quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7256: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (5): A masmorra do BII 19 e a boémia do Funchal











Região Autónoma da Madeira > 2008 > Clichés turísticos da Madeira... Fotos de Luís Graça (Alfragide) e Augusto Pinto Soares (Porto)

 
1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.


Oficial e cavalheiro (5):  Batalhão de Infantaria Independente nº 19 (continuação)

Era ali que ia iniciar-se, verdadeiramente, a primeira fase preparatória da missão que nos esperaria em África. Pelo menos à maioria anónima dos aspirantes. Sim, porque havia por ali nomes sonantes de filhos-família, como Spínola, Vale Guimarães, Sommer de Andrade e outros mais. Apenas estavam a marcar a presença. Eram o contributo das ocultas famílias poderosas…A sua missão no ultramar não passaria das águas azuis da Madeira ou Açores…

O capitão Câmara de Freitas, estou a vê-lo, um austero militar de carreira, com um bigode retorcido de republicano, bem estendido, entre a boca tapada e um nariz aguçado, em rosto moreno, de olhar fundo, mas doce, já maduro, a recompor-se, na sua terra, da primeira missão de guerra no ultramar. Era o comandante da minha companhia de recrutas madeirenses.

Havia outra companhia, chefiada por um capitão madeirense, este, miliciano. O capitão Pestana. Aqueles vinham preparar-se, ali, para o esforço de guerra que estava a ser pedido ao país. Depois da recruta, receberiam a especialidade e iam juntar-se aos que se encontravam nas frentes da guerra.

O meu pelotão era, mais uma vez, o segundo da companhia. Na primeira semana, ficaram assentes todas as regras de conduta. A maior responsbilidade e uma total confiança na nossa capacidade de chefia. Esta forma de nos considerar vinha ao encontro da maioria de todos nós e isso fazia-nos assumir as nossas responsabilidades de forma inteira.

O plano de instrução da companhia era discutido e acompanhado com o comandante, semana a semana. O dia começava com uma hora de instrução física. Havia que puxar por aqueles corpos em estado bruto, cheios de força descontrolada, oriunda da enxada, nas vertentes alcantiladas, sabiamente aproveitadas para a recolha do sustento da família.

Ordem unida, intensa, com as velhas espingardas Mauser sobradas da última grande guerra de 14/18. Ética militar e cívica e noções de primeiros socorros. Estas eram as que mais se assemelhavam à minha maneira de ser, de tal modo que o matreiro e raiano Gonçalves, avesso às teorias, me pedia para juntar o seu pelotão ao meu.

Durante uma hora extravasava, sem esforço, a minha tendência natural e desenvolvida no seminário, para as prédicas de sabor moralista. Não era por acaso que, de cima da amurada da sala de oficiais, os mais antigos, se entretinham a assistir, como quem não quer a coisa… e eu, também, disfarçadamente, não resistia a picar-lhes as consciências distraídas…

Um mundo novo e surpreendente se abriu, mais cedo do que pensava, para quem pensava que, com o serviço militar obrigatório, iria interromper a sua carreira. Cumpria-se o ditado popular de que Deus escreve direito por linhas tortas

As marchas pelas ruas da cidade, nas deslocações do pelotão para a carreira militar, lá no alto de São Martinho, ou para a indispensável instrução nocturna, na verdejante serra do Monte, eram a gostosa evasão e o complemento necessário para o esforço físico despendido.

Mente sã em corpo são, era agora a realidade da minha vida. No seminário, apenas se cuidava (pensava-se...) da sanidade da mente… muito pouco da do corpo. Os resultados não demoravam a aparecer no desenvolvimento harmonioso e visível dos recrutas sequiosos e dedicados.

Oficial e cavalheiro (6): A boémia do Funchal

Não se sabia que tempo iríamos ficar no Funchal. Com o passar dos dias, às vezes,( tão bem me sentia) dava comigo a sonhar que, com um golpe de sorte, como o que tivéramos em estar ali, até poderíamos nem ir ao ultramar. Para a arraia miúda, eram meros devaneios que, depressa se esfumavam…

A realidade, porém, era que, gratuitamente, ali tínhamos ido parar e estávamos na Madeira. Sabíamos bem que aquele recanto, escondido pelas ondas do mar, apenas, estava ao alcance dos mais endinheirados. Bastava olhar em redor.

A amenidade do clima estava à vista. Saídos de Tomar, coberta pelo gelo de Janeiro, mal chegámos ao Funchal, podíamos deliciar-nos com saborosos banhos de mar, na piscina, no Lido, ali ao pé, ou então nas águas do Porto Moniz, como se estivéssemos a sorver o iodo de São Pedro de Muel ou as cálidas águas do Algarve, em Agosto.

As roupas de inverno voltaram, de novo, para a mala. Só a camisa e uns calções, se quiséssemos. A farda, porém, dava jeito… para vaguear pelas ruelas asseadas do Funchal. Os três aspirantes da companhia do capitão Câmara tornaram-se uma parelha inseparável. O Vale Guimarães e afins, esses, tinham um bruto WolksWagen às ordens e voavam noutras núvens…

Às 5 e meia da tarde, acabava o dia de instrução e clausura na masmorra do BII 19. Um duche rápido na casa da Mariquinhas da Ribeira e,  em dois passos, estávamos, estrategicamente, na esplanada do Apolo, a beber um sumo de maracujá, à espera do remansoso desfile, sempre variado.

Com os tempos, a farda permitia-nos entrar nos gordos paquetes que encostavam bem recheados ao porto. É preciso um grande esforço para reviver tudo aquilo, sem pensar que tudo não passa de um sonho de maravilha…

Mas assim aconteceu. Cada recanto, por mais recôndito, escondia uma surpresa florida. Os ronceiros mas frequentes horários (assim se chamava aos autocarros da cidade) com a bonita modalidade de preços, nunca pensada no continente, a descida custava metade da subida (da metade quando se descia), tornou-nos acessível palmilhar todos os arredores.

Do coração do Funchal à Senhora do Monte, ao Pico dos Barcelos, lá em cima, quase sempre envoltos em núvens leves ou à praia buliçosa da Câmara de Lobos…

Para ir ao campo distante, não demorou muito e tínhamos feito amizade com rapaziada autóctone. Uma carrinha Morris-mini, então na berra, do Fernando do Campanário, foi a nave dos nossos passeios: As alturas do Cabo Girão, os alvores do Paúl da Serra, os furados (túneis) escuros de São Vicente para o Porto Moniz, o Curral das Freiras, a frescura da Serra d`Água, Santana florida, e sei lá, tudo foi batido em exploração estonteante. Acompanhada de saborosas espetadas regadas a vinho, do puro, da Madeira…

Saciada a curiosidade de conhecer aqueles 800 km2 de terra, feita, verdadeiro jardim e bosque paradisíaco, erguido no meio do mar azul e omnipresente, como o sol, dedicámos a maior parte do nossos tempo aos regalos da cidade. Sem dar conta, estávamos assimilados pelas gentes afáveis e saudavelmente resignadas com a sua sorte. O continente éra-lhes um mito de que muito gostavam de ouvir falar. O barbeiro, madurão e todo careca, ali ao pé da Gonçalves Zarco contava-me deleitado as excursões ao Bom Jesus do Monte em Braga, ao majestoso Gerês e ao Buçaco, a Fátima, ganhas, naqueles 6 m2, à custa da tesoura e da navalha …

A maioria, porém, contentava-se em sonhar com uma certa inveja de nós… A pressão do cerco do mar era uma realidade geral. O tripeiro Gomes e o raiano Gonçalves eram já uns vividos boémios, aquele das ruelas da ribeira do Porto, este do Bairro Alto e da Madragoa, em Lisboa… Tinham sido interrompidos nos seus empregos pelo serviço militar. O Gomes estudava matemáticas na universidade do Porto, nas horas vagas do trabalho adequado; o Gonçalves era funcionário efectivo na Previdência. Estava cansado de estudar.

Eu estava a dar os primeiros passos, de liberdade condicional. Não, não estive no presídio penal. Acabava, sim, de me evadir do cárcere, nas masmorras do seminário de Vilar e da Sé, no Porto, diabolicamente, farisaicos… Uma vontade telúrica de enterrar aquele pesadelo e tapá-lo, bem fundo, com um curso superior, se possível, em Direito. Não sei porquê. Ânsia de libertação, talvez…Para isso, sentia uma necessidade natural de conhecer as intrincadas regras da sociedade política e administrativa. Por esse motivo, fui sempre capaz de dizer não aos repetidos aliciamentos que aquela leal parelha me disparava, volta e meia.

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Nota de L.G.:


(*) 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu Caro
Nesta fase de preliminares, estás a dar muito boa conta e a exibir uma escrita de grande qualidade.
Não tenhas pressa, não terás, concerteza, mas já aguardo os filmes que nos vais transmitir sobre o quotidiano da tropa nos matos da Guiné.
E como também fiquei amante da Madeira, é com muito interesse que leio as tuas bem adubadas recordações.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Sr. Mendes Gomes, muito Boa-Noite.

Aqui estou mais uma vez para lhe dizer, que estou encantada com a sua escrita.
Fluente, límpida, harmoniosa, salutar, reconhecendo-se nela as lembranças do seu passado, numa indesmentível certeza das vivências de então.

É um prazer enorme, encontrar no Blogue, que é como quem diz, (aqui à mão),os relatos de um passado meu contemporâneo, de um tempo jovem, onde todos nós sonhamos o futuro.

Os meus parabéns!

Muito obrigada pela sua coerência, pela sua cultura.

Gostava de ouvir os seus netos, daqui a uns anos, falar do avô.

Permita-me um abraço fraterno.

Felismina Costa

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Que bom ler as suas palavras. Muito obrigado.

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes disse...

Que bom ler as suas palavras. Muito obrigado.