Caros Camaradas
Como sempre aceito o desafio (*). O Luís tem razão, são "estilhaços das nossas memórias", e a vida é isto. Ainda há pouco tinha cinco anos. Despedido aos 53. Sentia-me um jovem. Amei toda a vida. Os amigos. Desapareceu o Vítor José Correia Pestana numa armadilha que montara. Quem comandava errou. Suicidou-se na Madeira, lançando-se ao mar de um penhasco. Dizia-lhe sempre que o encontrava:
– Matou o Pestana e o Costa!
E ele não respondia. Agredi-o tantas e tantas vezes. Depois de despedido, de uma vida de dádivas e de amor. De entrega. Eu que lutara por uma causa, saíra vencedor, sou derrotado. A Legislação aprovada foi abandonada por aquilo que já temia em 1996 no Jornal 2 da APOIAR. "A guerra pelos tostões dos subsídios, entre Associações". Veio a "Guerra com medo de se perderem os milhares de euros dos Protocolos entre as Associações e o Ministério da Defesa Nacional. E o Mário Vitorino Gaspar ficou sem os apoios por que lutou. A APOIAR corta e a ADFA… Através da sua Psicóloga Clínica Doutora Teresa Infante disse-me:
– Não o acompanho Psicologicamente por nos conhecermos há muito tempo, e por o Mário ter lutado pela Lei!
Disse-lhe que não era razão… Outra desculpa.
E as doenças… Ataques sucessivos. Alzheimer, que não o é, glaucoma e problemas pulmonares. Prisão de ventre. Inscrever-me para entrar num Lar Militar. Doenças! Como não bastasse, fico cheio de borbulhas que rebentam e ficam as pernas em chaga. Os dentes… Arranco 17 dentes. E depois de operado às cataratas, fico com a tensão baixa. Sou atropelado, para cúmulo por uma ambulância e dentro do Hospital das Forças Armadas. Na noite de 25 de Dezembro caio e vou de ambulância para o Hospital de Santa Maria e transferido para o Hospital Pulido Valente para os Serviços Intensivos. E no Carnaval vou de urgência novamente.
Queixar-me?
Envio para o Blogue o texto sobre o Meu Coma – O Corredor da Morte. Quantos "corredores da morte". Escapei. Com quase 73 anos mais 50% de aumento de experiência da vida são 108, mais que os anos de vida do Manoel de Oliveira.
Cumprimentos
Mário Vitorino Gaspar
2. O meu coma: o corredor da Morte
Enviado para fazer o electrocardiograma pelo médico que me fez a triagem e, enquanto digo à moça que iria fazer o exame “que tivesse calma, que depois lhe contava uma anedota”, ela gritava:
– Urgente, Urgente...
Sou colocado em cima de uma maca, enquanto digo para a técnica:
– Então não lhe posso contar a anedota?
Sou levado pelo maqueiro para a sala da triagem. Olho para o meu filho com algum receio e conforto‑me em vê‑lo aparentemente calmo e controlado, pedindo‑me as alianças, relógio, carteiras, chaves, enquanto a maca vai deslizando pelo corredor até ao elevador que me transporta ao piso 6, à UTIC – Serviços Intensivos.
Quando a maca está quase a parar, depois de ter batido com as nós dos dedos na última parede, como se costuma ver nas séries de televisão e nos filmes, vejo um médico de barba grisalha, mas mais branca que preta e bata também branca. Sai‑me pela boca:
– Olha quem ele é?!
– Afinal és tu! – Disse o Dr. Nunes Diogo.
– Conhece o Senhor Doutor Diogo? – Perguntou o maqueiro.
– Desde miúdo... – Respondi‑lhe.
Não só o conhecia a ele – até tinha andado a estudar comigo no Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira. O pai dele, Dr. Armando Diogo falava muito comigo quando eu era catraio, nunca cheguei a saber muito bem porquê. Como curiosidade este, foi um dos fundadores do Partido Socialista.
O Dr. Nunes Diogo para mim é o Tó Mané. Depois de me analisar disse que teria que fazer um cateterismo cardíaco, e que talvez se resolvesse o problema. Em caso contrário proporia a operação rapidamente. Apeteceu‑me fumar.
É aqui que fico sem saber onde está a realidade. A partir deste momento, até dia 27 de Março, não sei o que é verdade.
Uma neblina percorre os meus olhos: – Lembro‑me de me enfiarem depois da anestesia, um cateter na virilha, e vejo um coração (o meu) no visor. Não sei em que dia foi. Quando o cateter insuflava sangue observava uma nuvem, respondendo, julgo que em voz alta: – “estou f...”
– O saco de areia! – Ouvi alguém gritar, apontando para mim. Entro noutro mundo.
Fui operado a 15 de Março de 2002 pelo cirurgião Dr. Alberto Lemos; Ajudantes Doutor Manuel Dantas; Anestesista Doutora Ilda Viana; Perfusionista Doutor. Filipe Pereira e Instrumentista Doutora. Conceição Santos.
Tratou‑se de uma Operação: BACx4 (1 c/M.ª Int.ª Esq.ª), Cirurgia de Bypass.
Um sonho? As estrelas – simultaneamente uma árvore de Natal, um presépio – uma amálgama de luzes dispersas, mais parecendo uma cidade vista ao longe numa noite escura.
Estava num campo, com muitas árvores. Viam‑se muitos militares, curiosamente, todos eles velhos. Era uma concentração, talvez até de Associações. Mas estavam mortos, mas vivos nesse mundo onde pernoitava.
– Já escrevi uma carta de amor! – Disse.
– Mas a que escrevi o ano passado está exposta, mas parece que mais ninguém concorre!
Pedi que me trouxessem a minha neta Raquel. Ninguém me fez a vontade.
Está aqui o computador, é um «Plus menos».
Um rapaz apareceu. Não sei de onde… Fez primeiro um serviço de cerâmica antiga, e depois um bolo grande. Tudo num computador. Como se tirasse uma fotocópia. Que foi a nossa delícia! Ele era um artista… Um artista!
Dei ordens para darem ao rapaz algum dinheiro. Fomos até ao rio, que era perto onde um barco a remos nos esperava.
Afinal o rapaz acabou por vir connosco.
Deslocámo‑nos à Sede da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex‑Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, tendo sido eu um dos fundadores a 18 de Abril de 1994. Só vi a sede por cima, portanto em corte. Via o tal rapaz sozinho. Fiquei no céu enjaulado. Encaixotado. Só. Preso.
O rapaz até tem alguns dons que devem ser aproveitados, mas peca por não ser lá muito certo. Não tem os alqueires bem medidos. Mas a trabalhar com o computador ele é uma “máquina”.
Estava novamente na Guiné, e voava, ou por outra, movimentava‑me pelo ar rapidamente, com a G3 em punho, matando sozinho uma série de guerrilheiros do PAIGC.
Como sempre aceito o desafio (*). O Luís tem razão, são "estilhaços das nossas memórias", e a vida é isto. Ainda há pouco tinha cinco anos. Despedido aos 53. Sentia-me um jovem. Amei toda a vida. Os amigos. Desapareceu o Vítor José Correia Pestana numa armadilha que montara. Quem comandava errou. Suicidou-se na Madeira, lançando-se ao mar de um penhasco. Dizia-lhe sempre que o encontrava:
– Matou o Pestana e o Costa!
E ele não respondia. Agredi-o tantas e tantas vezes. Depois de despedido, de uma vida de dádivas e de amor. De entrega. Eu que lutara por uma causa, saíra vencedor, sou derrotado. A Legislação aprovada foi abandonada por aquilo que já temia em 1996 no Jornal 2 da APOIAR. "A guerra pelos tostões dos subsídios, entre Associações". Veio a "Guerra com medo de se perderem os milhares de euros dos Protocolos entre as Associações e o Ministério da Defesa Nacional. E o Mário Vitorino Gaspar ficou sem os apoios por que lutou. A APOIAR corta e a ADFA… Através da sua Psicóloga Clínica Doutora Teresa Infante disse-me:
– Não o acompanho Psicologicamente por nos conhecermos há muito tempo, e por o Mário ter lutado pela Lei!
Disse-lhe que não era razão… Outra desculpa.
E as doenças… Ataques sucessivos. Alzheimer, que não o é, glaucoma e problemas pulmonares. Prisão de ventre. Inscrever-me para entrar num Lar Militar. Doenças! Como não bastasse, fico cheio de borbulhas que rebentam e ficam as pernas em chaga. Os dentes… Arranco 17 dentes. E depois de operado às cataratas, fico com a tensão baixa. Sou atropelado, para cúmulo por uma ambulância e dentro do Hospital das Forças Armadas. Na noite de 25 de Dezembro caio e vou de ambulância para o Hospital de Santa Maria e transferido para o Hospital Pulido Valente para os Serviços Intensivos. E no Carnaval vou de urgência novamente.
Queixar-me?
Envio para o Blogue o texto sobre o Meu Coma – O Corredor da Morte. Quantos "corredores da morte". Escapei. Com quase 73 anos mais 50% de aumento de experiência da vida são 108, mais que os anos de vida do Manoel de Oliveira.
Cumprimentos
Mário Vitorino Gaspar
2. O meu coma: o corredor da Morte
por Mário Vitorino Gaspar
Dia 12 de Março de 2002. Chego a casa. O meu filho Alexandre está sentado defronte da televisão. A minha mulher encontra-se deitada. Eu, cheio de dores. Não se apercebem da minha grande aflição. E, o meu mal-estar prolonga‑se. Só pretendia que aquilo passasse. Continuava a caminhar da sala para a cozinha e vice-versa. Bebo um gole de água. Despejo um copo. Outro. Olho de vez em quando para a televisão. Cigarro na boca. Continuava sem saber que programa estava a dar. Nem que canal. Aquela coisa de ter mais de 50 canais… O meu filho foi para a casa de banho… E as dores acentuavam‑se. O peito.
Novamente na cozinha. Acendi um cigarro. Enchi os pulmões de fumo. Penso em acordá-los. Deito aos poucos o fumo do cigarro. Bebo um copo de água. E sai a água pela boca. Várias nascentes brotam do meu interior. Como bicas da fonte. Fico com a camisa molhada. Engasgo‑me… Que dia é?
Ainda há pouco dissera ao Pinheiro, enquanto fumava:
– Ainda me dá qualquer dia uma “parecida comigo”, temos de estar atentos, esta vida que levamos na APOIAR… É uma guerra dentro de outra guerra. Destrói o que somos. Muitas reuniões, uma vida agitada! O amigo Jorge Santos também leva o mesmo caminho.
O mal‑estar continuava, e só me lembro de uma igual aflição:
– Quando o nosso “herói” Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos.
Parecia estar tonto. Acendi um novo cigarro. Tinham‑me dado aquele isqueiro uns dias antes. Os braços e pernas trepidando, como a iniciar um sismo. Talvez o significado mais apropriado seja vibração. Novo cigarro. O último copo de água fizera‑me arrotar. A nada...
Já a caminho de casa acontecera o mesmo. Mas porquê? Já há dias que começara a sentir aqueles sintomas.
Dos pulmões? Tinha uma fibrose pulmonar, provocada pelo pó de diamante. Nos anos 70, tinha sido uma guerra considerarem aquela fibrose como doença profissional.
Do coração? Ainda há bem pouco tempo tinha ido fazer um electrocardiograma com prova de esforço. Fui obrigado a ser ciclista. Um ciclista que pedala sem sair do mesmo local.
Dissera‑me o cardiologista que o que eu precisava era de fazer uma “sangria”. Sorri e disse‑lhe:
– Não sou nenhum porco!
Explicava‑me que tinha mais glóbulos do sangue “x” a mais que o normal e que teria que fazer a dita “sangria”. Fiquei a saber que isso também não era aquela bebida que fazemos com vinho, gasosa, canela, limão e hortelã.
Seria cirrose? Já que os termos de neurose, psicose, e mais “oses”.
“Não acredito que haja uma vida pós-morte,
mas há qualquer inquietação dentro de mim
ou qualquer crença dentro de mim que também
recusa admitir que a morte seja o fim de tudo.”
Professor Agostinho da Silva
Dia 12 de Março de 2002. Chego a casa. O meu filho Alexandre está sentado defronte da televisão. A minha mulher encontra-se deitada. Eu, cheio de dores. Não se apercebem da minha grande aflição. E, o meu mal-estar prolonga‑se. Só pretendia que aquilo passasse. Continuava a caminhar da sala para a cozinha e vice-versa. Bebo um gole de água. Despejo um copo. Outro. Olho de vez em quando para a televisão. Cigarro na boca. Continuava sem saber que programa estava a dar. Nem que canal. Aquela coisa de ter mais de 50 canais… O meu filho foi para a casa de banho… E as dores acentuavam‑se. O peito.
Novamente na cozinha. Acendi um cigarro. Enchi os pulmões de fumo. Penso em acordá-los. Deito aos poucos o fumo do cigarro. Bebo um copo de água. E sai a água pela boca. Várias nascentes brotam do meu interior. Como bicas da fonte. Fico com a camisa molhada. Engasgo‑me… Que dia é?
Ainda há pouco dissera ao Pinheiro, enquanto fumava:
– Ainda me dá qualquer dia uma “parecida comigo”, temos de estar atentos, esta vida que levamos na APOIAR… É uma guerra dentro de outra guerra. Destrói o que somos. Muitas reuniões, uma vida agitada! O amigo Jorge Santos também leva o mesmo caminho.
O mal‑estar continuava, e só me lembro de uma igual aflição:
– Quando o nosso “herói” Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos.
Parecia estar tonto. Acendi um novo cigarro. Tinham‑me dado aquele isqueiro uns dias antes. Os braços e pernas trepidando, como a iniciar um sismo. Talvez o significado mais apropriado seja vibração. Novo cigarro. O último copo de água fizera‑me arrotar. A nada...
Já a caminho de casa acontecera o mesmo. Mas porquê? Já há dias que começara a sentir aqueles sintomas.
Dos pulmões? Tinha uma fibrose pulmonar, provocada pelo pó de diamante. Nos anos 70, tinha sido uma guerra considerarem aquela fibrose como doença profissional.
Do coração? Ainda há bem pouco tempo tinha ido fazer um electrocardiograma com prova de esforço. Fui obrigado a ser ciclista. Um ciclista que pedala sem sair do mesmo local.
Dissera‑me o cardiologista que o que eu precisava era de fazer uma “sangria”. Sorri e disse‑lhe:
– Não sou nenhum porco!
Explicava‑me que tinha mais glóbulos do sangue “x” a mais que o normal e que teria que fazer a dita “sangria”. Fiquei a saber que isso também não era aquela bebida que fazemos com vinho, gasosa, canela, limão e hortelã.
Seria cirrose? Já que os termos de neurose, psicose, e mais “oses”.
Aquela merda da Guiné dera cabo de mim!
Mas por que razão não aceitei o convite da Ingrid Margarett Gustavsom (sueca com quem me escrevi enquanto estudante, bonita de olhos azuis e loira) e dar o salto para a Suécia? Poderia também ter ido para França?
Não me passava aquela aflição, e num ápice, quando o meu filho saía da casa de banho, e depois de ouvir o autoclismo. Tiro certeiro:
– Alexandre vem com o pai ao Hospital de Santa Maria!
– Mas porquê?
– Não me sinto bem!
– Mas o que é?
– Deve ser ou pulmões ou coração.
Saímos. Chuviscava. Uma chuva miúda. A “chuva molha parvos”. Continuava a sentir‑me tonto. Arrotava. Fumei mais um cigarro.
O meu filho chamou a atenção com um: – “Não fume pai”.
Junto do largo do Santo António (cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida da Igreja), na Praça de Alvalade. Esperámos por um táxi. Não fumo mais porque o meu filho ficara com os cigarros e o isqueiro. Entrámos para o táxi.
No Hospital de Santa Maria seguro‑me à mesa do guiché
– Cartão da Segurança Social? E o cartão de utente não tem? De que se queixa?
A senhora que me atendia olhou‑me, enquanto lhe entregava o cartão pedido. Fiquei desconfiado. Compreendi entretanto a razão de tal olhar: O meu aspecto doentio. Devia ter cara de um indivíduo que estava mesmo mal de saúde.
Olhei para o meu filho, sentindo‑me cada vez pior. Cresci um pouco. Mais um pouco, ainda mais um pouco tentando afastar as dores:
– Porra! Sou combatente… Continuo a ser! Estive na guerra! – Continuei, acrescentando ainda:
– O meu filho tem epilepsia. Olhem por ele! – Era uma desculpa.
Mas por que razão não aceitei o convite da Ingrid Margarett Gustavsom (sueca com quem me escrevi enquanto estudante, bonita de olhos azuis e loira) e dar o salto para a Suécia? Poderia também ter ido para França?
Não me passava aquela aflição, e num ápice, quando o meu filho saía da casa de banho, e depois de ouvir o autoclismo. Tiro certeiro:
– Alexandre vem com o pai ao Hospital de Santa Maria!
– Mas porquê?
– Não me sinto bem!
– Mas o que é?
– Deve ser ou pulmões ou coração.
Saímos. Chuviscava. Uma chuva miúda. A “chuva molha parvos”. Continuava a sentir‑me tonto. Arrotava. Fumei mais um cigarro.
O meu filho chamou a atenção com um: – “Não fume pai”.
Junto do largo do Santo António (cruzamento da Avenida de Roma com a Avenida da Igreja), na Praça de Alvalade. Esperámos por um táxi. Não fumo mais porque o meu filho ficara com os cigarros e o isqueiro. Entrámos para o táxi.
No Hospital de Santa Maria seguro‑me à mesa do guiché
– Cartão da Segurança Social? E o cartão de utente não tem? De que se queixa?
A senhora que me atendia olhou‑me, enquanto lhe entregava o cartão pedido. Fiquei desconfiado. Compreendi entretanto a razão de tal olhar: O meu aspecto doentio. Devia ter cara de um indivíduo que estava mesmo mal de saúde.
Olhei para o meu filho, sentindo‑me cada vez pior. Cresci um pouco. Mais um pouco, ainda mais um pouco tentando afastar as dores:
– Porra! Sou combatente… Continuo a ser! Estive na guerra! – Continuei, acrescentando ainda:
– O meu filho tem epilepsia. Olhem por ele! – Era uma desculpa.
Enviado para fazer o electrocardiograma pelo médico que me fez a triagem e, enquanto digo à moça que iria fazer o exame “que tivesse calma, que depois lhe contava uma anedota”, ela gritava:
– Urgente, Urgente...
Sou colocado em cima de uma maca, enquanto digo para a técnica:
– Então não lhe posso contar a anedota?
Sou levado pelo maqueiro para a sala da triagem. Olho para o meu filho com algum receio e conforto‑me em vê‑lo aparentemente calmo e controlado, pedindo‑me as alianças, relógio, carteiras, chaves, enquanto a maca vai deslizando pelo corredor até ao elevador que me transporta ao piso 6, à UTIC – Serviços Intensivos.
Quando a maca está quase a parar, depois de ter batido com as nós dos dedos na última parede, como se costuma ver nas séries de televisão e nos filmes, vejo um médico de barba grisalha, mas mais branca que preta e bata também branca. Sai‑me pela boca:
– Olha quem ele é?!
– Afinal és tu! – Disse o Dr. Nunes Diogo.
– Conhece o Senhor Doutor Diogo? – Perguntou o maqueiro.
– Desde miúdo... – Respondi‑lhe.
Não só o conhecia a ele – até tinha andado a estudar comigo no Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira. O pai dele, Dr. Armando Diogo falava muito comigo quando eu era catraio, nunca cheguei a saber muito bem porquê. Como curiosidade este, foi um dos fundadores do Partido Socialista.
O Dr. Nunes Diogo para mim é o Tó Mané. Depois de me analisar disse que teria que fazer um cateterismo cardíaco, e que talvez se resolvesse o problema. Em caso contrário proporia a operação rapidamente. Apeteceu‑me fumar.
É aqui que fico sem saber onde está a realidade. A partir deste momento, até dia 27 de Março, não sei o que é verdade.
Uma neblina percorre os meus olhos: – Lembro‑me de me enfiarem depois da anestesia, um cateter na virilha, e vejo um coração (o meu) no visor. Não sei em que dia foi. Quando o cateter insuflava sangue observava uma nuvem, respondendo, julgo que em voz alta: – “estou f...”
– O saco de areia! – Ouvi alguém gritar, apontando para mim. Entro noutro mundo.
Fui operado a 15 de Março de 2002 pelo cirurgião Dr. Alberto Lemos; Ajudantes Doutor Manuel Dantas; Anestesista Doutora Ilda Viana; Perfusionista Doutor. Filipe Pereira e Instrumentista Doutora. Conceição Santos.
Tratou‑se de uma Operação: BACx4 (1 c/M.ª Int.ª Esq.ª), Cirurgia de Bypass.
Um sonho? As estrelas – simultaneamente uma árvore de Natal, um presépio – uma amálgama de luzes dispersas, mais parecendo uma cidade vista ao longe numa noite escura.
Estava num campo, com muitas árvores. Viam‑se muitos militares, curiosamente, todos eles velhos. Era uma concentração, talvez até de Associações. Mas estavam mortos, mas vivos nesse mundo onde pernoitava.
– Já escrevi uma carta de amor! – Disse.
– Mas a que escrevi o ano passado está exposta, mas parece que mais ninguém concorre!
Pedi que me trouxessem a minha neta Raquel. Ninguém me fez a vontade.
Está aqui o computador, é um «Plus menos».
Um rapaz apareceu. Não sei de onde… Fez primeiro um serviço de cerâmica antiga, e depois um bolo grande. Tudo num computador. Como se tirasse uma fotocópia. Que foi a nossa delícia! Ele era um artista… Um artista!
Dei ordens para darem ao rapaz algum dinheiro. Fomos até ao rio, que era perto onde um barco a remos nos esperava.
Afinal o rapaz acabou por vir connosco.
Deslocámo‑nos à Sede da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex‑Combatentes Vítimas do Stress de Guerra, tendo sido eu um dos fundadores a 18 de Abril de 1994. Só vi a sede por cima, portanto em corte. Via o tal rapaz sozinho. Fiquei no céu enjaulado. Encaixotado. Só. Preso.
O rapaz até tem alguns dons que devem ser aproveitados, mas peca por não ser lá muito certo. Não tem os alqueires bem medidos. Mas a trabalhar com o computador ele é uma “máquina”.
Estava novamente na Guiné, e voava, ou por outra, movimentava‑me pelo ar rapidamente, com a G3 em punho, matando sozinho uma série de guerrilheiros do PAIGC.
(Comtinua)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 21 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15773: Inquérito 'on line' (34): Sim, "também já passei por uma ou mais situações de doença grave", dizem 48% dos 50 respondentes, até à data. Prazo de resposta: 4ª feira,dia 24, 9h00
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Notas do editor:
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