sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15798: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2.ª versão, 2010, 99 pp.) - V Parte: IV - Cepa do Zé de Varche

Capa do livro (inédito) "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra", da autoria de Mário Vicente [Fitas Ralhete], o nosso querido camarada Mário Fitas, ex-fur mil inf op esp, CCAÇ 763, "Os Lassas", Cufar, 1965/67, e cofundador e "homem grande" da Magnífica Tabanca da Linha, escritor, artesão, artista, além de nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, alentejano de Vila Fernando, concelho de Elvas, reformado da TAP, pai de duas filhas e avô.

Esta edição é uma segunda versão, reformulada, aumentada e melhorada, do livro "Putos, gandulos e guerra" (edição de autor, Estoril, Cascaiis, 2000). A sua pré-publicação, no nosso blogue, em formato digital, está devidamente autorizada pelo autor.

Texto e fotos: © Mário Fitas (2016). Todos os direitos reservados.


Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra > IV Cepa do Zé de Varche  (pp. 22-24)

por Mário Vicente [, foto atual à esquerda]

– Desgraçado! Se a burra não conhecesse já o caminho para o monte do Barrocal, não sei onde iria parar! – comentava meu avô quando seu sogro saía da taberna de seu vizinho Joaquim dos Vinagres.

Eis pois o princípio da cepa!

–  Não tens vergonha nenhuma, desgraçado! De noite andas nos copos, de dia juntas esta gandulagem toda aqui que ninguém sossega. – vociferava Cambraia para seu irmão Saragoça, enquanto ia aparando o cabelo a algum cliente.

A casa da ti Mariviana tornara-se centro de encontro  dos gandulos. Saragoça era o sapateiro da aldeia, não remendão, pois tinha arte e saber no ofício, embora uma paralisia infantil lhe tivesse alterado um pouco a vida. Dedicado à música, com um ouvido extraordinário, foi pena não ter sido mais aproveitado. Muito torto e vaidoso, nunca quis usar bengala. Metendo a mão no bolso das calças, para firmar a perna coxa, lá seguia na sua passada dengosa. Mais tarde arranjou uma bengala a Carina, e parece ter equilibrado um pouco o andar apenas, porque o resto continuava tudo na mesma situação.

Saragoça era membro efectivo da Confraria "Cepa do Zé de Varche", vinda do Barrocal, à qual Calças de Palanco se orgulhava de também pertencer embora não fosse membro activo. Conhecidos­, membros honorários seriam: Joaquim José, tio de Calças de Palanco com Chostra e Laroso seus primos, respectivamente.

Vila Fernando, no concelho de Elvas.
Adapt de Wikipedia (com a devida vénia)
Chostra, artista nato, com umas mãos maravilhosas para trabalhar a madeira, deixa obras de arte extraordinárias que podem ser apreciadas no Museu na aldeia da Planície.
Os baixos-relevos do aqueduto da Amoreira, a cabeça de cavalo e o retrato de seu pai, bem como o brasão da Escola Prática de Cavalaria em Santarém, são uma pequena amostra da sensibilidade do artista. Joaquim José é o bibelô das mulheres, boémio, bonitão deixa rasto em Vendas Novas, Évora, Santarém e Leiria. No café Flâmula, sentados no banco de madeira, António, grande caçador, para os íntimos de alcunha "o Chefe," companheiro e camarada de serviço militar e de farras do cabo de Artilharia Joaquim José, passa para Calças de Palanco o relatório completo das aventuras de seu tio que passou por Cabo Verde e Açores entre 1942 e 1947 na Segunda Guerra Mundial.

A vida era deles e, por isso, o que é que nós temos a ver com ela? Gozaram-na e viveram-na à sua maneira e como lhes soube melhor! A Confraria continuará pois, dada a qualidade da cepa, sempre haverá boas varas para enxertia.

Falemos um pouco mais de Saragoça. Aventureiro, me­droso por natureza, correu os matos da Colónia aos ombros de seu irmão ManeI do Barrocal, também membro activo da Cepa, cujas aventuras dariam um belo e saboroso romance, pois pertenceu ao primeiro Corpo de Paraquedistas Português, com curso tirado em Espanha, com o Cartuchana, para honra não só deles, mas também desta pequenina aldeia da Planície, que não tem sido muito pródiga para com os seus filhos, cujo bom nome têm espalhado pelo mundo português.

É uma polémica que um dia estalará mas, por agora, viola no saco.

Falemos então do Manuel do Barrocal, prisioneiro no Estado da Índia onde, estimado por todos, ia cagar ao lado indiano atravessando o arame farpado. Não havia proble­mas pois "Cristã" podia passar. Na Colonial andou por seca e meca, indo parar aos comandos em Mueda, Moçambique, onde também conheceu o Suíças mas, agora, segundo parece, já sem tomates. Também tinha das boas,  o primo Manel!... Noite de Natal, a igreja apinhada até à porta, como era costume após a Missa do Galo, seria a cerimónia de beijar o menino. Com tanta gente, quando é que o pessoal cá de trás chegaria lá à frente? O primo ManeI ajoelha e arranca pela coxia da igreja que se encontrava cheia. O pessoal muito amigo de inventar situa­ções, entrou na jogada e imediatamente, começou o sussurrar de orelha em orelha:
–  É uma promessa! É uma promessa!... Coitadinho sofreu tanto, prisioneiro e sempre na guerra! – sussurravam de ouvido em ouvido as velhotas.

Ao chegar próximo do Altar, olhou para trás, e piscou o olho com malandrice à matula. Respeitosamente beijou o Menino e solenemente voltou, sendo o primeiro a sair da Igreja. Era assim, sem prejudicar ninguém, que punha a gandulagem partindo o coco a rir.

Voltemos então ao Saragoça, não vá pensar que não se narram as suas gloriosas aventuras. Já um pouco fartos dos problemas dele, lembraram-se que poderia recuperar em Moçambique, em casa de sua irmã mais velha. Assim o mestre sapateiro se vê de malas aviadas rumo a Nacala.

Na passagem por Lisboa, para embarcar, tem uma óptima oportunidade para conhecer a capital e dar umas voltas. Nada menos nada mais que o amigo Torreca, agora cabo marinheiro. Para ser simpático com seu amigo Saragoça, mestre Chico monta este na sua Lambreta e vá de passear por Lisboa com Pitorrela também já na Marinha, que tinha chegado para a despedida de Saragoça, comentaram e falaram de aventuras na aldeia da Planície. Abraça­ram-se os três num grande e saudoso acto de despedida e Saragoça subiu as escadas, só olhando para trás quando entrou no portaló. Então a sua boca deu um grande sorriso e gritou:
–  Adeus e até qualquer dia!

Os dois marujos, em terra, tiraram os bonés e com eles acenaram desejando boa viagem ao seu amigo sapateiro, tocador de concertina.

Segundo ele próprio contou, a sua ida para Moçambique, foi pior a emenda que o soneto. Chegou a sair de casa e viver com uma negra, vendendo o acordeão que lhe tinham comprado. Estava-se a ver, foi recambiado.

Ao chegar à sua aldeia, aos gandulos informou ter deixa­do em Moçambique mais de duzentos filhos, pois tinha sido mais prolífero que o próprio Gungunhana com catorze mulheres.

Tinha outras e outra vida teria, se o milagre que lhe este­ve destinado por Deus Nosso Senhor se tivesse consumado.

Já dormindo, certa noite ouviu um barulho, acordou es­tremunhado e que viu ele? Subindo pelas grades da cama um gaiatinho nu, apenas com uma fralda, tal e qual o Menino Jesus do Presépio. Ficou atónito e sem saber o que dizer. O gaiato começou a falar com ele e lhe comunicou: ser de facto o Deus Menino e que estava ali para o pôr bom da perna. Coisa simples teria de fazer: confessar-se e comungar na Missa do Galo. Não poderia era dar conhecimento a ninguém do que estava a acontecer. Tudo certinho! 

No dia seguinte toda a gandulagem ficou a saber da promessa do Menino Jesus. Da confissão com a conversa esqueceu-se. Quanto à comunhão na missa do Galo, um equívo­co complicou as coisas. Quando se encaminhava para a igreja Paroquial, enganou-se na rua e em vez de ir para a esquerda, seguiu em frente entrando na Capelinha da Sociedade. Já tarde e com uns bons copos, febras, cacholeiras e chouriços grelhados à mistura, se lembrou de que o acto milagroso se daria apenas na igreja Paroquial, pelo que ainda hoje, coitado, continua com a paralisia por milagrar.

Quer queiram quer não o mestre Chico ficará na histó­ria da sua aldeia. Homem de todas as idades. Gerações de putos e gandulos passaram pela oficina deste mestre sapateiro. Até gentes de terras para os lados do Norte o consideravam como amigo. É e será sempre, apesar de todos os seus disparates, uma figura típica desta Vila Fernando, linda aldeia da Planície.
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de fevereiro de 2016 >Guiné 63/74 - P15705: Pré-publicação: O livro de Mário Vicente [Mário Fitas], "Do Alentejo à Guiné: putos, gandulos e guerra" (2ª versão, 2010, 99 pp.) - IV Parte: III - Metamorfose 1 (pp. 20-21)

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