quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8830: Notas de leitura (278): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte I) (Luís Graça)


1. Não sei se é caso único, mas tem contornos algo insólitos: em 1965, o nosso camarada Armor Pires Mota, alferes miliciano, recém-regressado da Guiné [, foto à esquerda], publica em livro um conjunto de crónicas ou de excertos do seu diário de guerra, incluindo um relato relativamente circunstanciado da famosa Operação Tridente (ou batalha do Como, como lhe chamava o PAIGC), operação essa que decorreu entre 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964, na ilha do Como… 

Diga-se, de passagem, que aquela foi a maior e a mais longa operação,  realizada pelas nossas tropas no TO da Guiné, no decurso da guerra (1963/74),  mobilizando cerca de 1200 efetivos, dos três ramos das  Forças Armadas. Já tivemos, de resto,  o privilégio de aqui  publicar, na I Série do nosso blogue, o depoimento, em primeira mão, de um dos mais experimentados combatentes  dessa longa e penosa batalha, o então Fur Mil Comando Mário Dias (Brá, 1963/66) (*).


O livro chama-se Tarrafo, é editado (ou melhor impresso) pela Gráfica Aveirense, Aveiro, em Outubro de 1965. (Em rigor, trata-se de um edição de autor). Está dividido em três partes e tem 158 páginas. A primeira parte vai da página 11 (Bissau, 25 de Junho de 1963, cinco meses depois do início da guerra) até à página 43 (Bissorã,  12 de Dezembro de 1963).

Nesse espaço de tempo, o autor (e a subunidade a que pertencia, a CCAV 488), esteve na região do Oio, passou por Mansodé (onde teve o seu batismo de fogo, em 11 de Agosto de 1963), Mansabá (Outubro/Novembro) e depois Bissorã (Novembro / Dezembro de 1963). 

A segunda parte (pp. 47-85) reporta-se à sua participação na Op Tridente (Como, de 15 de Janeiro a 15 de Março de 1964). O Alf Mil Cav Mota e o seu grupo de combate fazia parte da CCVA 488, indo integrado no Agrupamento B,  juntamente com o 8º Dest de Fuzileiros Especiais (que era comandado pelo então 1º Ten Alpoím Calvão).

Na terceira e última parte (pp.89-154), Armor Pires Mota relata a sua experiência operacional (e humana) no norte da Guiné, na região de Farim, entre Maio de 1964 e Junho de 1965. Neste período de tempo, passou por Bafatá, Sitató,  Lamel, Jumbembem, Farincó Mandinga, Canjambari, Fambantã, Cuntima, Sulucó… A última crónica é de Jumbembem, 11 de Junho de 1965 (pp. 153/154).

Ao que sabemos, estas crónicas tinham sido publicadas previamente, por episódio, cronologicamente, no Jornal da Bairrada de que o Armor Pires  Mota virá mais tarde a ser chefe de redação… Como classificar este livro ? Em que  género literário encaixá-lo ? Não é romance, não é ficção, não é jornalismo... Está próximo de coletânea de contos,  de short stories... Ou, se quiserem, da literatura memorialística...


Onde está, entretanto,  o caso ou o insólito do caso a que me referi no início deste poste ? É que o livro foi imediatamente retirado do mercado, por iniciativa direta da polícia política de então ou, possivelmente, alertada por algum censor mais sensível ao efeito “dissolvente” (como então se dizia…) e “desmoralizante” que a leitura do livro poderia ter nos mais incautos e jovens leitores portugueses (bem como nos seus pais, preocupados pela mobilização crescente dos seus filhos para os longínquos teatros de operações de África: Angola, Guiné e Moçambique),  face à realidade nua e crua da guerra da Guiné, tal como era descrita, pela primeira vez, na primeira pessoa do singular, e para mais com o inegável talento de um jovem e promissor escritor, nascido e criado na região da Bairrada…


Dedicatória a um amigo açoriano (?), com autógrafo... Tarrafo, 2ª edição, 1970... Livro comprado há alguns anos,  em segunda mão, numa feira dos usados...


Não estaria em causa, na época, o inquestionável patriotismo do autor nem sequer a sua fé inabalável na justa causa portuguesa, em terras da Guiné, cobiçadas por potências estrangeira que financiavam e instrumentalizavam os “turras” ou "bandidos" do PAIGC… 

Aliás, o livro  começa por ser dedicado “ao rude, mas heróico soldado português, sempre pronto  para todos os sacrifícios”, bem como ao tenente coronel FernandoCavaleiro, que comandou as forças terrestres na Op Tridente e que é descrito nestes termos: "audacioso, de pulsos de ferro, de têmpera mais vale quebrar que torcer ". Era, de resto, o comandante do BCAV 490, a que pertencia a subunidade do Armor Pires  Mota (CCAV 488). 

É também dedicado aos seus "pais e irmãos" bem como à "minha madrinha de guerra que sempre teve uma palavra de conforto para cada angústia,  uma frase de humor para cada dia de tédio e uma rosa para cada ferida"... 

O insólito, para mim,  está no aparecimento, cinco anos depois, de uma 2ª edição do livro, revista, (não se trata de simples reimpressão...), com a indicação explícita de se tratar da “2ª edição, autorizada” (sic).  Não se percebe de quem vem a autorização: a Direção dos Serviços de Censura, a PIDE/DGS, o Exército ?...

A editora é, desta vez, a Pax Editora, de Braga, ligada à Igreja Católica.  O autor, antigo seminarista, mantinha-se próximo dos meios católicos da época, e tudo indica, alinhado política e ideologicamente com o regime de então. Na apresentação do livro, João Bigote Chorão, crítico literário e ensaísta, escreveu:

(...) " No sofrimento e no sangue nasceu-nos um escritor, Armor Pires Mota,  cronista de uma aventura e poeta de uma epopeia onde o nosso destino se joga - e onde todos nos podemos perder ou salvar". (...) 

O livro já aqui teve, no nosso blogue, uma primeira recensão, da autoria  do Beja Santos (**), que não poupa elogios ao autor e à obra, "primeiríssimo relato literário da guerra da Guiné":

(...) "Tarrafo surpreende, 45 anos depois: pela sinceridade, pelo registo inocente, pela dureza da aprendizagem. E chegamos a Janeiro de 1964, o autor vai viver a batalha do Como, legou-nos páginas densas, emocionantes, estranhamente esquecidas" (...) (**).

Armor Pires Mota foi, de facto,  durante muito tempo esquecido e injustiçado, figurando hoje entre os nossos escritores da guerra colonial, de primeiríssima água (se considerarmos a sua obra decisiva, o romance Estranha Noiva de Guerra, de 1995).

E no entanto o seu nome não consta sequer da pioneira antologia,  editada pelo Círculo de Leitores,  em 1988,  sob a direção literária de João de Melo: Os anos da guerra...  [, vd. foto da capa, à direita]. O escritor açoriano e ele próprio ex-combatente, em Angola, considerava na época o Armor Pires Mota como um mero cronista 'patriótico'.

Eis a referência bibliográfica, relativa a Tarrafo, que consta do catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal,  obtida através da pesquisa na Porbase, onde o autor tem o número invejável de 28 registos (entre títulos de poesia, ficção, crónica e investigação historiográfica):


Tarrafo / Armor Pires Mota


AUTOR(ES): 
Mota, Armor Pires, 1939-
PUBLICAÇÃO: 
[S.l. : s.n.] 1965 ( Aveiro: -- Gráfica Aveirense)
DESCR. FÍSICA: 
158, 1 p. : il. ; 21 cm



Tarrafo / Armor Pires Mota


AUTOR(ES): 
Mota, Armor Pires, 1939-
EDIÇÃO: 
2ª edição autorizada
PUBLICAÇÃO: 
Braga : Editora Pax 1970
DESCR. FÍSICA: 
244, 18 p. : il. ; 21 cm
NOTAS: 
Tiragem 3000 ex.




2. Da primeira edição (esgotada) possuímos um exemplar fotocopiado, gentilmente oferecido pelo seu autor ao nosso camarada Beja Santos, e que faz parte atualmente do espólio da biblioteca (em construção…) da Tabanca Grande (, alimentada com os livros  que são objeto de recensões publicadas no nosso blogue).



O documento que possuímos tem a particularidade de ser fotocópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro. Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” e, ainda mais interessante, inúmeros parágrafos e frases  sublinhados,  possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção. Não sabemos se são do próprio autor ou dos seus “censores"...

Por exemplo,  na 2ª edição, o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões que só podem ser entendidas como sendo de "segurança militar"  (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… O mesmo se passa com alguns topónimos e datas (não se percebe porquê, já que outros ficaram…).


A edição de 1970 tem o mesmo título (Tarrafo) mas mais páginas (244 pp.).  É ilustrada com 22 fotografias, a preto e branco,  legendadas, mas algumas das quais não têm nada a ver com a época (1963/65) em que o autor esteve na Guiné. 

É o caso, por exemplo, da foto nº 17, que tem a seguinte legenda: “17. Homens de outros países no auxílio ao terrorismo internacional. O capitão cubano Juan Jimenez Peralta”. [ Possivelmente tirada no Hospital de Santa Maria, Lisboa, 1970]. 

O mesmo se passa possivelmente com fotos de armamento pesado, de origem soviética ou checa, apreendido ao PAIGC em data posterior a 1965 (por ex., foto nº 8).


O livro de 1970 mantém sensivelmente a mesma estrutura (3 partes, a saber:  1. No coração do Oio; 2. Sul; 3. Norte. Há, no entanto, novos episódios, nas partes 1 e 3).

3. Pergunta-se: A que é que os “censores” eram/são mais sensíveis, em tempo de guerra ?

Como é sabido, no Estado Novo,  os livros não eram sujeitos a censura prévia  (contrariamente à  imprensa escrita e ao teatro) mas podiam ser apreendidos depois de publicados,  tarefa essa que incumbia à PIDE (mais tarde DGS), com  mandados de busca às livrarias, tipografias e bibliotecas.


 Os censores, da Direcção de Serviços de Censura (por sua vez dependentes do Serviço Nacional de Informação) eram, conhecidos (e temidos) pelo famigerado "lápis azul”, com que cortavam textos (dos jornais ao teatro de revista), muitas vez cega e arbitrariamente… Alguns censores eram militares, e a sua formação muito heterogénea. 

Quanto aos critérios da censura, não eram de modo algum uniformes. Havia, contudo,  censores mais permissivos do que outros, conforme as regiões do país.  É bem possível que o Armor Pires Mota, pelo contrário,  tenha apanhado um censor de Coimbra para quem o tema da guerra era tabu…(Eu, que fui jornalista da imprensa regional, nessa época, sei do que falo).


Também é verdade que o tema da guerra estava ao rubro, em 1965, na sequência da atribuição, pela  Sociedade Portuguesa de Escritores, do  Grande Prémio de Novelística  ao escritor Luandino Vieira, pelo seu livro Luuanda. Recorde-se que Luandino Vieira (nascido em Vila Nova de Ourém, em 1935, radicado com os pais em Angola desde os três anos e militante do MPLA) cumpria, então, uma pena de 14 anos de prisão, no  Tarrafal,  sob a acusação de terrorismo.





Excerto de Tarrafo, 1ª edição, 1965, p. 15 

Na sequência da decisão do júri que atribuiu o Prémio, a referida Sociedade Portuguesa de Escritores foi extinta, por despacho do Ministério da Educação, e a sua sede assaltada e vandalizada, em 21 de Maio de 1965. Membros do júri  - entre eles o respeitável João Gaspar Simões (1903-1987) - foram detidos e interrogados pela PIDE. A notícia, além disso, foi proibida em todos os jornais.  

Não sei se há mais livros, sobre a guerra colonial,  anteriores ao 25 de Abril de 1974,  que tenham sido objeto de censura e/ou de apreensão. O caso do Tarrafo parece-nos paradigmático.  Mas, no final, ficamos sem poder responder cabalmente à pergunta: a que é que os “censores” eram/são mais sensíveis em tempo de guerra ?



A título de amostragem, e num primeiro resumo, pode-se dizer que os censores (ou o censor...) querem esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo,  a situação das crianças de Bissau bem como a prostituição ou a miséria em que os guineenses vivem em Bissau ou no mato, tal como era descrita de relance pelo autor, um jovem de sólida formação cristã e de indesmentível portuguesismo, chegado à Guiné em Junho de 1963… 

Querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos nossos soldados debaixo de fogo… Preocupam-se com a "moral" da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou subvalorizar a força do inimigo... Como em toda a parte do mundo e em todas as épocas, o censor (político, militar, literário...)  sofre, antes de mais, de um problema de dissonância cognitiva…

Topónimos e datas eliminados na 2ª edição (1970)

Citem-se alguns exemplos (retirados da 1ª edição, 1965), reportados a três episódios ou crónicas:

- Ruas sem poesia (p. 22): Eliminada a referência a “Bissau, 25 de Junho de 1963”.

- Batismo de fogo (p. 30): Cai a menção a “Mansodé, 11 de Agosto de 1963”

- Sobrevivência (p. 90): O episódio deixa de ser localizado e datado (“Como, 16 de Janeiro de 1964”).

Vejamos ainda  algumas descrições (da edição de 1965, que desaparecem na edição de 1970):

“Nas ruas, tristes, como elas, brincam torrentes de crianças, semi-nuas, em altos berros: correm, saltam, olham-me curiosas. Alegres como pássaros livres, sem saber se lhes falta pão ou justiça” (p. 12).

“No Copilão, a noite, como de costume, vai ser de orgia intensa e frenética. Estranha conceção de moral. Por vezes, o dinheiro  - preço baixo de carne emprestada aos homens brancos ou de cor  que julgam apagar tristezas e desgostos, chafurdando no prazer – reverte em favor da família. As filhas chegam a entregá-lo aos pais” (p. 13).

Veja-se,  por exemplo, este diálogo entre o narrador (o alferes) e o Teodomiro (soldado), no dia do batismo de fogo, mês e meio depois da sua chegada ao TO da Guiné (p. 15): 

(…) – Descansa que não mataste nenhum inocente. Quem vive em casa de mato tem o rótulo… Não sejas idiota! Um soldado não deve ter um coração de pedra. Mas também não deve ser um medricas.
- Eu sei. Mas matar custa-nos sempre. (…)

Na segunda edição o diálogo foi reformulado e a última frase (... matar custa-nos sempre) desapareceu…

O comportamento debaixo de fogo também está na mira dos censores, obrigando o autor a reformular o parágrafo:

“Olhei. O Américo, que gritara, tinha desaparecido para trás. E cada qual teve a sua reação natural. Uns meteram a cabeça no chão e ficaram quietos como um coelho, Outros, de arma na cara, faziam pontaria. E não faltou até quem estivesse a ver milhares de bandidos, imaginariamente” (p. 15)…

No total, contei mais de uma centenas de parágrafos ou frases “censurados” (que interpreto como cortes ou sugestões de reformulação), marcados a lápis (com um ou outro, raro, comentário, ilegível na fotocópia): 

Parte 1  (pp. 1-43) – 23 “marcas”
Parte 2 (pp. 47-89) -  32 “marcas”
Parte 3 (pp. 89-154) – 50 “marcas”

(Continua)


[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico... Com um abraço de apreço e camaradagem ao Armor Pires Mota, a quem convidei, em tempos, pessoalmente,  para integrar a nossa Tabanca Grande... Convite que ele agradeceu amavelmente, mas ao qual nunca chegou a dar resposta...  Lourinhã, Agosto de 2011. L.G.]
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:
 15 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias) 

16 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias) 

17 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)


(**) Vd. postes de:
 

22 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5687: Notas de leitura (56): Armor Pires Mota (1): Tarrafo e Baga-baga, duas surpresas de um combatente repórter (Beja Santos)
 

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)
 

(***) Último poste da série:

26 de Setembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Antº Rosinha disse...

Luis, como falas no Luandino Vieira, gostava de emitir uma opinião própria sobre este emigrante português, que, como milhares da geração dele fomos para Angola.

Este José de seu nome, escreveu "Luuanda", que não sei se foi com este livro que venceu o tal prémio da Sociedade de escritores, mas foi sem dúvida o livro que mais o fez sobressair como escritor.

Talvez poucos o terão lido, mas é inimitável a escrita que ele pratica neste livro,pois procura escrever tal qual como falava ele em criança e jovem no ambiente em que foi criado, convivendo com os putos dos muceques de Luanda.

Que é uma maneira muito peculiar de pronuncia e invenção de frases, que os angolanos praticam com uma imaginação que chega ser mais fertil que os cariocas do Rio.

Os luandenses nascidos ou criados como ele em Luanda, tinham "peneiras" que o português deles era mais correto do que o dos caputos (tugas).

Penso que os angolanos ainda continuam a resistir ao acordo ortográfico.

A propósito de censura, este livro de Luandino apareceu à venda em Luanda livremente, não sei se foi descuido da PIDE.

Este José rejeitou recentemente o prémio Camões.

Este José é um poço de contradições.

Acho que teve o papel muito importante na luta colonial e anti-colonial.

Só falo do que vi e pressenti.

Luís Graça disse...

António Rosinha: Quando li, há muitos anos, o livro, foi uma verdadeira revelação... Fiquei fascinado pela escrita do homem... Ele abriu, de fato, a porta a outros escritores talentosos de que se orgulha hoje o nosso património lusófono... Aqui tens um bom resumo do Luuanda:


Luuanda

Luuanda (1963), da autoria de Luandino Vieira (1935-), é uma obra histórica, vista como um autêntico livro de rutura, rutura com a norma portuguesa.
Pelo seu cariz inovador, mereceu o reconhecimento geral e foi galardoado com dois importantes prémios - 1º Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga, atribuído em Luanda em 1964, e o 1º Prémio do Grande Prémio da Novelística, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, em Lisboa, em 1965.
Luuanda é composto por três histórias - ou "estórias", como o próprio Luandino Vieira gosta de as retratar: "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", "A estória do ladrão e do papagaio" e "A estória da galinha e do ovo".
Todo o texto de Luuanda apresenta-se com uma forte dramatização, teatralização, onde toda a narrativa nos descreve e dá a conhecer o espaço angolano, sempre em contraste absoluto com o espaço do homem branco - os prédios, as casas, as ruas asfaltadas e limpas, o espaço claro e arejado.
As "estórias" de Luuanda retratam as coisas do dia a dia dos musseques angolanos: as histórias das famílias, o ambiente caótico, de confusão, que a própria arquitetura do musseque representa; o confronto de ideias e comportamentos entre novos e velhos e entre pretos e brancos que lá entravam por diversos motivos: inspecionar os andamentos, cobrar as rendas, policiar os desacatos, etc.
Ao falar deste dia a dia, deste quotidiano angolano em todos os seus aspetos, com todas as suas misturas, com todas as suas vivências diárias e mais banais, Luuanda vem às bancas marcar o início do estabelecimento de uma norma angolana - já não a norma portuguesa.
De facto, é o mais perfeito espelho do início de uma escrita tipicamente angolana, e Luandino Vieira é o mestre que lança as bases de um texto de e para a vida angolana: as "estórias" são a vida típica do musseque de Luanda, as personagens são o retrato fiel dos homens, mulheres e crianças angolanas - a prostituta, o merceeiro, as crianças na rua, os animais, os donos dos musseques, os velhos sábios, etc. -, as questões tratadas são as que aquele povo sente e vivencia no seu dia a dia - os confrontos de gerações (os mais velhos são os mais sábios; os mais novos estão em estado de aprendizagem), as dúvidas, os desejos de um mundo mais igual.
Para retratar tudo isto em Luuanda e com o intuito de finalmente dar voz aos angolanos, Luandino Vieira funda uma nova linguagem onde se mistura o português com inúmeras palavras e expressões em quimbundo. Só falando a mesma linguagem o texto teria acesso ao homem do musseque; só falando a mesma língua a mensagem a passar teria significado. Se havia que falar das coisas angolanas e dar voz àquele povo, então que fosse na sua língua própria, numa linguagem que eles reconhecessem e com a qual se identificassem.
Ao lermos Luuanda percebemos que a linguagem utilizada é híbrida, mistura entre o português e o quimbundo, porque assim é o homem de que Luuanda fala: é angolano, mas está perfeitamente influenciado pelo português colonizador.

(Continua)


Luuanda. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-09-28].
Disponível em http://www.infopedia.pt/$luuanda>.

Luís Graça disse...

resumo de Luuanda:

(...) Assim sendo, Luuanda mostra-nos exatamente esta mistura de dois mundos:
- o português é a língua dominante e bem estabelecida, utilizada pelas personagens que representam os colonizadores - os administradores portugueses, os comerciantes dos musseques, os patrões;
- o quimbundo é a língua do povo do musseque, nas suas conversas, nos seus apartes e nos seus contos.
Para além deste grande tópico da nova linguagem, temos também acesso a outras duas grandes dicotomias que estruturam o processo textual deste grande escritor angolano:
- a VERDADE e a MENTIRA: a Verdade do povo angolano é aqui refletida pelas suas fábulas, as suas crenças e os seus ensinamentos; a Mentira é revelada pela presença e descrição de uma civilização que procura, constantemente, afundar as raízes de identidade própria de Angola e implantar a lei portuguesa.
- o PASSADO e o PRESENTE: o texto mostra-nos claramente o crioulismo vivencial do antigamente - a sã mistura dos homens angolanos e a sua paz quotidiana - contrastando com o racismo existente nos tempos modernos.
Luuanda foi, assim, um claro prenúncio de uma literatura angolana autêntica: lança uma revolução na linguagem literária; apresenta-nos uma autenticidade cultural; fala-nos das massas populares; fixa, enfim, a realidade de Luanda.

Luuanda. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-09-28].
Disponível em http://www.infopedia.pt/$luuanda>.

Luís Graça disse...

Rosinha:

O que eu não sabia é que o livro já tinha recebido antes um importante prémio, em 1964, em Angola, o Prémio D. Maria José Abrantes Mota Veiga...

A "maka" só aconteceu em 1965, em Lisboa, quando foi atribuiído o Grande Prémio da Novelística, pela Sociedade Portuguesa de Escritores...

Vivíamos em planetas diferentes ? Tu estavas lá... Kandando. Luís

antonio graça de abreu disse...

Pois é, rejeitar o prémio Camões, talvez o maior prémio da cultura portuguesa. Em nome de quê?
O prémio creio que são cerca de 100.000 euros. Rejeitá-lo é rejeitar 100.000 euros. Bastava aceitá-lo.
Com 100.000 euros quantas escolas
se poderiam construir em Angola?
Ou é melhor o exílio voluntário de Luandino Vieira, em Vila Nova da Cerveira,na sua torre de marfim, nada preocupado com, por exemplo,ajudar as crianças da Angola.

Abraço,

António Graça de Abreu

Luís Graça disse...

O "Tarrafo" está esgotadíssimo. Muitos dos nossos camaradas gostariam de poder ler este livro, de prosa chã, escrito com garra e grande sensibilidade humana por combatente que atravessou o coração da guerra (Óio, Como, fronteira norte...), nos anos de brasa de 1963/65...

Vou pedir ao Armor Pires Mota que me autorize a reprodução do seu diário, as suas poderosas vivências na Ilha do Como, entre 15 de Janeiro e 15 de Março de 1964...

De momento não tenho o seu contacto telefónico. Mas alguém me pode ajudar encaminmhando esta mensagem até ele (que, segundo creio, não acompanha o nosso blogue). Conheci-o no lançamento da 2ª edição do seu livro, "Estranha Noiva de Guerra", que li de um fôlego...