terça-feira, 30 de março de 2021

Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 27 de Março de 2021, trazendo uma estória que bem caracteriza as dificuldades que sentíamos quando tínhamos de atravessar Portugal de lés-a-lés nas deslocações entre quartéis.


O melhor brunch

No início de Janeiro de 1971 (já lá vão 50 anos),  fiz a minha primeira grande viagem.

Fui colocado para a segunda fase da minha formação militar no CISMI em Tavira. Munido das respectivas guias de marcha iniciei a viagem no apeadeiro de Leandro na linha do Minho cerca das 22 horas e cheguei a Tavira cerca das 19 horas do dia seguinte.

As etapas foram:

Leandro - Campanhã (comboio)
Campanhã - Santa Apolónia (comboio)
Santa Apolónia - Terreiro do Paço, a pé
Terreiro do Paço - Barreiro (de barco)
Barreiro - Tavira (comboio)

A ração de combate (caseira) resumia-se a 2 pães e 1 ou 2 ovos cozidos e um pouco de chouriça.

Ao fim da manhã já não tinha nada para comer nem onde comprar, o comboio a que a guia dava acesso eram comboios que paravam em todas as estações e apeadeiros e não dispunham dessas mordomias.

Ao início da tarde a fome apertava, entretanto uma senhora que viajava no mesmo compartimento que tinha entrado,  já eu tinha para aí uma hora de viagem, abriu um baú e um pequeno garrafão de vinho e começou a comer pão e presunto, acompanhado  com um copinho de vinho... e eu a ver e a salivar... 

A té que a senhora olha para mim e pergunta:
 - Oh menino, tens fome? Serve-te, come e bebe que chega para os dois.

Eu assim fiz, comi e bebi e matei a fome. No fim agradeci.

Recordo este gesto para toda a minha vida. Que Deus tenha reservado um lugar no céu para ela.

Mais tarde, já em África, passei por momentos semelhantes mas sem ter quem me socorresse.

A tantos sacrifícios fomos submetidos, tanto desgaste físico e psicológico ao longo de tantos meses, e para quê?

Uma pergunta que fica e ficará sempre sem resposta.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2021 > Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

2 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Os nossos filhos e netos não vão acreditar...

De qualquer modo era ainda o Portugal do séc. XIX...

Vd. Hugo Silveira Pereira . AS VIAGENS FERROVIÁRIAS EM PORTUGAL (1845-1896)

https://www.researchgate.net/publication/281175910_As_viagens_ferroviarias_em_Portugal_1845-1896

Excertos:



(...) Entre 1852 e 1893 Portugal dotou-se de mais de dois mil quilómetros de caminhos-de-ferro, que alteraram a forma como se viajava no Reino. Os portugueses, que antes apenas circulavam nos rios, junto à costa ou onde a ausência de obstáculos o permitia, passaram a dispor de um novo meio de locomoção que lhes encurtava as distâncias e aumentava o tempo disponível.
(…) A primeira viagem de comboio em Portugal, entre Lisboa e o Carregado, realizou-se a 28 de outubro de 1856. Nesse tempo não havia estradas, nem sequer bons caminhos. Uma viagem de liteira, entre Lisboa e Porto, demorava, pelo menos, cinco dias. Na mala-posta, seriam, no mínimo, trinta e quatro horas.
(…) antes dos caminhos-de-ferro, de Lisboa a Elvas levava--se três dias, ao Porto cinco, ao Algarve oito e a Bragança quinze. (…)
(…) Quanto à velocidade, embora representasse um aumento considerável em relação à que se atingia na altura (segundo Joel Serrão, a velocidade máxima em terra era de 9,5 km/h, atingida por uma diligência puxada por quatro cavalos---), em 1864 não era suficiente para chegar a Gaia em menos de 14 horas e a Badajoz em menos de 12 (média e 23 km/h). Em 1872, Gaia já só estava a 11,5 horas de distância de Lisboa (média de 28 km/h) (…). Em 1896, com o grosso da rede já construído, a maior velocidade média que se atingia era de 30 km/h na Linha do Norte e na Linha do Minho. (…)

Anónimo disse...

O artigo do nosso companheiro Joaquim Ascensão fez-me recuar no tempo...Parti da minha terrinha adoptiva, a ilha do Faial, a caminho de Tavira, no dia 26 de Dezembro de 1970. O velhinho "Carvalho Araújo" singrando os mares invernosos do Atlântico, passaria pelo Cais do Pico, Velas de São Jorge, Praia da Graciosa, Angra do Heroísmo, Ponta Delgada, Funchal e só aproaria a Lisboa na manhã do dia 4 de Janeiro de 1971. Na noite de 4 para 5 não perdi o comboio para Tavira. Eram sete horas da manhã os portões do CISMI abriram-se para dar entrada aos novos instruendos. Dez dias depois terminava o meu primeiro passeio ao serviço de Portugal. Voltaria ao Faial um pouco mais de três anos depois.
Abraço transatlântico.
José Câmara