domingo, 10 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2518: Estórias do Zé Teixeira (26): Estranho convite (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

José Teixeira (ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro CCAÇ 2381 Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70) conta-nos como recebeu um convite inesperado do seu amigo Raúl Fodé, apresentado no último post da série Estórias do Zé Teixeira (*).


Estranho convite

Por José Teixeira

Numa daquelas noites que mais parecem dia, graças à fonte luminosa da lua que em algumas épocas do ano inunda as terras da Guiné, sentados na raiz de um frondoso poilon, eu e o meu amigo Raúl Fodé, já perto do fim da minha Comissão, reflectíamos sobre o que seria a Guiné nos anos próximos.

Para ele, o mais importante era que o homem grande de Bissau – Spínola – conseguisse conter o PAICG e acabar com a guerra que lhe matava os irmãos.

Bandido (1) qui vai na mato tinha muita gente boa, gente que ele mesmo conhecia, gente que como ele rezava a Alá todos os dias às mesmas horas, voltados para o mesmo lado, a cidade Santa de Meca. Também havia muitos cristãos dizia ele, que tinham fugido para o mato.

Perguntei-lhe então porque é que essa gente não entregava as armas e regressava. Deixava a luta e procurava a paz?

- Ká pudi mesmo - disse ele com veemência. Olhou para mim muito sério, respirou fundo e ficou-se num mudo silêncio por largos minutos, até que explodiu:

- Esta terra era muito rica, grandes bolanhas, manga de roz, milho, peixe e caça. A população era feliz: Manjacos, Beafadas, Fulas, Mandingas e até Balantas, sem problema. Tínhamos a nossa Lei. Os Régulos eram respeitados.
Apareceram os brancos da Casa Gouveia e outros. Empada tornou-se grande no comércio. Todos os dias seguiam para Bissau, barcos carregados. A população ganhou alguma coisa?
Repara - apontando - casa de branco, outra casa de branco, outra e outra. A Avenida principal de Empada estava plena de palacetes estilo colonial, que os brancos abandonaram e agora estão ocupadas por personalidades gentílicas, na sua maioria, graças à psico que impera por razões de estratégia militar.

Note-se que ainda hoje lá se encontram num estado de degradação total, bem como a própria avenida. Que linda que ela era!

- A população - continuou ele - que tanto trabalhou, que tem ela? A velha morança para habitar, a guerra que nos dividiu e nos mata em cada dia que passa.

Recordo que em 1969, viviam em Empada dois brancos: o merceeiro, que explorava um pequeno entreposto comercial, onde com terrível suspeição, se viam entrar diariamente, muitas caras desconhecidas, vindas não sei de onde.
Depositavam os seus sacos de produtos agrícolas ou de coconote e compravam panos, cana sabão e outras utilidades.
Tal como apareciam, rápidos e em silêncio assim desapareciam, cumprimentando na linguagem local os seus conterrâneos, embrenhando-se na mata.

O outro branco era um velhinho, muito alegre e comunicativo. Muito acarinhado pela população. Estava na Guiné desde jovem na região Tombali há muitos anos. Dedicava-se a estudar e orientar as linhas de água para um eficiente irrigação das terras cultiváveis e deste modo proporcionar melhores e mais rentáveis produções agrícolas.

A politica e a guerra não lhe diziam nada. No mínimo, não expressava sentimentos ou opiniões. A população, essa dizia-lhe muito. Deste modo era querido e respeitado por todos e tolerado pelos militares. Nunca o vi no quartel e a sua casa também não era poiso de fardas. Creio mesmo que se furtava ao contacto com os militares.

Tive o privilégio de conversar algumas vezes com o simpático velhinho, cujo nome se escondeu no sótão mais afastado da minha memória, chamemos-lhe Fernando.

Retenho a imagem de alguém que amava aquela terra e aquelas gentes, como nenhum outro branco que eu tenha conhecido na Guiné.

Mas voltemos ao Raúl Fodé. Desviou a conversa para as necessidades da população, nomeadamente a saúde e, de repente, lança-me um desafio que me deixou profundamente perturbado.

Dizia ele: - Agora temos médico (de vez em quando), temos enfermaria, mas quando a tropa branca for embora, a população fica sem nada. Há muitas tabancas aqui à volta(2). A população precisa de enfermeiro.
Teixeira, nós queremos que tu fiques em Empada, para tratar da população. Tens mulher e tens vianda, fica. Vai a Bissau entrega a arma (a G3 que eu não usava) e volta para Empada.

Hoje ao recordar este episódio, sinto quanto fiquei baralhado da cuca. Sei que a minha resposta começou pelo o silêncio de uma mija, voltado para o tronco da árvore, seguindo-se uma sonora gargalhada.

- Tás maluco! Eu ficar aqui! Quando o bandido vier, sou o primeiro a embarcar.
-Repara no Fernando - retorquiu o Fodé - toda agente lhe quer bem. Vai às bolhanhas fazer o seu trabalho. Bandido o trata direito e respeita. Fernando é gente boa, não precisou de fugir como todos os outros brancos.

- Mas eu... quero ir-me embora. Não posso, não quero ficar.

- Mas nós gostava...

Dois meses depois abandonei Empada, para só voltar em romagem de saudade em 2005. Infelizmente o Raul Fodé, já tinha partido para junto de Alá.

Ficamos a correspondermo-nos durante alguns anos. Numa das suas últimas cartas recebo um estranho apelo: - Teixeira, a guerra está perigosa, a população foge para o mato ou para Bissau. Eu quero ir para Lisboa, peço-te para me levares para junto de ti.

Argumentei que não era possível. Ele tinha mulheres (3) muitos filhos, seria impossível. Argumentou que vinha sozinho, as mulheres e os filhos ficavam em Empada, viriam mais tarde.

Foi um dilema que me ficou na consciência. Pouco depois perdi o contacto. Soube posteriormente que faleceu na sua Empada, onde era estimado e querido.

A substitui-lo na Mesquita ficou outro meu amigo, também ajudante de enfermeiro o Braima, a quem tive o prazer de abraçar em 2005.

Foto 1> Guiné-Bissau> Empada 2005> José Teixeira encontra um antigo milícia, que quis ficar na fotografia, acompanhado de sua filha.

Foto 2> Guiné-Bissau> Empada 2005> José Teixeira com o seu antigo companheiro Braima. Após a morte de Raúl Fodé, Braima substituiu-o na Mesquita de Empada.

Fotos: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.
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Notas do autor:

(1) Bandido, pessoa que se afasta da tabanca fiel ao governo, inimigo, turra (para a tropa)

(2) Tabancas controladas pelo PAIGC, mas na enfermaria não fazíamos o controlo, como também não havia qualquer controlo sobre a população que ia a Empada vender ou comprar produtos na loja local.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2507: Estórias do Zé Teixeira (25): Raúl Fodé (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

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