sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18344: Notas de leitura (1043): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Tudo quanto se escreve neste documento é de uma extrema gravidade. A Guiné Portuguesa, nas vésperas da II Guerra Mundial, tem à frente um governador indigno cercado de uma alcateia de corruptos. O que aqui se afirma sobre a pacificação de Canhabaque põe às avessas o que consta na historiografia oficial. E no seu todo o documento do gerente Virgolino Teixeira revela o lado mais funesto de um colonialismo quase sem regras. Bom, os governadores que se seguem continuam a gozar de uma imagem de rigor e integridade, felizmente.

Um abraço do
Mário


Carta da Guiné de 1933


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (23)

Beja Santos

O documento chancelado como “Absolutamente Confidencial”, que o gerente Virgolino Teixeira enviou dirigido ao Presidente do Conselho Administrativo do BNU, em 10 de Outubro de 1938, é uma peça irrecusável para o estudo da Guiné no período que precede a II Guerra Mundial. É devastador na carga denunciante, começa nas imoralidades que atribui ao Governador Carvalho Viegas, não deixa pedra sobre pedra o estado das instituições, desentranha o mau funcionamento de toda a economia, como se procurou exemplificar nos dois textos anteriores.

Agora vai falar de uma coisa que lhe interessa particularmente, que tem a ver com o seu múnus:
“Um dos pontos mais interessantes ligado à economia da colónia é a questão das transferências. A respectiva comissão reguladora funciona em Bolama pela razão do senhor Governador Viegas querer pôr e dispor das disponibilidades para fazer figura de grande financeiro e provar ao senhor ministro que a colónia paga tudo, no exterior, e até antecipadamente. Para isto, fica a parte do leão, mas que leão, para o Estado, e fica… quase nada para as transferências comerciais do banco e dos particulares. Mas isto não interessa ao senhor governador que só pensa no fortalecimento da sua posição pessoal. E para atingir os cumes dos altos problemas financeiros, entra a acumular milhares de contos na metrópole – à custa do sacrifício das disponibilidades da colónia – e paga, de uma só vez, a dívida da colónia que podia pagar em dezenas de anos. É certo que o orçamento da colónia deixa de ter o peso do encargo da amortização anual. Mas o comércio e os particulares, principalmente, ficam arrasados porque, como se esperava e se fez sentir ao senhor governador, a colónia entraria, por força, no desgraçado regime de falta de transferências. Sabia o senhor governador Viegas que a desgraçada situação que ia criar à colónia. Nada o deteve porque, acima de tudo estava o interesse pessoal e, diga-se com desassombro, criminoso.

A todas as razões respondia, tanto a mim como a outros: não tenho dó do comércio ou dos particulares, eles que comprem frangos para transferir ou que vão transferir à Casa Gouveia. Há tanto de imoralidade neste estribilho como há de ilegalidade. É o chefe supremo da colónia a incitar ao desrespeito à lei. É o chefe supremo da colónia a canalizar as transferências da colónia para a Casa Gouveia que chega a cobrar – com conhecimento dele – 13 a 15% de prémio, metendo-lhe nos cofres milhares de contos e criando ao comércio e aos particulares situações desgraçadíssimas. O particular não tem defesa. Tem que dar pão a filhos e pais que têm na metrópole. A Casa Gouveia, com o beneplácito do senhor governador, tira-lhe a pele na transferência. O comerciante, cuja pele vai também para a Casa Gouveia, sustenta preços na relação do que Gouveia lhe leva. A vida encarece, os géneros escasseiam e a colónia desacredita-se no exterior, porque não cumpre pontualmente os seus compromissos. É este o quadro criado conscientemente, criminosamente, pelo senhor governador Viegas. Mas agora que o vê, quer desfazer-se da responsabilidade que tem. Agora que vê a colónia a braços com a desgraçadíssima que lhe criou, usa e abusa daquela formidável falta de carátcer que Nosso Senhor lhe deu e despede, sem inteligência mas com a mais solerte velhacaria, na culpa para o actual Encarregado de Governo – pessoa moral que não pode ser atingida sob aspecto nenhum – e para o gerente do banco, a pessoa que menos tem a ver com o estado de coisas que o senhor governador Viegas criou.
Não há que recear as suas investidas. Usa do embuste e da mentira. É fácil desmascará-lo com dois números e três considerações”.


O gerente também procura pôr em pratos limpos o timbre político do governador. Atribui-lhe a responsabilidade de ter demorado a criar a União Nacional na Guiné. Sem grande fé nacionalista, escolheu para vítima o Dr. Severiano de Pina, advogado que ele pusera em juiz interino, por um lado elogiava-o e por outro denunciava-o como perigosíssimo elemento político contra a Ditadura. O ministro das colónias demitiu o Dr. Pina, o governador Viegas chamou-o para lhe dizer que tinha acabado de saber que ele era vítima de manejos políticos dos nacionalistas, pedia-lhe para aceitar a demissão dos cargos que exercia. E quando vai a Lisboa, o governador Viegas acusa o Encarregado de Governo de ser o perseguidor político do Dr. Pina.

Um dos libelos mais pesados deste documento recai sobre a campanha levada a efeito pelo governador Viegas contra os Canhabaques, ele procura esclarecer a situação:
“Os Canhabaques estão absolutamente insubmissos à nossa soberania. O senhor governador Viegas fez-lhe guerra mas guerra sem plano, sem método e sem finalidade de antemão marcada. Os Canhabaques, fornecidos de pólvora pelo Pinho Brandão, matavam à farta os nossos soldados. Na oficialidade, seguia magoado mas cumprindo ordens o Chefe do Estado-Maior, Capitão Rodrigues. Os Canhabaques mataram e a certa altura o senhor governador Viegas resolveu considerá-los pacíficos e retirou… vencido. É a verdade. Fez alarde de vitória. Distribuiu louvores. Propôs condecorações aos heróis e sentou-se à secretária para escrever então os planos de combate que se ele se descuida mais em fazê-los seriam talvez um trabalho póstumo. Pelo menos o foram, em relação à acção. Em Lisboa, como é natural, pois um governador da colónia deve ser uma pessoa leal e honrada, que não mente, acreditaram e os Canhabaques ficaram então… submissos de todo.

O governador vai a Lisboa; os Canhabaques continuam a fazer das suas e o então Encarregado de Governo – nulidade moral e intelectual – vê uma ocasião de ser também herói e pede material de guerra e guerreiros de terra, mar e ar. Coisa de arromba. O seu telegrama devia ter sido bomba que caiu no ministério. Chamado o senhor governador Viegas, este deve ter desmentido tudo e dito que voltava já para a colónia para provar que tudo era falso. E veio e chamou o traidor que vendia pólvora aos Canhabaques e disse-lhe: ou você me traz aqui Canhabaques a prestar vassalagem ou meto-o a ferros. O Victor Hugo chamou-o e disse-lhe: ou me dás já uns 17 contos para eu tapar um roubo que fiz e está na iminência de ser descoberto, ou vais já a ferros. O homem e dinheiro lá seguiram. Lembrou-se talvez de Egas Moniz. Como tem por amante uma Canhabaque, apresentou-se ao chefe com mulher, filho, tabaco e aguardante e jurou-lhes que podiam vir a Bolama, prestar vassalagem ao governo que ele jurava que lhes não faziam mal. Os chefes beberam, fumaram, exigiram que o Pinho Brandão deixasse filhos e mulher como reféns e vieram a Bolama onde foram recebidos no Palácio do Governo, como hóspedes ilustres. E para que a farsa seja mais completa, o senhor governador gritou logo na TSF a submissão absoluta dos Canhabaques à sua pessoa. Enfim, os Canhabaques eram amigos. Mas ele é que lá não vai pagar-lhes a visita, sob pena da cabeça lhe rolar dos ombros se se internar na ilha.

Tudo o que ele tiver dito para Lisboa sobre Canhabaque é mentira pura, e sabe-se que é por o Encarregado de Governo – ferido por ele – nesta questão, contou a quem quis tudo que de confidencial o senhor governador Viegas oficiara sobre o caso. Tudo mentira.
Depois, o senhor governador Viegas, tendo terminado os planos póstumos da sua guerra, publicou um livro sobre ela, que distribuiu. Deu-me um mas veio depois pedir-me que o escondesse porque o senhor ministro não consentia que tal documento circulasse.
Como V. Exa. vê, tudo, absolutamente tudo, que este homem faz e diz é embustice, é mentira, é imoralidade.

Veja V. Exa. este ridículo, esta trapalhice. Para ter a popularidade dos negros, chama um pintor de fancaria, dá-lhe uns poucos de contos e manda-o fazer uma tela, corpo inteiro, do governador preto Honório Barreto. E o modelo? Pergunta o pintor. E um retrato do homem, ao menos, para me guiar. Não há, deixe-se disso, pinte lá um governador preto. Ele já morreu há tantos anos que não há quem se lembre da cara dele. E, que diabo, as pessoas mudam. E o pintor pintou um mamarracho com que o senhor governador Viegas encheu a parede do seu gabinete de trabalho, mas tendo o cuidado de escolher a parede atrás das costas, como se tivesse remorsos do que fez e receio de olhar de frente para o governador Honório Barreto, mesmo não sendo ele pintado. Mentira, em tudo desonestidade de processos. Em tudo vilania”.

Já na fase final do seu libelo acusatório, Virgolino Teixeira dá remédio para pôr termo a estas chusmas de imoralidades:
“Não são precisas violências. É preciso apenas o governo central conhecer com verdade esta montanha de mentiras que tem sido o governo do governador Viegas. Todos têm certeza que é tão alta a honestidade do governo da nação que ele acabará como tão desgraçado e infame estado de coisas, logo que haja quem, honesta e desassombradamente sem paixões, grite contra quem comete o crime que está fazendo o governador da Guiné.
É esta a única e suficiente esperança que as gentes honradas da Guiné têm. É tempo de se terminar com a bacanal tremenda de trapalhices de tal homem cuja fibra moral nem se torceu ante o cometimento da mentira de lesa-Pátria que é a história de Canhabaque. É preciso que nesse governo seja colocado uma figura moral que conheça a Guiné e que não tenha medo de enfrentar a quadrilha que a infesta. É grave o que aqui escrevo. Mas empenho junto de V. Exa. a minha honra de que tudo é absolutamente verdade. E nenhuma paixão pessoal me move contra o senhor governador Viegas, com quem tenho mantido todas as boas relações que me são obrigadas pelo cargo. Individualmente, repugna-me; porque sou português daqueles que não admitem actos infames em quem deve dar altos exemplos morais que não desonrem o nome da pátria. Perdoe tê-lo importunado com tanto que escrevi. Fico bem escrevendo a V. Exa. o que escrevi, porque tenho a esperança que V. Exa. poderá contribuir, junto de quem direito, para que acabe esta tristíssima desgraça que assolou e assola a Guiné, na pessoa do senhor governador Viegas”.

Reitero que nada de semelhante lera em tais tipos de libelos. Tratar-se-ia de uma época em que a administração em Lisboa facilitava as línguas soltas, os termos desbragados, pretendia-se a verdade das coisas.

Coisa curiosa, já que me foi dado ler os relatórios que transitam da década de 1960 para 1970, doravante a linguagem será mais comedida como se tivesse consolidado esse princípio do Estado Novo em que “cada um deve estar no seu lugar”.

(Continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 16 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18324: Notas de leitura (1041): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (22) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18331: Notas de leitura (1042): História do Dia do Combatente Limiano”, por Mário Leitão (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

A fotografia do cais não é de 1969. Foi tirada em 15 Maio 1966, 1º dia das chuvas. Abraço
V Briote

antonio graça de abreu disse...

Roupa suja, badalhoca, porquíssima!

Abraço,

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

A vida nos trópicos, longe "da vista e longe do coração" da parte dos funcionários em geral,mas daqueles que iam em comissão, tipo governadores, militares, secretários do governo, não eram muito apreciados por aqueles (brancos ou mestiços ou assimilados)que viviam lá radicados.

E como aquela vida africana era uma "maré mansa" prestava-se a uma certa molenguice e um certo ócio, sobrava muito tempo para corte e costura, o que era um apreciado passatempo.

Embora no caso presente de Bolama, neste caso já 1938, o Homem de Santa Comba já era 1º ministro desde 1933, este devia achar uma certa graça a coisas destas, o prejuizo devia ser pequeno, e sempre era uma distracção para aquela gente, pois nem futebol havia, nem Fátima nem fado naquela ilha de Bolama.

Dizem que o Antoninho andava a par de tudo.

Eu também fui funcionário (radicado) e sei que o "ócio" dava para tudo, até que veio a guerra e acabou com aquela tranquilidade.