quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3442: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (7): A leitura de António Valdemar



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Lisboa > Museu da Farmácia > 11 de Novembro de 2008 > Lançamento do livro Diário da Guiné, 1969-1970: O Tigre Vadio (*) > Excerto da apresentação do livro e do autor por António Valdemar, jornalista, olissipógrafo, escritor. Começou por dizer que era amigo do autor, e que se recusava a falar das questões militares que o livro do Beja Santos necessariamente levanta. Fez questão de sublinhar que, por razões políticas e ideológicas, era contra a guerra colonial. Interessa-he sobretudo a dimensão humana da experiência narrada pelo autor e a qualidade da sua expressão literária.

Conhecido redactor e crítico literário do Diário de Notícias, António Valdemar, açoriano de origem, natural de São Miguel, começou a sua carreira, em 1957, no jornal República. Esteve depois ligado ao grupo fundador de A Capital. Desempenhou o cargo de chefe de redacção de A Vida Mundial e exerceu de 1968 a 1980 a chefia de redacção, em Lisboa, de O Primeiro de Janeiro. Dirigiu, durante seis anos, a galeria Diário de Notícias, no Chiado, onde organizou dezenas de exposições de escultores, pintores e ceramistas.

Tem, além disso, experiência de actividade docente: por exemplo, leccionou jornalismo no Instituto Politécnico de Santarém; e orientou em vários locais do País cursos de Comunicação Social e de Cultura Portuguesa (Séc. XIX e XX).

É autor de, entre outras, as seguintes publicações: "Ser ou Não Ser Pelo Partido Único», «Garrett, vida e Obra», «Chiado: o Peso da Memória» e «Nemésio, sem limite de idade».

Pertence desde 1993 à Classe de Letras da Academia das Ciências, de que é sócio efectivo, sendo o único jornalista que, nos últimos 20 anos, integra esta instituição. Recebeu este ano a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores, de que também é colaborador.

Foi condecorado, em 1991, no Dia de Portugal, em Tomar, pelo Presidente da República, Mário Soares com a Ordem de São Tiago; e, em Maio de 2000, pelo Presidente da República Jorge Sampaio, com o Grande Oficialato da Ordem de Mérito.


Vídeo: © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo (4' 06') alojado em: You Tube >Nhabijoes


A qualidade de primeira água da escrita de Mário Beja Santos, realçada por António Valdemar, pode ser ilustrada e avaliada por inúmeras descrições de acontecimentos, vigorosas, de grande fôlego e tensão dramática, com recurso a parágrafos longos, como esta com que começa o segundo volume (de resto, já aqui reproduzida no poste de 13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante):

(...) AGOSTO DE 1969

Mamadu Camará, a onça vigilante

Fogo de Santelmo, fogo de Madina

A partir do meio da tarde, o céu fez-se chumbo, o ar esfriou, ficámos à espera que chovesse, contrariados no meio das obras à volta do arame farpado. Quando parecia que o chumbo passaria a negro, o negro da nuvem espessa que se encaixara como uma abóbada sobre Missirá deixou imprevistamente que os raios e coriscos se acendessem e, como uma faca que rasga a seda, estoiraram estrepitosamente em Missirá, em todo o Cuor. O anoitecer fez-se dia com aquela iluminação de teatro, espectral. A chuva abundante caiu dos céus, ficou a empapar-se às nossas botas, o sibilar da trovoada gigante levou-nos a fugir para casa. É nesse entretanto da fuga precipitada para as moranças que começa uma flagelação com morteiros e costureirinhas. Do pânico da chuva passou-se rapidamente para a resposta, corríamos nus, em roupa interior, encharcados, enlameados. Quem limpava as armas pô-las em funcionamento, quem fazia a contabilidade mudou de armas, quem cozinhava foi logo responder com metralhadoras, e todo este fogo de resposta amorteceu o som das obusadas que espalhavam o metal destruidor, salpicando a terra. Os colhidos de surpresa, as mulheres e as crianças que cultivavam e brincavam, atiraram-se para as valas. No morteiro 81, encadeado por aquele maldito fim de tarde desorientador, pois falsa era a noite e o falso era o dia, com precioso auxílio do Queirós, eu punha e tirava cargas das granadas, procurando atinar com as distâncias. Era uma estranha flagelação, era um fogo espúrio, como se estivessem a testar-nos para o tiro a tiro. O Queirós gemia, segurando o tubo sem a braçadeira, o braço em chaga. As explosões chegavam espaçadas, como a lembrar que há muitas maneiras de fazer flagelação. É então, entre esse dia e essa noite de Santelmo e do fogo de Madina que sou disparado a coice, saio do abrigo de morteiro com forte encontrão, alguém me projecta ao solo. Uma explosão ao pé soergue-me e ao intruso que me arrancara do morteiro 81. Eu desfiro palavrões mas o intruso grita de dor. Desprendo-me do fardo, o Queirós a tudo assiste aparvalhado, ponho-me de pé e vejo Mamadu Camará jazente e depois de tronco arqueado, com o rosto riscado pelo sofrimento. É o Queirós, que sai do atordoamento, que explica o transcendente daqueles instantes: "Meu alferes, o Camará viu o rebentamento, quis salvar-lhe a vida". (...)

In: Mário Beja Santos: Diário da Guiné: 1969-1970: O Tigre Vadio. Lisboa: Círculo de Leitores; Temas & Debates. 2008. pp. 21-22.

Eventualmente menos feliz, na opinião de alguns leitores do blogue (e do livro), foi a decisão de manter as mais de 100 "leituras de guerra" e as cerca de 20 referências discográficas, que engrossam o volume (de 440 pp.) e "cortam o fio à meada"...

Mesmo sabendo que o autor era, em Missirá, em Bambadinca, em Nhabijões ou no Udunduma, um trabalhador incansável, um homem solitário, um líder nato, um leitor compulsivo e um grande melómano (conheci-o em Missirá, antes da sua morança arder, ao som da sinfonia nº 9, de Dvorák, Do Novo Mundo...), tem-se a ideia de que o nível do seu consumo cultural (nomeadamente, quantidade e qualidade de leituras) era de todo humanamente incompatível com a vida intensa de um operacional na Guiné, para mais comandante, durante muitos meses, de 3 pelotões de soldados e milícias africanos e responsável por duas tabancas (Missirá e Finete) com população civil (velhos, mulheres e crianças), a par da sua gigantesca produção epistolográfica (estimada, por exemplo, em meio milhar de cartas e aerogramas, escritos só para a sua noiva e depois mulher, e de que eu sou o fiel depositário).

Mesmo que estas referências bibliográficas e discográficas, mais a transcrição das cartas e dos aerogramas à noiva, familiares e amigos, ocupem talvez cerca de 2/5 do Diário da Guiné - quanto a mim uma proporção eventualmente excessivo - , a verdade é que esta obra (em dois volumes) é um documennto excepcional e imprescindível para a compreensão socioantropológica da minha geração, da nossa geração, de homens (e de algumas mulheres), portugueses, que fizeram a guerra colonial na Guiné (e que depois liquidaram o império e restabeleceram a democracia).

O mais importante, quanto a mim, foi o homem e a sua circunstância, foi a coragem do Beja Santos (um oficial miliciano atípico, culto, de formação católica e educação universitária, seguramente um outlier em relação ao perfil-tipo dos oficiais e sargentos milicianos que eu conheci na Guiné) em assumir a sua a condição humana, a sua historicidade, a sua portugalidade, a sua coragem física e moral, a sua apetência pela liderança, a sua participação naquela guerra, e inclusive a sua recusa, pública, do estatuto de herói (Houve muitos outros, com muito menos méritos humanos e militares, que foram medalhados, incensados, mitificados no TO da Guiné).

Ele fez a guerra e contou-a em primeira mão. O seu comportamento operacional não o julgo, o seu talento literário, esse, tenho que o reconhecer e reconhecê-lo, com muito apreço e uma pontinha de orgulho, por tê-lo entre nós.

Como fundador, editor e administrador deste blogue, como amigo e camarada da Guiné, como antigo residente de Bambadinca, Nhabijões e Udunduma, congratulo-me também por este dia e pelo seu significado. Esta também é (ou foi a nossa festa). E na altura dos agradecimentos, o Mário não se esqueceu dos amigos e camaradas da Guiné, não se esqueceu do nosso blogue, da nossa Tabanca Grande, afinal os seus primeiros leitores e críticos, que o ajudaram , apoiaram e estimularam nesta gigantesca Operação Macaréu à Vista I e II.

Por razões de agenda, eu não tinha tido o privilégio de assistir, em 6 de Março passado, ao lançamento do 1º volume do Diário da Guiné. (LG).

_______

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3441: O Tigre Vadio, o novo livro do nosso camarada Beja Santos (6): Notícia do lançamento (Lusa) + Fotos (Luís Graça)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Mário:

O português é tramado... Escrevi "conheci-o em Missirá, antes da sua morança arder, ao som da sinfonia nº 9, de Dvorák, Do Novo Mundo"...

Repara como uma vírgula pode fazer toda a diferença:

"conheci-o em Missirá, antes da sua morança arder ao som da sinfonia nº 9, de Dvorák, Do Novo Mundo"...

Tudo isto para esclarecer, não tanto o Mário como os leitores deste poste sobre a festa do Mário:

- Conheci-te... onde ?
- Em Missirá.
- Quando ?
- Antes da tua morança arder...
- E em que circunstâncias é que te conheci ?
- Ao som da sinfonia nº 9, de Dvorák, chamada Do Novo Mundo...

Um abraço. Luís