1. Em mensagem do dia 9 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) fala-nos das assustadoras colunas de reabastecimento a Madina do Boé e Béli.
As "viagens" a Madina do Boé e Béli
As colunas de reabastecimento para Madina do Boé e Béli revestiam-se de muita precaução e requeriam uma preparação por parte dos militares que eram escalados para tal missão, que só se atinge ao fim de algum tempo de estadia no teatro operacional.
Mais um dia de azáfama no quartel onde a CART 1742 estava sediada (Nova Lamego) com os preparativos para mais uma viagem até Madina e Béli, para o reabastecimento do pessoal lá instalado que aguardava a nossa chegada ansiosamente.
Mas antes da ida para Madina a Companhia já se tinha deslocado a Bambadinca para carregar os bens essenciais para os transportar e entregar aos camaradas aquartelados nos confins do mundo. Era uma viagem penosa e perigosa, pois requeria a máxima atenção e concentração, que por vezes era feita a corta mato fugindo da picada, o que nos garantia outra segurança.
A caminho de Madina
Dois grupos de combate, dos quais fiz parte, preparados e armados com o que de melhor existia na época, bazuca, morteiro 60, metralhadora MG42, além da nossa amiga e companheira de todas as ocasiões, a G3. Éramos apoiados por uma auto metralhadora Daimler, connosco viajava também o pronto-socorro que no regresso acabou por ser necessário, mas este elemento ficou no aquartelamento do Ché Che por ser demasiado pesado para a jangada que nos transporta para o lado de lá e vice-versa.
Partimos manhã cedo de Nova Lamego rumo ao objectivo, passando por Piche e Canjadude até atingirmos o Ché Che, sem nada de anormal ter acontecido. A travessia do rio Corubal foi feita com o máximo cuidado e segurança, a instalação do pessoal na outra margem ficou pronta por volta das 4 horas da tarde, não sem que antes a aviação fizesse a limpeza da zona bombardeando a área e mantendo a vigilância até ao escurecer, só então retirando-se para a base.
O Rio Corubal no Che Che
Travessia do Rio Corubal
Depois de uma noite passada em alerta permanente, partimos manhã cedo entrando numa zona cujo terreno árido mais parecia uma queimada, mas agora com o apoio dos nossos camaradas da Força Aérea pilotando os Fiat e os T-6, que com a sua presença retiravam ao IN qualquer veleidade de atacarem a coluna ou emboscar e, ao mesmo tempo, mostrando a sua destreza aos comandos das aeronaves. Estou recordando agora um episódio protagonizado pelo piloto Honório, que ao sobrevoar a coluna picou o T-6 rumo ao solo na lateral, passando pelo intervalo de duas viaturas, o que causou na malta júbilo pelo espetáculo proporcionado por esse cavaleiro dos ares, que ainda o recordo com saudade.
Apoio aéreo a uma coluna auto em Madina
Foto: © Manuel Coelho
Entretanto o dia ia avançando e a coluna também, a malta estava ansiosa por chegar ao objectivo, mas um contratempo nos esperava através de um inimigo inesperado, as abelhas, sim abelhas que causaram alguns estragos na caravana, mais propriamente na milícia e nos civis que nos acompanhavam, estes que aproveitavam as colunas para visitarem os familiares. Eu consegui passar através daquele zumbido provocado pelas voadoras, que mais pareciam os Fiat picando sobre a malta apontando os seus rockets prontas a deixarem a sua marca, mas com dizia, passei a zona de morte sem uma picada, pois consegui com ajuda do quiico enterrado na cabeça, cobrindo orelhas, e com o lenço tapando o rosto. Desta vez fomos metralhados de maneira diferente.
Pelo trajecto fomos encontrando os efeitos das anteriores viagens para esta região, viaturas incendiadas e outras minadas, mais parecendo um cemitério de ferro velho, como as fotos documentam.
O cenário que me foi dado observar fez-me pensar quão penoso terá sido para outros camaradas, que como eu tiveram de fazer aquele percurso, sofrendo emboscadas constantes, perdendo homens. Ainda hoje muitos sofrem o trauma de uma guerra que não nos levou a lado algum.
A caminho de Beli
Por fim chegamos ao objectivo e fomos recebidos efusivamente pelos camaradas residentes que nos obsequiaram com um repasto quentinho (bianda com salsicha), acção que nos tocou profundamente. Para quem andava a ração de combate, foi um manjar dos céus.
Depois foi o merecido descanso, mas antes tivemos uma recepção de boas-vindas por parte do IN, já que era habitual enviar as boas-noites com umas morteiradas, mas desta vez não provocaram mossa.
O dia seguinte foi iniciado com os preparativos para o regresso a casa (Nova Lamego), pelo mesmo itinerário, com os nossos amigos da Força Aérea fazendo companhia à malta, atentos lá do alto a qualquer movimentação que fosse nociva à nossa segurança.
E assim atingimos o aquartelamento do Ché Che, local onde pernoitamos após a travessia do rio Corubal, para no dia seguinte retomar a viagem até ao nosso aquartelamento. Antes porém, aconteceram alguns contra tempos, o que provocou entre a rapaziada um sentimento de revolta pelo acontecido, já que a coluna, entre o Ché Che e Canjadude, acionou duas minas anticarro em locais onde nada o fazia prever, mas vamos aos factos.
Coluna auto em Madina
Foto: © Manuel Coelho
O primeiro rebentamento foi provocado pelo rodado dianteiro direito de um unimog, não provocando vítimas nem tão-pouco no condutor que não precisou de ser evacuado e, foi aqui que entrou em acção o pronto-socorro que rebocou a viatura minada suspensa pela dianteira, para uns quilómetros mais à frente acontecer o caso mais grave desta expedição a Madina e Béli.
A dado momento aconteceu novo rebentamento, a auto-metralhadora tinha accionado uma mina anti-carro, cujo rodado dianteiro direito quase me atingia. Desta vez foi trágico, porque o camarada condutor faleceu no local. O inexplicável da situação é que a Daimler acidentada seguia logo atrás da viatura rebocada, que sendo a primeira a passar pela mina, não a accionou, gerando um sentimento de revolta e a pergunta do porquê de os restos do unimog não terem ido pelos ares em vez da Daimler? Tinha que se perder um homem?
Daimler acidentada na estrada Canjadude-Che Che
A guerra é isto mesmo, cruel, assassina, estropia homens que nada tem a ver com ela, mas que são a tal carne que o canhão necessita para júbilo dos Senhores da Guerra.
A CART 1742 mais uma vez contribuiu com o seu sangue, suor e lágrimas para amenizar as agruras que aqueles camaradas passavam naquelas terras de ninguém, e que nos recebiam de braços abertos, o que prova que a solidariedade castrense é das coisas mais lindas que me foi dado apreciar. Ainda hoje comungo esse ideal.
Vivam todos os Combatentes,
Viva Portugal
Nota: A CART 1742 fez mais três colunas a Madina e a Béli.
Abel Santos
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Nota do editor
Poste anterior da série de 17 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15761: Memória dos lugares (334): Fulacunda (Fernando Carolino, ex-alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; natural de Alcobaça, a viver em Valado dos Frades, Nazaré)
1 comentário:
Viva, caro Abel Santos
Excelentes fotografias e excelente descrição do que eram as colunas a Madina Boé, Che-Che ou Beli.
No meu tempo, finais de 1969, já abandonadas aquelas Tabancas do lado de lá do rio Corubal, também a minha CART 11 andou por aquelas paragens, quando fomos fazer segurança à montagem de minas próximo do rio. Também deparamos com vários trilhos e várias 'carcaças' de viaturas abandonadas.
Toda aquela ambiência da guerra, bem merecia um filme pelo menos para toda gente, os
mais velhos e os mais novos, ver o inferno em que andamos metidos.
Grande abraço
Valdemar Queiroz
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