segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3431: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (3): Um homem da palavra e da acção (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Boa parte das imagens inseridas no 1º livro do Beja Santos (Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncós) e no 2º livro (Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio) são da autoria do nosso querido amigo e camarada Humberto.

O 2º livro é lançado amanhã, dia 11, no Museu da Farmácia, em Lisboa, ao Bairro Alto, por volta das 18h30. Uma festa para qual está todo o mundo convidado.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadinca, tirada no sentido sul-norte. Em primeiro plano, a saída (nordeste) do aquartelamento, a ligação (B) à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá (C), paralela à antiga estrada (A) que cortava a tabanca ao meio. Ao fundo, o Rio Geba Estreito (E). Junto ao rio, as instalações do Pelotão de Intendência (D).

Fotos: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados


Pré-texto, por Luís Graça.

(In: Mário Beja Santos: Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio. Lisboa: Temas e Debates, e Círculo de Leitores. pp. 9-12. (*)


Meu caro Mário, amigo e camarada da Guiné,

Pedes-me um pre-fácio para o teu segundo tomo do Diário da Guiné. Gentileza tua. Não creio que precises de alguém, como eu, para essa acção de falar no princípio de. E muito menos em teu nome ou dos teus irãs. Porque no princípio não era o verbo, mas a acção. E tu foste um homem de acção, um actor, um Tigre de Missirá, um Tigre Vadio, simultaneamente presa e predador. Mas também um homem da (e de) palavra. Um homem do texto e do pretexto.

Fui o teu primeiro editor e leitor no meu/nosso blogue. Religiosamente, semanalmente, recebi os teus episódios dessa avassaladora Operação Macaréu à Vista que, por economia de análise editorial, quiseste dividir em duas partes. Falo agora da Parte II que, cronologicamente, aparece no nosso bogue em Setembro de 2007 e deu origem a 50 episódios semanais… (**).

Acontece que não tenho a distância afectiva (e efectiva) para te escrever, de encomenda, o dito pre-fácio. Fui demasiado observador participante. E seguramente cúmplice das tuas (des)venturas, além de fautor das minhas. De Agosto de 1969 a Maio de 1970, nós estivemos lá. Juntos. Muitas vezes próximos e distantes. Solidários e solitários. Nesse pedaço do TO (teatro de operações) que nos coube em sorte ou azar. Sector L1, leia-se sector 1 da zona leste, com epicentro em Bambadinca. Ainda hoje tenho a sensação que passámos, no total, quase dois anos das nossas vidas, dos nossos verdes anos, circulando à volta de Bambadinca, o Corubal e o Geba Estreito, entre Missirá e o Xitole. Nós e os nossos queridos nharros. Tu e o teu Pel Caç Nat 52. Eu e a minha CCAÇ 12.

Decididamente não te escrevo o inútil pre-fácio. Mas, em contrapartida, ofereço-te um pré-texto, sob a forma de um poema que evoca os barqueiros-guerreiros, que fomos e cujos fantasmas ainda hoje cambam o Geba ou poisam nos altos nos poilões da nossa Tabanca Grande.

É a minha forma de homenageá-los e de exorcizá-los. Quanto ao teu livro, não tenho dúvidas que vai ter o sucesso do primeiro e tornar-se uma referência incontornável para quem, no futuro, se interessar pela literatura memorialística da guerra colonial. Fizemos a guerra e contámo-la em primeira mão.

Um Alfa Bravo (abraço) do Luís e dos demais camaradas da Guiné
(http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/)



O Rio Geba, entre o Xime (margem esquerda) e o Enxalé (margem direita), numa foto de Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70).

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados

No Geba Estreito ou os doze contos do barqueiro de Caronte
(poema de Luís Graça)


1. Um homem passa o rio,
a nado.
Um homem atravessa a ponte
sobre o rio.
Um homem cai ao rio,
baleado.
Há uma piroga
no tarrafo.
Metralhada.
E flamingos brancos,
tingidos de vermelho.

2. Um homem pensa na jigajoga
da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia,
e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise,
de confiança.
Um homem do norte
camba o rio.
A sul.
A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder
é a esperança.

3. Um homem desenha uma ponte,
imaginária,
entre dois pontos
de cambança.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente,
a bolanha de Finete,
um very-light, um foguete.

4. E Lisboa ali tão longe...
tão azul,
tão gregária.
Lisboa, o cais
de Alcântara,
uma multidão de pontos negros.
Outra ponte,
outro rio.
Saudades a mais.
Um nó na garganta.

5. Um homem do norte
faz o corte
epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem sou eu, viajante ?
Quem és tu, barqueiro ?

6. O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu
de bronze.
O homem é o jagudi
em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O ferreiro,
de outrora, hoje o dari.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.
O Katiusha.

7. Um homem é apanhado pelo macaréu
da história.
Como um cão.
Sem glória.
E na bolanha de Finete
descobre que não há ponte
nem salvação,
que há terra e céu,
mas não há elo de ligação.

8. Um homem perde a memória,
ao afundar-se no tarrafo do Geba.
Um homem chama o barqueiro
da outra margem.
Em vão.
O barqueiro faz contas
à vida
que custa manga de patacão.
E ao progresso que não chega,
ao motor de explosão,
ao motor da Yamaha,
à explosão dos cinco sentidos,
aos Strella,
aos Katiusha,
à liberdade de circulação.

9. Um homem passa a ponte,
a passo,
a peso pluma.
A ponte armadilhada.
O barqueiro conta um conto
em cada viagem.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um bilhete de ida
Sem regresso.

10. Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão,
medalhado,
que nunca irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado,
na capital.

11. Vou no Bissau,
num barco à vela,
no barco da Gouveia.
Aproveito a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.

12. O milícia, número tal,
vai morrer,
exangue,
como a última estrela
da manhã.
E eu espreito o rio,
da minha torre de Babel.
Um terceiro homem pára.
No semáforo.
Vermelho.
De sangue.
A caminho de Madina/Belel.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

8 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3422: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (2): O exemplar nº 1, autografado, dedicado à malta do blogue

5 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3409: O Tigre Vadio, o novo livro do Beja Santos (1): Entrevista à Gazeta das Caldas

(**) Vd. poste de 31 de Outubro de 2008 >Guiné 63/74 - P3386: Operação Macaréu à vista - II Parte (Beja Santos) (50): Fim: Acalma-te, Mário, a guerra acabou

2 comentários:

Anónimo disse...

Luis,

Já o li vezes sem conta.
Parabens,JF

Anónimo disse...

Amigo Luís
Explêndido. Que posso mais dizer
perante tanta beleza e sensibilidade poética...literária...
Muitos parabéns
Abraços
Jorge Picado