1. Portugal > Estado Novo > Assembleia Nacional > XI Legislatura > Sessão nº 40 > 15 de março de 1974 >
O sr. deputado [por São Tomé e Príncipe, José Maria de] Castro Salazar, médico, do quadro comum médico do ultramar, com carreira em São Tomé e Príncipe e em Angola, n. 1922, em Guimarães], referiu.-se ao 60.º aniversário da eliminação da doença do sono e erradicação das glossinas na ilha do Príncipe. (*)
851 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 42
O Sr. Castro Salazar:
- Sr. Presidente, Srs Deputados. A doença do sono foi no século passado e no primeiro quartel do actual o flagelo que mais duramente atingiu as populações da África tropical e a responsável pelo despovoamento de extensas regiões e decadência de muitas outras, até então florescentes e prósperas
A tripanossomíase humana, vulgarmente conhecida por doença do sono, fez o seu aparecimento em África nos fins do século XVIII, sendo em 1803 assinalada pela primeira vez por Winterboton entre os escravos oriundos de Benin. Em 1840 Clarke detectou a existência da doença na Costa do Ouro e na Serra Leoa, e em 1864 Kral e Bellay observaram-na entre os indígenas do Congo.
A tripanossomíase humana, vulgarmente conhecida por doença do sono, fez o seu aparecimento em África nos fins do século XVIII, sendo em 1803 assinalada pela primeira vez por Winterboton entre os escravos oriundos de Benin. Em 1840 Clarke detectou a existência da doença na Costa do Ouro e na Serra Leoa, e em 1864 Kral e Bellay observaram-na entre os indígenas do Congo.
Supõe-se que só a partir de 1871 a afecção atingiu a província de Angola, tendo-se registado os primeiros casos nas margens do Cuanza, na região de Muxima e Quissama, foco inicial donde irradiou para outras regiões de Angola.
Na ilha do Príncipe a tripanossomíase fez o seu aparecimento em 1895, calculando-se que a mosca tsé-tsé, seu vector biológico, se tivesse introduzido na ilha trinta anos antes, proveniente da costa do Gabão, e por esse motivo é conhecida entre os seus habitantes como «mosca do Gabão». Foi contudo a partir de 1877, a seguir à chegada de serviçais oriundos da região de Cazengo e das margens do Cuanza, que a doença do sono começou a manifestar-se na ilha de forma epidémica, sendo já assustadora em 1885 a mortalidade por ela causada entre os serviçais das propriedades agrícolas, convertendo-se a breve prazo em autêntico flagelo para todos os habitantes da pequena ilha.
A população nativa, que em 1885 era constituída por 3000 pessoas, foi duramente atingida pela doença, ficando reduzida a 800 habitantes em 1900 e não contando em 1907 mais do que 350, pelo que se chegou a admitir a hipótese de um abandono total da ilha.
Entretanto, várias missões médicas se deslocaram ao Príncipe a fim de estudar e combater a doença Saliento a primeira dessas missões, constituída em 1901, na qual participaram, entre outros, dois eminentes médicos, os Drs Aníbal Bettencourt e Ayres Kopke, a qual desenvolveu obra meritória tanto nesta ilha como em Angola, onde se deslocou também. As investigações que os seus cientistas efectuaram no campo da etiopatogenia da doença do sono, muito embora não culminassem com a descoberta do agente infeccioso - este viria a ser descoberto um ano mais tarde por Castellani no sangue e líquido cefalo-raquidiano de indivíduos portadores da moléstia -, revestiram-se contudo de inegável valor científico
O Sr. Cancella de Abreu [, Lopo Cancela de Abreu, 1913-1990, médico, antigo ministro da saúde e assistência, set 1968 / jan 1970, no I Governo de Marcelo Caetano]:
- Muito bem!
O Orador:
O Orador:
- Foi, no entanto, para me referir, em breves palavras, à última missão enviada ao Príncipe para combater o terrível flagelo que tantas vítimas causou que eu pedi a palavra. Chefiada pelo Dr. [Bernardo Francisco] Bruto da Costa (**), actuou no Príncipe entre 1911 e 1914 e dela fizeram parte, além deste ilustre médico, os Drs Correia dos Santos, Firmino Santana e Araújo Álvares.
A missão realizou uma notável, difícil e muitas vezes incompreendida campanha, cujo êxito foi absoluto, não só porque conseguiu debelar uma doença que por pouco não conduziu ao extermínio total da população, como levou à erradicação do insecto vector da doença - a mosca tsé-tsé ou glossina -, eliminando-se o perigo latente de futuras epidemias da terrível afecção Pela primeira vez no Mundo se conseguiu eliminar uma população glossínica no seu próprio habitat, facto verdadeiramente notável que muito prestigiou os nossos serviços médico-sanitários e honrou o País.
Tal acontecimento teve lugar justamente há sessenta anos, e eu não queria deixar de o lembrar perante VV. Ex.ªs e, ao mesmo tempo, prestar justa homenagem a quem, com invulgar inteligência, saber e determinação, tornou possível o perfeito êxito da campanha - o médico dos serviços de saúde do ultramar Dr Bruto da Costa.
O Sr Gardette Correia [ , Manuel Gardette Correia, natural de Bissorã, deputado pela Guiné, médico]:
O Sr Gardette Correia [ , Manuel Gardette Correia, natural de Bissorã, deputado pela Guiné, médico]:
- Muito bem!
O Orador:
O Orador:
- Há dias, na Academia das Ciências, o Prof [João] Fraga de Azevedo, em oportuna comunicação, louvou a actividade enérgica e modelar do Dr Bruto da Costa e seus colaboradores, que levou com a maior originalidade a uma das mais brilhantes campanhas sanitárias em África, realizada por Portugal no campo da medicina tropical. Também em livro recentemente publicado, Man Against Tse Tse - Strugle for África , Cornell University Press; First Edition edition, December 1973], o seu autor, John J McKelvey Jr, presta homenagem ao esforço desenvolvido pelos cientistas portugueses no estudo e combate às tripanossomíases, pondo em realce o trabalho levado a cabo pelo Dr. Bruto da Costa na eliminação da doença do sono e erradicação das glossinas na ilha do Príncipe.
O Sr Cancella de Abreu:
O Sr Cancella de Abreu:
- V Ex.ª dá-me licença?
O Orador:
O Orador:
- Com muito gosto.
O Sr Cancella de Abreu:
O Sr Cancella de Abreu:
- Associo-me plenamente à homenagem que V. Ex.ª está prestando aos cientistas nacionais que deram um contributo tão válido para o combate à doença do sono. Essa homenagem é não só devida por nós, nacionais, mas teve também uma repercussão internacional, que não é demasiado aqui referir neste momento
O interruptor não reviu
Vozes:
O interruptor não reviu
Vozes:
- Muito bem!
O Orador:
O Orador:
- Muito obrigado, Sr. Deputado Cancella de Abreu, pela sua achega, que veio, de certa maneira, valorizar esta minha comunicação.
A propósito, seja-me permitido dizer que o autor se refere larga e elogiosamente à segunda campanha de erradicação da mosca do sono na mesma ilha - reintroduzida muito provavelmente a partir da Guiné Equatorial, quarenta anos após ter sido capturada a última glossina no Príncipe, em 1914 -, realizada pela Missão de Combate às Glossinas da Ilha do Príncipe no curto espaço de dois anos (1956-1958) e utilizando métodos que não coincidiram com os da campanha anterior.
852 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 42
O Sr. Gardette Correia:
- V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador:
O Orador:
- Com certeza.
O Sr. Gardette Correia:
O Sr. Gardette Correia:
- Eu, como guineense e chefe da Missão de Combate às Tripanossomíases da Guiné, não poderia de forma alguma ficar insensível ao seu discurso e sobretudo às grandes referências que vem fazendo acerca da erradicação da doença do sono na ilha do Príncipe.
No que diz respeito a esta afecção, gostaria de esclarecer a Câmara de que não conheço em toda a África uma campanha semelhante à que Portugal vem fazendo em todo o território ultramarino.
Vozes:
- Muito bem!
O Sr Gardette Correia:
O Sr Gardette Correia:
- Na realidade, e eu posso dar números, na Guiné, em 1945 foram apanhados dois mil quinhentos e tal doentes e em 1973 apenas encontrámos quinze doentes, dos quais cinco da República da Guiné, do Senegal e da Zâmbia.
Isto quer dizer que apenas temos dez doentes, os quais não foram tratados ou não se submeteram ao tratamento que nós temos vindo a fazer. Essa é a grande vitória de Portugal no ultramar, precisamente no campo da doença do sono, que conseguiu dominar na ilha do Príncipe e em S. Tomé. Contudo, na Guiné é impossível falarmos na erradicação, temos de falar antes num controle, e podemos dizer que a doença hoje está absolutamente controlada, absolutamente dominada.
Quanto aos cientistas que realmente contribuíram para a erradicação desta doença, V. Ex.ª falou no nome de Fraga de Azevedo, mas não nos podemos esquecer dos nomes do Sr. Prof. Cruz Ferreira, do Sr. Prof. Salazar Leite, Profs. [Janz ] [e não Ians, Guilherme Jorge Janz] e [Francisco] Cambournac, que realmente muita contribuição deram para a erradicação e controle desta doença em África.
O interruptor não reviu.
Vozes:
- Muito bem!
O Orador:
O Orador:
- Muito obrigado, Sr Deputado. Eu associo-me à homenagem que está a prestar aos cientistas que enumerou. Eles estavam realmente no meu pensamento, mas a índole do trabalho não permitia que a eles me referisse.
A mosca Glossina palpalis (conhecida como "mosca tsé-tsé"), vector da doença-do-sono. Por Mr. Tam Nguyen - American Museum of Natural History, in New York City, USA., CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=215445 [in Wikipédia > Doença do sono]
A Missão limitou os seus trabalhos ao estudo da biologia das glossinas e sua erradicação do território,
já que o exame clínico e laboratorial de toda a população levara à conclusão da não existência de tripanossomíase humana. No entanto, a permanência na ilha do vector biológico da doença do sono constituía indubitavelmente uma séria ameaça que tinha de ser eliminada. Não cabe aqui descrever os trabalhos que conduziram pela segunda vez à erradicação das glossinas no território, mas sim lembrar que o êxito da missão se ficou devendo ao eminente professor do Instituto de Medicina Tropical Fraga de Azevedo (***), que chefiou, e ao Dr. Manuel da Costa Mourão, seu mais directo colaborador, nomes que, com o do Dr. Bruto da Costa, são credores da gratidão do povo, que nesta Câmara represento, e da admiração de todos nós.
Vozes:
- Muito bem!
Fonte: Excerto, com a devida vénia > República Portuguesa > Secretaria-Geral da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa > Diário das Sessões > Nº 42 > 16 de março de 1974, pp. 851-852
[ Seleção / revisão / fixação de texto / notas: LG]
_______________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 3 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15569: Historiografia da presença portuguesa em África (68): As colónias portuguesas: a província da Guiné, vista em 1884, em livro da biblioteca do povo e das escolas (Lisboa, David Corazzi, Lisboa, 2ª ed.) - II (e última) parte (António J. Pereira da Costa, cor art ref)
(**) Vd. COSTA, Bernardo Francisco Bruto daVinte e três anos ao serviço do país no combate às doenças em África / Bernardo Francisco Bruto da Costa. - Lisboa, 1939. - XIV, 208 p.
(***) Vd. AZEVEDO, João Fraga deA erradicação da Glossina palpalis palpalis da Ilha do Príncipe (1956-1958) / J. Fraga de Azevedo, M. da Costa Mourão, J. M. de Castro Salazar. - Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, 1962. - 181 p. : il. ; 23 cm. - Estudos ensaios e documentos. 91)
[ Seleção / revisão / fixação de texto / notas: LG]
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 3 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15569: Historiografia da presença portuguesa em África (68): As colónias portuguesas: a província da Guiné, vista em 1884, em livro da biblioteca do povo e das escolas (Lisboa, David Corazzi, Lisboa, 2ª ed.) - II (e última) parte (António J. Pereira da Costa, cor art ref)
(**) Vd. COSTA, Bernardo Francisco Bruto daVinte e três anos ao serviço do país no combate às doenças em África / Bernardo Francisco Bruto da Costa. - Lisboa, 1939. - XIV, 208 p.
(***) Vd. AZEVEDO, João Fraga deA erradicação da Glossina palpalis palpalis da Ilha do Príncipe (1956-1958) / J. Fraga de Azevedo, M. da Costa Mourão, J. M. de Castro Salazar. - Lisboa : Junta de Investigações do Ultramar, 1962. - 181 p. : il. ; 23 cm. - Estudos ensaios e documentos. 91)
3 comentários:
Não é a propósito mas uso este meio para aconselhar que leiam a entrevista de Pedro Pires no Diário de Notícias de Hoje.
Esta gente continua a não se abrir (meias mentiras)aos 81 anos e passados mais de 40 anos, esta meia dúzia de caboverdeanos do PAIGC, continuam a não ser sinceros.
Nem quando ali afirma que foi doloroso pegar em armas.
Na entrevista nem se aborda o assassinato de Amílcar, que não deve ter sido tão doloroso para essa gente.
Luís Graça ainda bem, que te enviei o mail sobro o sonho de Cabral, 10 horas antes de ler esta entrevista.
Menciona, porque sou eu só contra o cinismo.
Desculpa Luís, e o Doutor Gardete, um médico colonial com fama em Bissau de um grande humanista, e de certeza que era contra as armas apontadas aos guineenses do lado de lá da fronteira.
Antº Rosinha,
Pelo muito que tens escrito,
Pelo muito que nos dás a aprender,
Por muitas divergências que contigo tenho,
Pelo enriquecimento que dás aqui a este "espaço", de desabafo de vivências,de controversia, de troca de ideias para compreender África, - eu te abraço e agradeço.
Abração,T.
Ver aqui a troca de correspondência entre o Armando Pires e o dr. Francisco Cristo, jusrista, que estudou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e vive em Bruxelas (filho do dr. Manuel Gardette Correio, e foi com emoção que viu a foto da casa do avô, em Bissorã)
26 DE JUNHO DE 2014
Guiné 63/74 - P13332: Memória dos lugares (269): Bissorã, Casa Gardete, do dr. Manuel Gardete Correia (1928-2009), autoridade mundial no combate à doença do sono, a única casa de pedra e tijolo da vila, construída por seu pai José Gardete Correia, comerciante, natural de Rosmaninhal, Idanha-a-Nova (Armando Pires / Fernando Cristo)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/06/guine-6374-p13332-memoria-dos-lugares.html
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