terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

Guiné >Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça (Alentejano, vive hoje no Fundão).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > c. 1969 > O cais do Xime, no Rio Geba, por onde passavam milhares de homens e toneladas de material para os aquartelamentos do chão fula, Bafatá e Gabu.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Rio Geba nas proximidades do Xime


Guiné > Bissau > Cais > c. 1969 > Cais onde acostavam os navios da Marinha: neste caso, vê-se em primeiro plano a LDG 105 que ia frequentemente ao Xime, transportando homens e materiais para a zona leste.

Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Rio Geba > A caminho de Bissau > 1968 ou 1969 > O Fur Mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339, Mansambo, 1968/69, num dos típicos barcos civis de transporte de pessoal e de mercadoria. Estes barcos (alguns ligados a empresas comerciais, como a Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF) tinha, como principal cliente a Manutenção Militar.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Estórias de Mansambo > O Último Encontro com o Alferes Carvalho, a bordo da BOR, Rio Geba abaixo (1)

Zape, zape, zape, num barulho sincronizado das pás e do motor do barco, Geba abaixo, até Bissau. Encostado à carga, cigarro na boca, mão no bolso afagando nervosamente a pistola, a tristeza do momento a apertar o peito. Branco e negro, vida e morte, a louca dicotomia do matar ou morrer numa guerra que não era a dele, nem fora do outro, seu camarada, agora ali deitado, em urna de chumbo coberta a madeira de bissilom ou pinho.

Tudo começou num Janeiro frio. Tentou recordar: o pensamento viajou até Vendas Novas, no Alentejo distante. No início desse mês, os Cadetes apresentaram-se em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, para tirarem a Especialidade de Atirador.

O primeiro dia de instrução trouxe uma série de surpresas: testes físicos, ausência de refeições – excepto uma carcaça e um tubo de leite condensado – , formação dos Cadetes, em equipas de cinco militares à sua escolha. A dele era formada pelo Carvalho, Sales, ele (Torcato), Zé Almodôvar e Fernandes.

O porquê, de um comportamento assim, devia-se ao Comandante da Instrução ser Capitão Comando. Assim sendo, tiveram uma instrução dura, com demasiados saltos e cambalhotas, ausência de horários e várias formas de os tentar endurecer ou melhor preparar para a guerra no Ultramar.

Terminada a instrução, os agora aspirantes espalharam-se pelos vários Quartéis. Passou o tempo e como era normal foram mobilizados. Encontraram-se novamente uns em Lamego, outros em Tancos. Nova instrução recebida pela maioria. No fim desta, voltaram aos quartéis da mobilização, formaram e prepararam Companhias para combater numa qualquer parcela do Império.

O Carvalho, o Almodôvar e ele juntaram-se em Évora. O primeiro na CART 2338, os outros dois na CART 2339. Como eram rapazes com sorte apontaram-lhes o caminho da Guiné. Foi ele e o Carvalho. O Almodôvar estoirou um pé e foi meses depois(2).

Fizeram operações juntos – Galo Corubal, Enxalé (Sinchã Camisa, Madina, Belel), zona de Nova Lamego (Canjadude) e outras. A amizade, fruto da convivência vinda desde Vendas Novas, era forte. Separaram-se. Ele ficou em na CART 2339. O Carvalho foi para Nova Lamego, com a CART 2338.

Um dia, as más notícias correm céleres, soube-se: vítima de mina antipessoal faleceu o Alferes Carvalho. Na malfadada estrada para Madina do Boé ficava o amigo. Menos de três meses após a chegada àquela terra. Soube agora no Blogue a data esquecida, 17 de Abril [ de 1968] e o local onde hoje repousa (2).

Mais um nome, a juntar a tantos vitimados naquela estrada. Toda a Companhia sentiu aquela morte. A primeira sofrida pelas duas Companhias gémeas.

Voltaram-se a encontrar-se, como e porquê? Por acaso ou porque se deviam despedir ainda. Tinha que ir a Bissau, ao Hospital Militar. A curiosidade e não só levou-o a fazer a viagem na BOR – um barco com pás na proa, verde-claro, e que se habituara a ver passar nas seguranças a Mato Cão.

Naquele dia, como era normal, transportava africanos, fazendo o barulho habitual com os seus risos e alegres conversas, vacas, galinhas e carga diversa. Tudo desorganizado, ao monte, pois só assim devia funcionar. Ele ia de camuflado, galões no bolso, olhar atento. Escolheu o local para a longa viagem, junto a uma parte de carga mais baixa, mas de modo a observar bem e a ter protecção nas costas. Pôs o saco no chão e antes de se sentar, levantou o oleado que cobria a carga. A visão fê-lo dar um passo atrás – caixões. Viu as placas e leu numa delas: Rogério Nunes de Carvalho, Alferes

O choque, o aperto no peito, a tristeza e raiva a subirem, o conflito interior, o desejo de nada ver. Acendeu um cigarro, ajeitou o saco com o pé, sentiu as granadas no bolso e nervosamente acariciou a pistola. A algazarra a diluir-se, o barulho do motor, o zape zape das pás, iam os dois, naquele barco, Geba abaixo. O pensamento, vagueou por tanto tempo que só se lembra da zona onde o Corubal entra no Geba. Mesmo aí porque um africano lhe disse algo e o tocou. Talvez pelo seu olhar, pela sua reacção, o homem recuou. Apercebeu-se disso e tentou sorrir-lhe. Mais um esgar que um sorriso. Foi o suficiente para sentir que o olhavam intrigados, talvez pensando: mais um soldado lixado com esta vida.

Despertou e olhou com mais atenção aquela gente. Quantos informadores iam ali, quantos agentes do inimigo ou mesmo combatentes? A viagem foi lenta, aborrecida. De quando em vez um gole no cantil, uma trinca num chocolate e outro cigarro acesso. Zape, zape, zape…

Finalmente o barulho aumenta, as gentes mexem-se e puxam as bagagens. Bissau está à vista. Levanta-se, arruma o cantil e outro material no saco, tira os galões do bolso e coloca-os no lugar. Destapa a urna, põe a mão sobre ela – adeus camarada. Tapa-o, ergue-se e faz-lhe continência. Sente o olhar daquela gente para o soldado, ora alferes. Olha-os. Talvez tenha tentado sorrir. Certamente a emoção não o deixou. Saltou para o cais e rumou a Santa Luzia.
- Adeus camarada. Hoje sei onde estás. Um dia vou ver-te a Pêga, Guarda e voltarei a encontrar-te. Desta vez sem zape, zape e menos ainda saudações militares.

Falamos em encontros. Conto-te mais um, mas diferente…
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriors desta série:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

(2) Vd. poste de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

(3) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

(...) Companhia de Artilharia 2338

Rogério Nunes de Carvalho, Alferes Miliciano de Artilharia, natural de Pêga / Guarda, inumado no cemitério de Pêga, tombou vítima do rebentamento de uma mina antipessoal na estrada do Cheche a Canjadude, em 17 de Abril de 1968; (...)

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