Sétimo episódio da nova série "Atlanticando-me" do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66).
Talvez lá, como cá!
Quando, numa manhã fria de Janeiro do ano de 1965,
foram dadas ordens a um Esquadrão de Caças F-105 da
Base Americana de Okinawa, no Japão, para que se
transferisse para a Base Aérea de Da Nang, no Vietname
do Sul, para dar cobertura ao Corpo de Marines, que
tinham por missão cruzar o Paralelo 17, que era uma
linha de demarcação militar provisória e desmilitarizada
entre o Vietname do Norte e o Vietname do Sul,
estabelecida na Conferência de Genebra de 1954, que
pôs fim à Guerra da Indochina, embora não coincidindo
com o verdadeiro paralelo, pois no terreno era uma
região um pouco a sul ao longo do rio Ben Hai, na
província de Quang Tri, até à vila de Bo Ho Su e dali para
oeste até à fronteira entre o Vietname e o Laos, foi quase
o mesmo quando anos antes o responsável pelo então
governo de Portugal disse em frente às câmaras de
televisão, referindo-se ao então ultramar que, “vamos
para a guerra e em força”.
Quando no dia seguinte, 49 destes caças levantaram voo
da base de Da Nang, para atacar alvos do Vietname do
Norte, fazendo com que a partir desse dia a guerra não
ficasse mais restrita ao território do Vietname do Sul e, o
primeiro desembarque de 3500 soldados americanos em
Março, naquele território, já se havia transformado em 200
mil, em Dezembro do mesmo ano e, quando em 1973, as
tropas americanas se retiraram do conflito, havia cerca de
58 mil soldados americanos mortos, contudo o conflito
prosseguiu com a luta armada entre o Norte e Sul do
Vietname, que ficou dividido, terminando em absoluto em
1975, com a invasão e ocupação de Saigon, então a
capital do Vietname do Sul e a rendição total do exército
sul-vietnamita, foi quase o mesmo quando os militares de
Portugal, um ano antes, se revoltaram e destituíram o
então governo de Portugal, ficando para trás um número
de mortos, nas então províncias ultramarinas, que nós
pelo menos não sabemos exactamente, mas devia andar
pelas dezenas de milhar, talvez milhões, nas populações
que foram ou viriam a ser afectadas pelo conflito, que
infelizmente foi armado.
Quando terminou o conflito, no caso do Vietname, os
números não eram precisos, mas oscilam entre milhão e
meio a dois milhões de vietnamitas mortos, entre civis e
militares, onde parte considerável desta população era
economicamente activa, que morreu durante o conflito e,
como se compreende, este facto provocou uma grave
crise económica nos anos seguintes ao seu final, além
dos talvez milhões de pessoas, oriundas do Camboja e do
Laos, que foram arrastados para a guerra com a
propagação deste mesmo conflito.
Comparações com a guerra que vivemos em África?
Os números são gigantes, nós chamávamos aos
guerrilheiros “Turras”, os americanos chamavam
"Vietcongs". Este termo, abreviado para "VC", deu origem
ao termo utilizando a fonética militar de "Victor-Charlie"
de onde surgiu o nome "Charlie", também como apelido
aos guerrilheiros, tirando isto talvez houvesse mais
coincidências: na data, no combate e contacto com o
inimigo nas selvas húmidas e pântanos da Guiné, mas em
cenário de guerra não há lá muita comparação, nós
lutávamos com um infinito de dificuldades, tanto em
material logístico, como em alimentação, alojamento,
assistência médica, evacuação de feridos e mortos em
combate, tal como outros motivos de sobrevivência. Valia-nos,
entre outras coisas, um pouco de audácia, coragem
e improviso, em que éramos e continuamos a ser, pelo
menos os que nasceram nos anos quarenta ou cinquenta
do século passado, alguns com a instrução escolar
mínima, um pouco melhor que a média, talvez por sermos
descendentes de diversos povos que em tempos
habitaram a Península Ibérica, que eram sobretudo
guerreiros por natureza.
Nós aprendemos depressa que aquela era uma guerra
que só poderia ter um fim político e não de luta
armada, onde uma faca, por vezes era a melhor arma de
combate e, a pior, no nosso modesto entender, era um
avião. Enquanto os soldados americanos se armaram de
grande poder de fogo, em artilharia e aviação de combate
para destruir as bases inimigas e impedir as suas
ofensivas, pois no terreno praticavam acções defensivas,
deixavam a acção ofensiva para os F-105 e helicópteros
armados, embora eles fossem treinados e instruídos para
guerras ofensivas, os seus comandantes eram psicológica
e institucionalmente pouco qualificados para essas
acções defensivas, no entanto nós éramos treinados
para lutar e ir ao encontro do inimigo, fazer aquelas
incursões no terreno, diárias, ir ao encontro, não
importava se a zona era perigosa e base de inimigos, nós
tínhamos que caminhar por lá, calcar minas e fornilhos
mortais, onde o inimigo usava os segredos daquela selva
e daqueles pântanos em seu favor, onde havia a
necessidade de beber a para nós, “célebre água da
bolanha”, motivo por que hoje começam a aparecer sinais de
doença, como por exemplo, entre outras, o cancro, de que não
se sabe a origem.
Quando o Jack, que nasceu no estado do Wyoming,
depois de fazer dois “tours” de seis meses cada à guerra
do Vietname, regressou ao continente americano,
continuou no Corpo de Marines, seguindo a carreira
militar, pois as suas possibilidades de sobrevivência nas
planícies do Wyoming eram montar um cavalo durante
todo o dia, guardando manadas de vacas ou cavalos,
comendo carne de algum animal que tivesse que ser
abatido, carne essa que podia ser consumida assada ou
seca e curada, para ser comida crua durante sete dias
por semana, tal como o nosso sargento da messe, lá no
aquartelamento de Mansoa, que era oriundo das planícies
do Alentejo.
Quando o Smith, soldado do Alabama, que foi ferido em
combate e transferido para o hospital militar de Saigon,
hoje se faz transportar numa cadeira de rodas, se orgulha
de ser combatente dizendo alto e bom som que não se
queixa do destino, pois criou a sua família e sempre foi
ajudado pelo governo, que lhe proporcionou algum
conforto no meio da sua vida de pessoa com alguma
desvantagem. Ou mesmo o John, soldado ferido em
combate, a quem posteriormente foi amputado um
membro superior, não quer qualquer ajuda, mudando ele
mesmo a roda do seu carro, tal como qualquer João, José
ou Manuel, companheiros feridos nas savanas da Guiné.
Tudo isto companheiros, vem a propósito de que os
soldados americanos regressados dessa guerra, e nós somos testemunhas privilegiadas devido à nossa posição, quando em actividade de
oficial da United Steelworkers, que é hoje o maior
sindicato de trabalhadores de metalúrgica nos Estados
Unidos, porque convivemos durante anos com alguns destes
militares, por vezes mediando conflitos, que embora tivessem
pouca instrução escolar e estivessem um pouco
traumatizados, foram sempre encorajados na procura de
trabalho, na compra de casa e outros bens. Existe mesmo
um Banco dos Veteranos que lhes facilita empréstimos para compra de habitação ou
qualquer outro investimento. Foram sempre preferidos e
respeitados, por vezes bastava-lhes dizer que eram veteranos,
que quase todas as portas se abriam, claro, havia excepções
como em tudo na vida, mas os ainda sobreviventes da
guerra do Vietname têm assistência. Existem os Hospitais
dos Veteranos, localizados nas principais cidades de
quase todos os estados, têm ajudas relativas em algum
caso de necessidade extrema e, acima de tudo,
orgulham-se do seu passado de combatentes. Quando começamos qualquer conversa, as primeiras palavras deles são para dizer que não querem nem
ouvir a palavra, “Vietnam Syndrome”, levantam a cabeça
e dizem bem alto que são veteranos de guerra.
Tony Borie, Fevereiro de 2016.
____________
Notas do editor
1 - Realce do último parágrafo do texto da responsabilidade do editor
Último poste da série de 14 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15745: Atlanticando-me (Tony Borié) (6): Às armas, às armas, contra os canhões, lutar... lutar!
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Tony, talvez não te lembres por seres novo em 1961, mas nessa data Kennedy tentou aliciar Salazar para entregar a solução de Angola aos americanos e aí não era o Sul do Vietnam, mas o Norte de Angola com o seu afilhado Holden Roberto da UPA:
Era outra Coreia e outro Vietnam e nós a ver com a consciência tranquila, penso eu.
Mas claro, eu penso coisas de mais.
Mas gostei de teres comparado as duas guerras, mas qualquer semelhança é pura coincidência, embora as guerras não se meçam aos palmos.
Cumprimentos
Olá Tony,
Só agora li o teu post e também fiquei agradado. As diferenças entre Portugal e os EUA são imensas, mas ambas as nações sofreram baixas nos respectivos efectivos militares em guerra. Os EUA são muito ricos e têm boa capacidade de absorção das suas vítimas, além de que, e não menos importante, dedicam-lhes um especial afecto e reconhecimento pelo sacrificio de cada um em favor da comunidade, da pátria deles.
Aqui as coisas estão mais ou menos resolvidas, apesar de poder haver individuos injustamente recompensados pelo factor C, relativamente a outros com justificado sofrimento, mas a quem a sociedade não proporciona meios adequados de vida. Além do trauma imposto aos combatentes, que em muitas ocasiões são equiparados a odiosos colonialistas.
Aqui a guerra continua, cheia de incongruências na extrapolação dos combates políticos, que geram precoces interpretações de deturpação e ignorância histórica.
Um grande abraço
JD
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