Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
Guiné 61/74 - P18339: Bibliografia (46): “Lideranças na Guiné-Bissau, Avanços e recuos”, por Santos Fernandes, Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2017:
Queridos amigos,
Não duvido das boas intenções de Santos Fernandes mas confesso que esta leitura me deixou estupefacto com a desarticulação dos capítulos, o vaivém entre passado, presente e promessa de futuro, a repetição existente em dados mais do que consabidos sobre a atribulada existência do sistema político guineense, desde a independência ao presente.
Boas recomendações leva-as o vento, sobretudo quando a estrutura do trabalho não possui direção lógica. Leopoldo Amado prefacia o trabalho de Santos Fernandes, é igualmente simpático, mas adiciona mais outros lugares comuns, ao nível das boas intenções.
Uma perda de oportunidade lastimável.
Um abraço do
Mário
Lideranças na Guiné-Bissau: avanços e recuos
Beja Santos
Quando um país que se chama Guiné-Bissau, com um histórico de atribulações de liderança, golpes de Estado, assassínios de civis e militares, onde assombra a comunidade internacional a forma ordenada com o que aquele povo vota e não desanima, após décadas sucessivas de deceções intensas, vai-se com curiosidade para a leitura de “Lideranças na Guiné-Bissau, Avanços e recuos”, por Santos Fernandes, Chiado Editora, 2017.
O autor tem currículo na administração de negócios, em liderança, em administração e é formador em empreendedorismo, bem como professor na Universidade Colinas de Boé. Dedica este seu estudo a um investigador que deixa saudade, Falvien Fafali Koudawo (1954-2015), um togolês que dedicou muita investigação à Guiné-Bissau, dos anos 1990 até ao seu falecimento, com inúmeros estudos publicados no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, fundador da Kusimon Editora e do jornal Kansaré, o seu nome esteve ligado a iniciativas que o fortificaram como a Voz di Paz, que se mantém como uma organização.
Os propósitos do estudo são inquestionáveis, altamente questionáveis são os resultados obtidos. Promete analisar as lideranças políticas na Guiné-Bissau, os avanços e recuos nas lideranças políticas, ao nível geral, dar-nos uma apreciação dos indicadores de liderança, avançando, no termo do trabalho com conclusões e recomendações a tais avanços e recuos.
Quanto à formação das elites, parte das elites comerciais crioulas, recorda a presença cabo-verdiana nos negócios e na administração, o mosaico étnico dentro das fronteiras da colónia e do país independente e detém-se sobre a liderança do PAIGC enquanto movimento de libertação nacional. A apregoada unidade foi sempre um fenómeno frágil, esbarro com clivagens de origem étnica, com o peso de lideranças locais, nomeadamente nas etnias de cariz vertical, caso dos Fulas e Mandingas. Cita as apreciações de Amílcar Cabral sobre unidade e luta e volta à questão dos pais fundadores, guineenses e cabo-verdianos. Recorda o trabalho de Peter Karibe Mendy e onde este diz que as principais vítimas do colonialismo português, a esmagadora maioria as populações rurais, eram-no devido aos cabo-verdianos, funcionários coloniais que lhes cobravam impostos, os forçavam a trabalhar e castigavam com brutalidade. Também cita Álvaro Nóbrega que também observa que a maioria dos funcionários coloniais de origem cabo-verdiana constituía a elite urbana conjuntamente com algumas poucas famílias luso-africanas de antiga linhagem. Os cabo-verdianos revelaram-se determinantes no apoio logístico à armada mas o seu peso político era consideravelmente desproporcional ao peso demográfico, sente fraca a sua presença nas frentes de combate, o que é profundo as tensões e rivalidades que vieram a desaguar no golpe de Estado de 1980. Lastima-se que o autor não tenha procurado aprofundar os sucessos e insucessos da liderança de Cabral e a de Nino Vieira, são ambos citados, o primeiro tinha ideologia, capacidade de organização, foi exímio estratega e tinha um projeto que ia para lá da independência; e o segundo rapidamente adotou um comportamento cesarista, acolitou-se de gente obediente e impreparada para saber avaliar a cada momento a situação política, toda a sua liderança era baseada em táticas de manutenção do poder graças ao terror, às benesses espalhadas pelos devotados, surfando entre os mecanismos ditatoriais até á liberalização dos mercados. O autor destaca a fragilidade da liderança e da gestão ao tempo de Nino Vieira ressaltando a incompetência, a irresolução, a indiferença pelo bem público.
Conhecedor que é das técnicas de administração e gestão, o autor espraia-se sobre a crise do Estado, o adiamento das reformas, elenca definições e conceitos como risco político e de repente faz perguntas sobre o preço do golpe de Estado, a importância da Casa dos Estudantes do Império na formação de lideranças, enumera explicações sobre os pressupostos lógicos da liderança face ao processo decisório, resume as sucessivas lideranças entre Nino Vieira e a atualidade, retorna às decisões assumidas no Congresso de Cassacá (1964) para avultar as pressões étnicas e concomitantes lideranças regionais, dentro desta toada discursiva chega à atualidade, exprime a sua opinião sobre as principais causas e falências económicas e entende que chegou o momento de nos dizer o que significa ser líder, qual a função do líder, os seus conhecimentos, habilidades e competências, fala-nos de Bill Gates e dá-nos o decálogo dos segredos do sucesso da Microsoft, sem se perceber minimamente porquê apresenta os aspetos genéricos da lei geral do trabalho na Guiné-Bissau, tudo para concluir que a nova elite política pode ser assim caraterizada: ausência de uma cultura democrática; os líderes políticos ainda não interiorizaram os valores democráticos; o diálogo intrapartidário é dificultado pela ausência e/ou pouca internalização de uma ideologia de programas políticos coerentes. Em conclusão, é imperioso dar-se uma mudança de cultura, afirmar-se uma liderança institucionalmente forte, apoiar-se a participação, o diálogo e ter-se sempre em conta as orientações supremas do bem-comum e dos Direitos do Homem.
É muito tocante a homenagem a Fafali Koudawo, mas tem-se dúvidas profundas se esse estudo possui inteligibilidade, para ser útil a quem quer que seja na Guiné-Bissau, que continua com fome numa liderança institucionalmente forte, colaborativa e que saiba superar tensões étnicas. Ademais, o autor salienta uma questão de fundo que são as permanentes clivagens entre grupos de interesse no PAIGC mas não lhes dá explicação nem indica recomendações para consolidar um PAIGC que não dê tréguas a tais grupos de interesses e viva enformado por uma vontade de afirmar um projeto de coesão nacional, o cabouco do Estado.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18128: Bibliografia (45): “Os Papéis do Inglês”, por Ruy Duarte de Carvallho; Círculo de Leitores, 2002 (2) (Mário Beja Santos)
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7 comentários:
Olá Camarada
Tenho dois "cirans" que é o nome que me ensinaram a dar àquele banco baixinho em que as pessoas se sentam nas tabancas. Nunca lhe ouvi chamar trupeça.
Não é o meu país e nada tenho que ver com os símbolos adoptados, mas adoptar um banco como símbolo nacional é algo que estranho, mas...
Um Ab.
António J. P. Costa
Caros amigos,
"Turpeça" em crioulo da Guiné significa banco em geral (pode ser banco baixinho, como diz o Antonio Costa ou outro qualquer), como pode significar trono, simbolo de forma monarquista de poder ou governo. Deve ser, na minha opiniao, uma replica Africana dos poderes monarquicos da época dos descobrimentos que, todavia, nao é exclusivo da Guiné, podendo-se encontrar na maior parte dos povos da costa maritima desde o Senegal até ao Golfo da Guiné.
"Ciram" no singular ou "Cirange" no plural tem o mesmo significado, mas na lingua Fula. Até 1974, nas zonas de predominancia Fula o Crioulo era pouco falado.
Mas neste caso, a simbologia nao era tao forte, sendo substituido ou acompanhado pelo ornamento na cabeça.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
PS:
O caso mais insolito que observei com este fenomeno das "Turpeças" aconteceu em 2004 quando o Ministerio das Obras Publicas, onde trabalhava, convidou as autoridades locais das ilhas dos Bijagos para uma reuniao de concertaçao em Bissau. Estranhamente, todos traziam consigo uma "turpeça", a sua "turpeça" porque na sua tradiçao estava consignado que deveriam utilizar sempre aquela e nao outra qualquer. Fiquei estupefacto, mas é a realidade. Nao conhecia e nunca tinha visto.
Cherno Baldé
Obrigado, amigos e camaradas, pela lição de cultura que acabo de receber... A(s) língua(s) humana(s) são fascinantes. Infelizmente não podemos dominá-las todas... Em 2008 também, no avião, um "ciram" (em fula) ou uma "turpeça" (em crioula), comprada a um balanta ("brasa") na sua tabanca, na região de Tombali... Está agora na varanda, a suportar vasos de flores...
Mas pergunto, na minha "santa ingorância": será que o vocábuo "turpeça" (em crioulo) não será uma corruptela do português "tripeça", assento, também baixinho, composto de 3 pés, e sem encosto ?
Fui ao meu monumental "Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa" e não encontrei nada...
_________________
tripeça | s. f.
tri·pe·ça |é|
(tri- + peça)
substantivo feminino
1. Assento de três pés e sem encosto. = TRIPÉ
2. [Figurado] Ofício de sapateiro.
3. [Burlesco] Grupo de três pessoas que andam sempre juntas.
cair da tripeça
• Ter idade avançada e indícios de senilidade.
"tripeça", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tripe%C3%A7a [consultado em 22-02-2018].
O grande músico guineense Binham tem uma canção chamada "Turpeça de mortu"... Tenho pena de não "apanhar" a letra... Julgo que ele vem da melhor tradição da grande música guineense, de crítica e intervenção (Zé Carlos Schwarz, etc.)... Talvez o Cherno Baldé nos possa dar uma ajudinha a perceber a letra...
https://www.youtube.com/watch?v=DGK2SkhlvAQ
Ver aqui mais videoclips do Binham, grande voz da grande música guineense!...
https://www.youtube.com/channel/UCNDKXfeb8JqrkDTflnrNj0g
Caro amigo Luis,
Eh bem provavel que seja isso, pois a palavra deve ser mesmo de origem portuguesa.
Um abraco,
Cherno
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