Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Jufunco ou Djufunco > 9 de maio de 2013 > O local sagrado das reuniões da comunidade, que neste dia se abriu pela primeira vez para reunir com a comunidade de brancos que visitou a tabanca, vendo-se os régulos no lugar que ocupam habitualmente, sentados nas suas "turpeças".
Fotos (e legendas): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Na sua visita a Jufunco, no chão felupe, em maio de 2013, o José Teixeira, régulo da Tabanca de Matosinhos, fez as seguintes observações sobre os seus "pares", os régulos locais, e os seus símbolos do poder:
O grande músico guineense Binham tem uma canção chamada "Turpeça de mortu"... Tenho pena de não "apanhar" a letra... Julgo que ele vem da melhor tradição da grande música guineense, de crítica social e de intervenção cívica e política (Zé Carlos Schwarz, etc.)... Talvez aqui o Cherno Baldé nos possa, mais uma vez, dar uma ajudinha a perceber a letra... Há um videoclipe disponível no You Tube...
(...) O régulo faz-se acompanhar de um pequeno banco em madeira, onde só ele se pode sentar, sob pena de perda de vida. Mesmo quando nos acompanharam pela tabanca, levavam o banco debaixo do braço e, quando parávamos, sentavam-se nele. Cada terra tem seus usos e costumes, mas este é, com o devido respeito, deveras estranho.
Pudemos visitar o chão sagrado debaixo do poilão onde o povo simples vai encontrar-se com o Irã, o espírito superior, para implorar proteção e cura dos seus males, bem como o local sagrado onde os homens grandes se reúnem para decidir sobre as grandes questões que afetam o seu povo.
Neste local sagrado, os dois régulos sentados no seu banco tradicional explicaram como se desenvolvem as reuniões da comunidade, cujas decisões são seladas com um jantar bem regado com vinho de palma e aguardente de cana. Do animal morto para o repasto ficam ali guardados a cabeça ou parte da dentuça como sinal de que houve acordo e o mesmo deve ser posto em prática. Isto fez-me lembrar os meus tempos de criança quando os homens de negócios nesse interior de Portugal selavam os seus acordos com uma caneca de saboroso vinho".(...)
Pudemos visitar o chão sagrado debaixo do poilão onde o povo simples vai encontrar-se com o Irã, o espírito superior, para implorar proteção e cura dos seus males, bem como o local sagrado onde os homens grandes se reúnem para decidir sobre as grandes questões que afetam o seu povo.
Neste local sagrado, os dois régulos sentados no seu banco tradicional explicaram como se desenvolvem as reuniões da comunidade, cujas decisões são seladas com um jantar bem regado com vinho de palma e aguardente de cana. Do animal morto para o repasto ficam ali guardados a cabeça ou parte da dentuça como sinal de que houve acordo e o mesmo deve ser posto em prática. Isto fez-me lembrar os meus tempos de criança quando os homens de negócios nesse interior de Portugal selavam os seus acordos com uma caneca de saboroso vinho".(...)
2. Em crioulo, este "banquinho" (que é mais do que um adereço da casa que serve para a pessoa se sentar-se) chama-se "turpeça"... Em fula, é "ciran" ou "cirange" (no plural). Alguns de nós, como o António J. Pereira da Costa ou eu próprio, temos em casa objetos destes, feitos em madeira, com função de adorno ou peça de artesanato "guineense"...
O termo apareceu-nos no subtítulo de um livro, da autoria de Santos Fernandes, recenseado pelo Beja Santos: "Lideranças na Guiné-Bissau: avanços e recuos". Na capa vem um destes banquinhos tradicionais, de que todos estamos lembrados: com a seguinte legenda: "a imagem de 'turpeça', símbolo de poder na Guiné-Bissau" (**).
O nosso querido amigo e grã-tabanqueiro Cherno Baldé, contou-nos, a propósito, a seguinte históira: "O caso mais insólito que observei com este fenómeno das 'Turpeças', aconteceu em 2004 quando o Ministério das Obras Públicas, onde trabalhava, convidou as autoridades locais das ilhas dos Bijagós para uma reunião de concertação em Bissau. Estranhamente, todos traziam consigo uma 'turpeça', a sua 'turpeça', porque na sua tradição estava consignado que deveriam utilizar sempre aquela e não outra qualquer. Fiquei estupefacto, mas é a realidade. Não conhecia e nunca tinha visto" (**).
3. O vocábulo ainda não vem nos dicionários da língua portuguesa, e nomeadamente no Houaiss. Mas acho que o temos de grafar. Não era, que me lembre, usado no tempo colonial... Mas hoje é usado, pelos guinenses, urbanizados. Ou faz parte do "calão político": tenho-o encontrado com significado equivalente à nossa "cadeira do poder"... Fala-se por exemplo dos dirigentes partidários instalados nas suas "turpeças", de costas viradas para o povo...
E é nesse sentido que temos de entender as argustas observações etnográficas registadas pelo "régulo" Zé Teixeira, quando foi em 2013 a Jufunco em visiat aos seus colegas... O tal "banquinho" é, antes de mais, um símbolo de poder... Quem tem poder, tem "turpeça"... Quem não tem, senta-se no chão... O chão é o plano da igualdade... O chefe, nas línguas latinas, vem do "caput" (cabeça): chefe é aquele cuja cabeça sobressai da multidão de cabeças, o povo, o grupo, os outros... Daí o "banquinho", o "cirã", a "turpeça", a "cadeira", o "trono", o "penacho", o "chapéu", a "coroa", as "divisas", os "galões", as "dragonas", enfim, todos os símbolos de status que conferem poder, autoridade... (Mas há uma diferença semântica e conceptual entre líder e chefe: liderança é uma relação, chefia um atributo).
O termo apareceu-nos no subtítulo de um livro, da autoria de Santos Fernandes, recenseado pelo Beja Santos: "Lideranças na Guiné-Bissau: avanços e recuos". Na capa vem um destes banquinhos tradicionais, de que todos estamos lembrados: com a seguinte legenda: "a imagem de 'turpeça', símbolo de poder na Guiné-Bissau" (**).
O nosso querido amigo e grã-tabanqueiro Cherno Baldé, contou-nos, a propósito, a seguinte históira: "O caso mais insólito que observei com este fenómeno das 'Turpeças', aconteceu em 2004 quando o Ministério das Obras Públicas, onde trabalhava, convidou as autoridades locais das ilhas dos Bijagós para uma reunião de concertação em Bissau. Estranhamente, todos traziam consigo uma 'turpeça', a sua 'turpeça', porque na sua tradição estava consignado que deveriam utilizar sempre aquela e não outra qualquer. Fiquei estupefacto, mas é a realidade. Não conhecia e nunca tinha visto" (**).
3. O vocábulo ainda não vem nos dicionários da língua portuguesa, e nomeadamente no Houaiss. Mas acho que o temos de grafar. Não era, que me lembre, usado no tempo colonial... Mas hoje é usado, pelos guinenses, urbanizados. Ou faz parte do "calão político": tenho-o encontrado com significado equivalente à nossa "cadeira do poder"... Fala-se por exemplo dos dirigentes partidários instalados nas suas "turpeças", de costas viradas para o povo...
O grande músico guineense Binham tem uma canção chamada "Turpeça de mortu"... Tenho pena de não "apanhar" a letra... Julgo que ele vem da melhor tradição da grande música guineense, de crítica social e de intervenção cívica e política (Zé Carlos Schwarz, etc.)... Talvez aqui o Cherno Baldé nos possa, mais uma vez, dar uma ajudinha a perceber a letra... Há um videoclipe disponível no You Tube...
O crioulo é fascinante. A(s) língua(s) humana(s) é(são) fascinante(s). Infelizmente não podemos dominá-las todas... Mas acho que o termo "turpeça" deve ser grafado e enriquecer a nossa lusofonia. Mas pergunto, na minha "santa ingorância": o vocábuo "turpeça" (em crioulo) não será uma corruptela do português "tripeça", assento, também baixinho, composto de 3 pés, e sem encosto ?
Aqui fica mais uma pista para os nossos leitores, amigos e camaradas da Guiné. (***)
_________________
tripeça | s. f.
tri·pe·ça |é|
(tri- + peça)
substantivo feminino
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tripeça | s. f.
tri·pe·ça |é|
(tri- + peça)
substantivo feminino
1. Assento de três pés e sem encosto. = TRIPÉ
2. [Figurado] Ofício de sapateiro.
3. [Burlesco] Grupo de três pessoas que andam sempre juntas.
cair da tripeça
• Ter idade avançada e indícios de senilidade.
"tripeça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tripe%C3%A7a [consultado em 22-02-2018].
2. [Figurado] Ofício de sapateiro.
3. [Burlesco] Grupo de três pessoas que andam sempre juntas.
cair da tripeça
• Ter idade avançada e indícios de senilidade.
"tripeça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tripe%C3%A7a [consultado em 22-02-2018].
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 10 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11923: Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira) (12): Djufunco, a hospitalidade felupe, a solidariedade portuguesa
(**) 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18339: Bibliografia (46): “Lideranças na Guiné-Bissau, Avanços e recuos”, por Santos Fernandes, Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 10 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11923: Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado (José Teixeira) (12): Djufunco, a hospitalidade felupe, a solidariedade portuguesa
(**) 21 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18339: Bibliografia (46): “Lideranças na Guiné-Bissau, Avanços e recuos”, por Santos Fernandes, Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)
8 comentários:
O quer dizer "Cair da tripeça" ?
"Significado: Qualquer coisa que, dada a sua velhice, se desconjunta facilmente.
Origem: A tripeça é um banco de madeira de três pés, muito usado na província, sobretudo junto às lareiras. Uma pessoa de avançada idade aí sentada, com o calor do fogo, facilmente adormece e tomba."
vd. A curiosa origem de 27 expressões populares portuguesas
Por wsuporte - 13 Maio, 2016
https://pt-comunidades.com/a-curiosa-origem-de-27-expressoes-populares-portuguesas/
É bom lembrar aos nossos políticos, em geral (incluindo os lusófonos, portugueses, guineenses, angolanos, etc.) que quem "turpeça" também cai...
"Cair do poder" é uma expressão que usamos e que está associada à ideia de cadeira, "turpeça"... Por ironia da história, Salazar caiu da cadeira (em sentido físico e não figurado) e caiu (saiu) do poder... Podíamos dar milhentos exemplos...
É rica a nossa língua... E podemos fazer trocadilhos com as palavras: por exemplo, "tropeça" e "turpeça"... LG
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tropeçar | v. intr.
tro·pe·çar - Conjugar
verbo intransitivo
1. Dar topada involuntária com o pé; esbarrar.
2. [Figurado] Encontrar empecilho ou obstáculo inesperado.
3. Cair em erro.
4. Hesitar.
"tropeçar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/trope%C3%A7ar [consultado em 23-02-2018].
Salazar, Marcelo Caetano, Amílcar Cabral, Luís Cabral, Nino Vieira... Todos tinham "turpeça" e cairam... O problema é que não aprendemos, coletivamente, com os erros...
Olá Camaradas
Se bem entendi, a TURPEÇA é uma tripeça para os homens grandes se sentarem e que anda sempre com eles para se poderem sentar, eles e só eles, na respectiva TURPEÇA. É pessoal e intransmissível.
Acho curioso - embora algo primitivo - esse procedimento. Imaginemos o que seria os nossos autarcas, deputados, o presidente (dos enfeites) da república etc. e mesmo outras entidades como banqueiros, grandes comerciantes, sábios, escritores de fama, etc. etc. ou mesmo o/a pacato/a cidadão ou cidadona. Passávamos todos a ser um país de banqueiros pois todos tínhamos um banco!
isso é que era riqueza!
Julgo que este procedimento por parte dos homens grandes da Guiné é algo antigo, ou muito antigo, e que se insere na resistência das populações locais à adopção dos procedimentos dos colonizadores e na preservação dos hábitos que já tinham à chegada daqueles.
E para as mulheres? Nunca nenhuma mulher grande (ou pequena) carregando uma Trupeça.
É o machismo islâmico ou animista ou são as mulheres que não querem andar carregadas?
Um Ab.
António J. P. Costa
Caros amigos,
Nao consegui ver o video de Binham. Nao conheco a letra da cancao, porque nao sendo muito velho, sou da velha geracao de 60/70 que nao acompanha muito as novas propostas musicais. O certo eh que a "Turpeca" do poder na Guine comporta muitos riscos bem conhecidos e identificados.
Quanto ao "machismo" relacionado com o poder, nao se pode exagerar, pois eh sabido que em alguns grupos o Matriarcado era o principio regulador da sociedade, caso dos Bijagos e que nao eh de excluir que tivesse acontecido com outros, em epocas anteriores. Afinal a historia nao eh mais do que o registo dos fenomenos das mudancas sociais de longa duracao.
Compreende-se que o aspecto islamico seja irritante ao homem ocidental, mas eh de excluir por ser irrelevante e nao relacionado com o caso em analise.
Com um abraco amigo,
Cherno Balde
Tó Zé:
A "turpeça" não é uma "tripeça" (banquinho de três pés), é feita de um cepo, um só bloco de madeira... Tens lá em casa dois "cirange" (em fula, como nos explicou o Cherno Baldé)... E na Guiné, eu tinha direito a uma "turpeça" quando ia com a minha secção em reforço de alguma tabanca (fula) em autodefesa... Tinha direito a uma morança e uma "turpeça", para me sentar à porta...
Em África é, de facto, mais do que um "banquinho", um "simbolo de status" (em linguagem sociológica)... E a propósito lembrei-me da história ou "lenda" da rainha Nzinga...quando foi recebida, em luanda, pelo representante do "nosso amigo" Filipe III (1621-1640), o Filipe IV de Espanha... o mais filho da p... de todos os três.
Fica aqui um excerto, do sitio "Ensinar Hiistória", de Joelza Ester Domingues:
Nzinga, a rainha negra que combateu os traficantes portugueses (Parte 1)
26 de maio de 2015
(...) Entra em cena a princesa Nzinga
Em 1621, chegou a Luanda o novo governador português que se apressou a buscar a paz com o ngola Mbandi. Para negociá-la, o rei ambundo enviou a Luanda uma embaixadora – sua irmã Nzinga, então com 39 anos de idade.
Neste encontro, ocorreu um episódio curioso que revela a altivez da princesa ambundu. Como o governador a recebeu sentado e não lhe ofereceu cadeira, Nzinga fez um sinal para uma de suas acompanhantes que se colocou de quatro no chão para a princesa sentar-se sobre ela. Ao sair, deixou a moça na sala, na mesma posição, como se fosse um banco. O governador avisou-a para levar a moça e Nzinga respondeu-lhe que não sentaria novamente naquele banco pois tinha muitos outros e não o queria mais.
A princesa, inteligente e decidida, deixou claro que o rei ambundo não era e nem seria vassalo do rei ibérico. Estava ali como representante de um estado soberano e exigia tratamento de igual para igual. Para surpresa de todos, Nzinga falou em português fluente. Possivelmente aprendera a língua com alguns dos mercadores e missionários portugueses que haviam frequentado a corte de seu pai.(...)
http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/nzinga-a-rainha-negra-contra-os-traficantes-portugueses/
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