1. Mensagem de Manuel Maia (*), ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 11 de Junho de 2009:
Caro Vinhal,
Junto envio este texto para enquadrares onde entenderes.
MAU GRADO OS 39 MESES DE TROPA, FUI CONSIDERADO DESERTOR...
Encarei o serviço militar como uma inevitabilidade a que não me devia eximir já que não tendo própriamente apetência para herói, também não me via na miseranda pele de refractário, ou, pior ainda, na asquerosa figura de desertor como alguns figurões deste Portugal, a quem alguém chamou amordaçado, mas que eu rotulo de enxovalhado, a carecer duma expurgação de todos esses vampiros, chacais e abutres que lhe sugaram o sangue e esventraram entranhas...
Seria na perspectiva de quem não gosta de fardas, que interiorizei a passagem pelo serviço militar como um acidente de percurso.
Quando assentei praça no RI5 da bela cidade de Bordalo, sabia por amigos que por lá tinham passado, que ou virava chico devorando toda aquela prosápia do conhecimento livresco da arte bélica com as mais estapafúrdicas tácticas, para debitar depois a informação balística e mostrar conhecimento armamentista - de cor e salteado - tendo por objectivo conseguir uma nota de curso muito alta que me pusesse a salvo de uma mobilização individual, ou então, a mais óbvia, e que se enquadrava mais comigo, aceitando, sem violentar em demasia a minha sólida aversão a fardas, que continuaria a ser um civil com aquela obrigatoriedade, por isso, quanto mais cedo, melhor...
O expectável, na altura era ainda de 18 meses (para passar depois a 21, tendo este vosso camarada permanecido exactamente um quarteirão deles...)
Vingou portanto a segunda tese. Assim, como primeira medida para nunca ter a tentação de consultar uma que fosse das obras de cariz bélico que me forneceram logo à chegada, amarrei-as bem com corda e coloquei (aquele, para mim, indesejável conhecimento armamentistista, táctico, balístico...) bem fechadinho dentro do armário, não fosse perder-se alguma...
Devo dizer-vos, sem pejo nenhum, que já passava muito mais de mês da minha presença em terras de Malhoa, quando pressionado por camaradas temerosos por qualquer porrada que pudesse apanhar, acabei por fim defazer a primeira continência.
Até aí conseguira sempre esquivar-me a esse acto de que não gostava.
Veio Tavira - C.I.S.M.I. - num quartel (antigo convento) em obras, implicando que uma boa parte dos instruendos pudesse ter autorização de pernoitar fora.
Alugámos um quarto (mais propriamente a sala de jantar de uma casa modesta onde os proprietários plantaram quatro camas, encavalitadas duas a duas,(oriundas, da tropa, mas com uma operação de maquillage numa repintura branco hospitalar...) tendo ainda direito a tratamento da roupa (estávamos impossibilitados de ir a casa de fim de semana, que ali acontecia só ao sábado de manhã.
Paralelamente, e como éramos quatro, as hipóteses de casamento para a neta perdida iam ganhando algum alento, sendo que a moça quando pressentia algum de nós no quarto, arranjava sempre uma justificação qualquer para ter alguma coisa que fazer ali, trazendo roupa engomada... desculpe que vinha fazer a cama... fazendo alarde de uns decotes generosos...
Nenhum de nós casou na parada, mas era comum acontecer e o Comandante da Unidade no discurso de boas-vindas alertava para o facto...
O Algarve dessa altura já tinha muito turismo, com os reduzidos biquinis das inglesas e holandesas, a fazerem arregalar a vista ao militar...
De lá rumei a terras de Viriato largando a diagonal vermelha dos ombros por troca com as também vermelhas de Cabo Miliciano (mais uma invenção portuguesa como o nónio do Pedro Nunes ou a quilha das caravelas p´ra vencer o Atlântico em substituição da chata do mais calmo Mediterrâneo até aí conhecida) NENHUM EXÉRCITO DO MUNDO tinha ou teve Cabos Milicianos...
No RI 14 tive um episódio digno de figurar no anedotário nacional ou como sketch de um filme cómico...
Era usual o Sargento da Guarda (profissional) desenfiar-se para ir dormir a casa com a família (nada de mais justo, afinal a guerra daqui era de brincar...). No seu lugar ficava depois da formatura de recolher um dos Cabos Milicianos de serviço com Sargento de Dia à Unidade.
Um dia estava este vosso camarada a dormir ferrado, já de madrugada num catre igual aos da cadeia, ali ao lado, quando disparou o alarme numa barulheira infernal...
Foi um espectáculo verdadeiramente circense com tudo quanto era gente a correr para os locais de defesa, como se porventura o inimigo estivesse ali, para tomar as terras de Viriato...
Sem saber exactamente o que fazer, deambulei por ali a ver no que davam as modas, até que após um bom pedaço de tempo, de telefonemas para a Casa da Guarda a que eu ou um dos Cabos RD que ali estavam, íamos pondo água na fervura sobre a invasão...
Não se via inimigo nenhum, há muito que os espanhóis haviam perdido a ideia expansionista, os ciganos de então não se atreviam (já não diria o mesmo agora, quer sejam ciganos ou outros quaisquer... não, não é xenofobia...) portanto a guerra não era concerteza nem mesmo que a do Solnado se tratasse...)
Entretanto clareou, e os ânimos serenaram...
Ensaio não fôra, portanto o Comandante, um homem carregado de dragonas nos braços do casacão preto cheio de bordados que víamos às vezes quando requeria um grupo de recrutas para lhe varejarem e colherem a azeitona da sua propriedade na zona, usando naturalmente a mão de obra gratuita os carros e combustível da tropa (isto não é para aqui chamado...) o Comandante chamou aqui esta vosso camarada ao seu gabinete e disparou:
- Que estás aqui a fazer? Chamei o Sargento da Guarda!
Enchendo-me de brios do alto das minhas vermelhas divisas, numa posição de sentido que faria invejar qualquer profissional, especialmente os que faziam gala na cagança (era este nome que davam àquela sequência toda de bater com os calcanhares um no outro para gerar uma sonora pancada, fechar os punhos lateralmente, atirar com o peito para fora, qual galo de Barcelos no acto da cantoria...) e numa voz tronituante respondi:
- Saiba Vossa Excelência, meu Comandante que quem se encontra de serviço como Sargento da Guarda desde o toque de recolher até à alvorada sou eu próprio, Cabo Miliciano 08865271, hoje também Sargento de Dia à Unidade da 2.ª Companhia de Instrução.
- Mas... para quem não gostava de fardas, desenrascaste-te bem - dirão os mais afoitos...
O homem gostou.
Pôs-me à vontade, expliquei-lhe que não havia sido o autor do aviso de guerra e o electricista do quartel haveria de explicar-lhe que se tratara de um curto circuito...
Vai daí, o comandante acabou com todo aquele mise-en-scène, e acabaria por dar uma porrada ao Sargento...
De Viseu haveria de rumar para a cálida planície alentejana (como vêm fiz uma autêntica volta a Portugal nesse meu mourejar interno antes do embarque para a Guiné).
Ao invés de ir de combóio, como acontecera aquando da viagem para Viseu que demorara desde Pedras-Rubras, 14horas (sim leram bem catorze horas, tive de fazer dois transbordos e esperar umas horas em cada um deles, para cobrir cento e poucos quilómetros na linha da Beira Baixa), aproveitei e fui no carro do Barbosa de Ermesinde que acabaria por ir para o Biambe, e com o Maia de Coimbra, que iria para Encheia, onde permaneceria pouco mais de sete meses até à evacuação para Lisboa motivada pelo tiro que apanhou de ricochete na cabeça).
(Envio-vos daqui um abraço pois estou certo que seguis esta nossa tabanca)
Pois essa Yeborah mourisca, de que tanto gosto, recebeu-nos no RI16, outro antigo convento (para quem não professa nenhuma religião parece uma espécie de perseguição...) e dali haveríamos, Batalhão formado, de rumar à nossa Guiné.
Aqui, passadas as passas (não do Algarve pois as de Tavira, como vos disse, até nem foram nada más, antes pelo contrário, mas... as africanas, como todos vós mais ou menos passastes, com períodos em Bissum/Naga, Cafal Balanta (naquele belo edificio que tive oportunidade de vos mostrar no poste 4481), Cafine, ali ao perto, escassos 2 km, mas vivendo em tendas (como se na praia nos encontrássemos, dando assim à comissão uma vivência de férias...), para finalmente me quedar por Fatim, destacamento do Dugal, perto de N´Hacra.
Regressado, ao fim de uns dias (aqui vem finalmente a razão do título do escrito...) dei entrada no Hospital Militar do Porto com problemas estomacais sérios.
Fui visto pelo Dr. Barbosa Leão (já vos explico porque fixei este nome...) que me haveria de internar.
-Tenha paciência doutor, mas internar, nem pensar. Farto de tropa estou eu. Moro aqui perto, Pedras-Rubras, posso deslocar-me facilmente.
-Sendo assim, terá de preencher um formulário de pedido de pernoita fora. Por mim não ponho obstáculos.
Entretanto após diagnóstico haveria de me receitar dois medicamentos que não poderiam ser tomados isoladamente (presumo que um deles, porventura deveria ser uma espécie de protector para o estômago...).
Desloquei-me à farmácia, mas só havia um que trouxe, ficando depois de ir ligando para saber quando chegaria.
Óbviamente, desandei, e de quando em vez lá ligava, mas a resposta era sempre a mesma, terá de aguardar...
A consulta desse médico era às quartas. Ainda fui a uma outra para tentar tomar uma beberragem que permitisse a detecção da extensão do problema via Raio-X (ou outro qualquer...), mas não consegui porque vomitava de imediato.
A solução passava por ir aguentando até à chegada do medicamento.
O tempo rolou, e uma bela quinta-feira, estando a 100 kms de distância em casa de familiares, recebo um telefonema muito preocupado da minha mãe a dizer-me que haviam ligado do hospital considerando-me desertor.
-Apresenta-te hoje ou amanhã, dissera, aflita...
-Não se preocupe! Eles não me prendem!
Segunda-feira, este vosso camarada, por volta das dez da madrugada, deu entrada no HMR 1 do Porto.
Dirigi-me à enfermaria, perguntei ao Sargento de serviço o que se passava comigo para me ameaçarem daquela forma...
Quando se apercebeu que era eu, o sargento disse-me:
- Estás f..... pá!
- F.... porquê meu primeiro?
- Por onde tens andado? Já por várias vezes todo o mundo pergunta por ti e ninguém te conhece. Se calhar vais de cana...
-Isso é que era bom! Não se preocupe Primeiro, porque eles p´ra guerra não me mandam mais, pois faço-lhes um manguito...
-Vê lá se atrranjas um pijama.
-Um quê?
-Um pijama, pá. Estás internado tens de andar de pijama e apresentar-te assim...
-Não me lixe, meu Primeiro, não me lixe... Nem que a vaca tussa, eu não vou falar com o Comandante de pijama.
Arranjei umas calças, por sinal curtas e apertadas, uma camisa, uma boina, e... já ia.
Diz-me o sargento:
- E as divisas? - Eu dava tanta importância àquilo que até me esquecia do seu uso...
Arranjei umas de um Furriel internado, coloquei-as, e de novo o Sargento me chamou a atenção:
- Olha lá, olha lá pá, o Furriel agora tem as divisas ao contrário. São com o bico para cima.
- Ou me aceitam de bico p´ra baixo, ou nada feito.
E assim foi. Bati à porta do gabinete do Comandante e acto contínuo acompanhando um simples dá licença, entrei... boina na mão para não ter de fazer saudação militar, pudera eu sentia-me civil...
- Quem és tu?
Lá me apresentei e disse:
- Andam para aí a chamar-me desertor...
- E és. Já estás desenfiado há mais de quinze dias.
- Isso é que era bom! Eu falei com o Dr. Barbosa Leão e ele disse que podia dormir em casa.
- Não assinei nenhum pedido.
- Na altura quando quis fazer o pedido, não havia ninguém na secretaria e como tinha mais que fazer...
- Onde estiveste?
- Vim da Guiné.
- Pronto, pronto, vai à tua vida e trata lá disso.
Eu que não suporto desertores fui-o considerado um dia!
Um abraço a toda a tabanca
Manuel Maia
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)
Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4414: Destas não reza a História (Manuel Maia) (2): Quem matou Inesa?
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Manuel Maia
Tem toda a razão no que diz na 1ª parte do seu poste. Mas a culpa no fim até nem foi deles.Foi das altas
patentes que os receberam como Heróis.
Heróis de quê. Se não fossem as Forças Armadas, como é que esses Heróis faziam a revolução?
Não haveria cá nesta terrinha pessoas competentes para Governar?
Parece que não e o que aconteceu e
continua a acontecer é Governarem-se
Armandino Alves
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