segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8821: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (14): Soldados não viajam em 1.ª classe

1. Mensagem do nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 22 de Setembro de 2011, com mais uma das suas histórias e memórias:


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (14)

Soldados não viajam em 1.ª

Em Maio de 1966, eu estava de férias de fim de comissão na santa terrinha quando recebi um aviso para me deslocar à Câmara Municipal de Sever do Vouga. Ali entregaram-me uma “guia de transporte” para me deslocar a Tomar no dia 10 de Junho para ser condecorado. A dita guia era extensiva também a dois acompanhantes.

Alguns funcionários da C.M. conheciam-me; e tive de responder a um chorrilho de perguntas insistentes (muitas delas desconexadas) àcerca do “porque sim” e “porque não” de vir a ser condecorado.

Um até me perguntou se eu não tinha morrido na Guiné! Eu já sabia que aquele boato correra na vila e no Colégio de Oliveira de Azemeis lançado, involuntáriamente, por uma moça bem mais nova do que eu e que estudava ainda no colégio que eu frequentara. Ela ouviu citar o meu nome durante um noticiário da Emissora Nacional ou R.T.P.; tratando-se da Guiné, só podia ser por morte (pensou ela); afinal a notícia referia-se ao meu Prémio Governador da Guiné!


Segundo acto

No dia 1 de Junho daquele ano apresentei-me, como previsto, no Colégio Militar, onde havia sido colocado como voluntário. Perguntei na secretaria se podiam trocar a minha guia de marcha por outra válida de Lisboa a Tomar ou se teria de me deslocar a expensas minhas visto que não iria viajar até à minha terra para “aproveitar” aquele título de transporte.

Substituiram-na, mantendo ainda a validade para três pessoas.

Parti de Lisboa no dia 9 à tarde. Entendi que seria um desperdício anormal ter passagem para três pessoas e utilizá-la só para uma, havendo na estação da CP tantos soldados a comprar bilhetes; iam passar o fim de semana à terra.

Perguntei a um soldado qual era o seu destino; ia para Coimbra:
- Se quiseres vais comigo até ao Entroncamento e só pagas o bilhete a partir dali. Aceitou.

Outro ia mesmo para Tomar. Entrámos os três numa carruagem de 1.ª classe ocupando três lugares no mesmo compartimento.


Tudo ia correndo sobre carris; eis que aparece o revisor a pedir os bilhetes; olhou para o título de transporte exibido, olhou para cada um de nós... pensou (não reparei se deitou fumo pelos ouvidos) e falou com ar autoritário:
- Soldados não viajam em 1.ª!

- Estes soldados têm passagem de 1.ª; não vejo motivo para que abandonem esta carruagem.

- Soldados não podem viajar em 1.ª!

- Estes soldados podem viajar em 1.ª e vão continuar nesta carruagem porque têm a passagem correspondente!

- Nenhum soldado pode viajar em 1.ª!

Eu não via maneira de dar a volta ao texto de modo a fazer aquele “pica” tão cumpridor mudar de ideias.

Lancei o meu último trunfo, absolutamente demolidor:
- O senhor sabe que estes rapazes são soldados porque eles estão fardados! Não é verdade? Se o senhor insistir nesse absurdo, eu ordeno-lhes que se dispam e, ficando em cuecas, já não sabe que eles são soldados e deixará de nos atormentar sem motivo; pretende que eu faça isso?!

O homem não respondeu e continuou no seu “fura fura”.

O comboio parou no Entroncamento e eu fui logo chamado à presença do chefe de estação; pretendia saber por que “obriguei” soldados a viajar em 1.ª se a Lei não o permite e por que desobedeci às ordens legítimas do revisor.

Eu respondi:
- O Senhor só sabe do assunto pela rama! Vamos lá ver se nos entendemos! Se um soldado tiver passagem de 1.ª não pode viajar em 1.ª?

- Se a comprar, pode! Mas um soldado não compra esse tipo de passagem!

Mostrei-lhe o título de viagem. O chefe comentou, prazenteiro:
- Ah! Assim podem! O revisor é burro!

- Diga-lhe isso! Nós (já éramos só dois) vamos ocupar os nossos lugares no comboio que está prestes a partir para Tomar; não podemos ficar em terra!

- Vá com calma, senhor alferes! O comboio não parte sem minha autorização! Não tenha pressa e desculpe o incómodo!

Não sei se o chefe deu conhecimento do sucedido ao revisor do comboio para Tomar. O certo, porém, é que não houve mais complicações. O bom do soldado lá foi comigo, gratuitamente, (naqueles tempos o dinheiro era muito caro!) passar dois dias na sua santa terrinha! Eu recebi a minha Cruz... de Guerra que viria a ser “pesada” na minha farda do oficial miliciano.

Setembro de 2011
Belmiro Tavares
Ten Mil Inf
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8619: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (13): O chefe ganhava pouco

1 comentário:

José Marcelino Martins disse...

Tem de haver, necessariamente, muitas histórias passadas em comboios.
Sabemos de que massa era feita aquele grupo de trabalhadores, muitas vezes "arrancados" a terra madrasta, à procura de melhor vida.

Por outro lado, os chefes, com "um cérebro um pouco maior, mas com menos massa cinzenta", incutia nestes homens o medo da "expulsão", pelo que levavam à letra, tudo o que o chefe dizia, até porque, chefe é chefe.