à sombra de uma árvore para saborear as novidades ou o abandonar do local, cabisbaixos, muitas vezes a caminho da cantina para tentar esmagar a dôr do esquecimento, com uma cerveja gelada, caso houvesse.

O João lia e relia as cartas da madrinha. A gaja devia ser doutora, pensava ele e lá ia ter com o seu alferes para lhe explicar melhor o que ela lhe queria dizer nas cartas.

Rapidamente os colegas se aperceberam que o João tinha arranjado tacho e logo ele o matarruano que mal sabia ler.
Era gozado de fininho, primeiro porque se tornou um gabarolas, depois porque sempre que vinha o correio todo o seu comportamento mudava. Desde o correr para a pista, o ficar junto da Secretaria especado à espera que o escritas, o isolar-se depois e passar horas a ler e reler a carta. Enfim, era outro João.

Tornou-se mais comunicativo.
Agora lia todas as revistas e fotonovelas que apanhava. Pedia ao alferes que lhe emprestasse livros que devorava, mas ficava muito chateado sempre que os colegas pegavam com ele, insinuando que ela tinha namorado ou porque não tinha ele coragem para lhe pedir namoro!

Um dia encheu-se de coragem e pediu à madrinha autorização para a tratar por tu.

Esperou pacientemente a resposta, que nunca mais chegava.

Um tanto desiludido e arrependido pensava: mas porque é que ela continua a escrever-me e não me fala no assunto? Será que não gostou da minha ousadia e me vai deixar?

Certo dia, ao chegar de uma operação esgotado e cheio de fome, tinha a carta da madrinha à espera.
Com o coração cheio de esperança, abriu-a de imediato e não conteve um grito de alegria. A sua Sofia, tratava-o por tu.

Afinal foi tiro certeiro! Bem me dizia o meu alferes, pensou ele.
Nessa noite, na cantina, houve cerveja para os amigos. Até o alferes lá foi beber um wiskie com cola.

Carta para lá, aerograma para cá com algumas fotos mal tiradas em ambiente de guerra.

A Sofia começou a tomar conhecimento da real dimensão da guerra.
Começou por estranhar as contradições entre o pouco que o João conseguia contar na sua inocência e o que ela conseguia ler pelos jornais.

Os relatos simples e sinceros das cartas do João. As emboscadas contínuas, os ataques ao quartel, os feridos e mortos em catadupa, as minas, nome estranho para ela, que matavam ou estropiavam aqueles jovens, quando não eram detectadas e levantadas a tempo, os dias que passava na selva, ao sol e à chuva, começaram por alimentar mais ainda o seu patriotismo, apesar de o seu conceito de que os pretinhos eram uns coitadinhos que precisavam de ser salvos e baptizados, como disse uns anos antes o missionário que foi à sua aldeia fazer uma Santa Missão.

Nada disso vinha nos jornais, esses, de vez em quando lá traziam um comunicado com alguns mortos, mas nada que se comparasse com o que o João lhe dizia nas cartas e se ele o dizia, era verdade. Pensava ela.

Nas entrelinhas da sua escrita tinha descoberto um jovem simples, bem educado e honesto. O João não me engana, pensava ela. Parece que querem que a guerra passe ao lado.

A sua grande descoberta, que lentamente começou a persegui-la e a fez mudar de ideias, para gáudio do seu filho mais novo, todo esquerdelho, que em Coimbra passeava os livros e se livrara de dar com as costelas em África. Um tio activo dirigente da União Nacional o tinha safo das perseguições da Pide que se seguiram às escaramuças de 1969, quando o Senhor Presidente Américo Tomás foi vaiado pelos estudantes.

Orgulhoso da sua madrinha, o João era matraqueado pelos camaradas. Queriam que ele lhe mostrasse a fotografia.
Para o afinarem mostravam-lhe as fotos das namoradas as verdadeiras e das madrinhas de guerra, algumas das quais já transformadas em namoradas.
Até alguns, casados e com filhos, tinham madrinhas/namoradas , o que chocava o nosso herói, educado nos princípios da Santa Madre Igreja.
Ele quando namorasse, ia ser fiel à cachopa eternamente.

Uma noite depois de matutar bem, decidiu-se.
Logo de manhã foi ter com o seu alferes e com a sua ajuda, escreveu-lhe um aerograma, no qual pedia o favor de lhe enviar uma fotografia.

Como resposta, teve uns tempos depois uma pergunta:
- Mas queres mesmo uma foto minha? Sim, respondeu. Quero trazer-te sempre comigo, bem juntinho ao coração.

A resposta demorou, mas chegou mais uma vez.

- Pois aí vai. Lamento desiludir-te. Sou mãe e avó. Tu és como que o meu filho mais novo, que eu quero acarinhar e ajudar, até ao teu regresso. A partir de agora dependerá de ti o continuarmos a escrever um ao outro.

A velha gozou-me. Ah se eu pudesse, ia lá a sua casa e partia toda de porrada.

Cerca de mês e meio de mudo silêncio.
Deixou de correr para pista da aviação quando os camaradas no gozo lhe perguntavam se a madrinha estava boa, obtinham respostas tortas e azedas, factores insenctivadores à provocação, o que lhe roía as entranhas.

Um dia, quando já tinha perdido a esperança de reencontrar o seu João, o carteiro bate à porta da D. Sofia.
Trazia um aerograma. Uma lágrima selvagem teimou em correr-lhe pela face, enquanto a abria de supetão e tentava interpretar os gatafunhos a que já se desabituara.

Minha querida madrinha de guerra.
Muito estimo que esta minha simples carta a encontre de perfeita e feliz saúde na companhia de seus queridos paizinhos e demais família. Eu encontro-me bem Graças a Deus.
Querida madrinha, andou a gozar comigo este tempo todo, mas eu gosto muito de si. Não calcula quanto me tem ajudado a passar este maldito tempo, aqui na Guiné.

Li a estória da D. Sofia que já faleceu há uns anitos, numa revista religiosa, como testemunho real.

O João, esse não o conheci, mas conheci tantos Joões, Manéis ou Zés que, durante a sua Comissão, encontraram almas caridosas, disponíveis e acolhedoras, que os apoiaram, nos apoiaram nas arguras de uma guerra, para onde fomos atirados, sem respeito pela nossa vontade, pelos nossos sentimentos, pela nossa vida, para esmagar, matar, segundo diziam.

Com este texto baseado numa situação real, quero agradecer a tantas mulheres jovens e menos jovens, que aceitaram o desafio de serem Madrinhas de Guerra e sofreram à sua maneira, os efeitos de uma guerra que não queríamos fazer.

José Teixeira
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Nota do autor

(1) Revistas fofoqueiras da época, a quais se dispunham a fazer passar anúncios/pedidos de militares em missão na Guerra colonial, a raparigas para se tornarem suas madrinhas de guerra.
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Nota do editor CV

Sobre o tema Madrinhas de Guerra, Vd. post de 10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2519: As Nossas Madrinhas de Guerra (1): Os aerogramas ou bate-estradas do nosso contentamento (Carlos Vinhal / Luís Graça)

1 comentário:

Anónimo disse...

Durante a 1ª Grande Guerra 14-18 houve uma guerra muito semelhante a esta nossa, no Norte de Moçambique e no Sul de Angola, (não pretendo ser professor de história)e como neste blog é interessante falar daquilo que vivemos, essa guerra marcou-me imenso, passados 46 anos-1964, pois fui encontrar numa lápide , num lugar onde se deu uma batalha entre a tribo Cuanhama e o exercito portugues, que dos livros , foi a batalha de NAULILA, como digo, fui encontrar alguns nomes de militares mortos, ou por doença ou em combate, onde constava um alferes da minha aldeia, que teria mais ou menos a idade de meus pais, do qual eu conhecia a história. Claro que para a gente daquele tempo era um nome muito respeitado.O Alferes tinha o nome de uma familia de militares, de Brito e Abreu.
Ao debruçar-me sobre alguma literatura, constatei que os Cuanhamas foram mobilzados por alguns sobas, devidamente treinados, e armados no vizinho Sudoeste Alemão (Namibia), pelos alemães, que na altura ainda não era o Hitler, e houve imensas baixas e se os alemães não tivessem perdido a guerra adeus Angola e Moçambique.
Seria bom? Mau? Sei apenas que o meu conceito de Português em África, ficou muito definido por esta passagem pelo Sul de Angola.
Nunca vi a nossa guerra, e pelos vistos o José Teixeira tambem não, resumida aos vinte e quatro meses da praxe. Antº Rosinha