quarta-feira, 15 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24145: Historiografia da presença portuguesa em África (359): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Veja-se o pormenor da capa deste livro, parece objeto estranho, mas é peça em chapa de ferro espessa, destinada à prisão de escravos pelos tornozelos e pelos pulsos, simultaneamente. O indivíduo era obrigado a permanecer sentado, sem se poder levantar; a peça é provida de um fecho com chave, tem 35cm de comprimento, e é proveniente de Ouro Preto, pertence à coleção do Museu Nacional de Etnologia. No seguimento da primeira narrativa, estamos chegados agora à existência de companhias majestáticas, António Carreira encontrou documentação do maior interesse nos arquivos, refere os dois grandes mercados do tráfico, a Senegâmbia e Angola e a importância de Santiago, daqui "a mercadoria" partia para o Brasil e Cuba. Obra fértil em explicações quanto à importância da economia cabo-verdiana, a contabilidade das companhias majestáticas, ficamos a saber como era identificados os escravos, a conhecer os tipos de instrumentos de prisão, de tortura ou de humilhação, a dor maior virá na descrição dos tipos de castigos corporais, é arrepiante. Obra pioneira, é justo aqui realçá-la por ter aberto portas a estudos mais fundamentados para o conhecimento de aspetos do nosso colonialismo que permaneceram muito tempo na penumbra.

Um abraço do
Mário



Notas sobre a escravização, a pensar sobretudo na Senegâmbia (2)

Mário Beja Santos

O livro Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos, por António Carreira, 2.ª edição revista, Universidade Nova de Lisboa, 1983, é obra pioneira. Estava esgotada a edição de 1977, havia muitas solicitações, as investigações sobre o comércio negreiro estavam em alta. Carreira adianta explicações: “Concordámos com a ideia da reedição até porque durante os últimos meses voltámos a frequentar com assiduidade os Arquivos Históricos do Ministério das Finanças e Ultramarino, fazendo pesquisas nos livros de contabilidade das Companhias monopolistas do século XVIII com vista a detetar novos elementos sobre o tráfico negreiro e o comércio em geral nas áreas de Cabo Verde, Cacheu, Bissau, Angola, Pernambuco, Maranhão e Pará (…) Por duas razões insistimos na análise do tráfico português: chamada de atenção dos estudiosos deste País para a necessidade de se ocuparem em trabalhos de investigação arquivística, para o que fornecemos pistas; tentativa de anular a alergia que eles têm manifestado a respeito do tema”.

O comércio negreiro feito por portugueses irá sofrer uma profunda alteração em 1755 com a criação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que iria atuar numa área entre o Cabo Branco a Angola, limites que vieram a ser restringidos para a área entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas, limitação que tinha em vista a formação de uma outra empresa, a Companhia de Pernambuco e Paraíba, atuando no setor de Angola. Interessa-nos falar da primeira, António Carreira encontrou farta documentação sobre este tráfico e procura explicações para o seu reduzido volume: a existência entre grupos étnicos de cultura islâmica de um forte poder dos régulos, em particular dos Mandingas; o desvio de levas de escravos para os mercados do interior (no Senegal, no Mali, e zonas periféricas). É uma pertinente investigação, que ele assim remata: “A conclusão a tirar da análise da evolução do tráfico através dos tempos e dos sectores é de que foi a Angola a grande sacrificada. O sector Senegal-Serra Leoa gozou de verdadeiro privilégio. O território angolano sofreu uma sangria demográfica em benefício da América do Sul (em especial o Brasil) e central (Cuba)”. Mas também esclarece o seguinte: “Por reduzidos que tivessem sido os contingentes saídos dos rios de Guiné e de Cabo Verde, não podiam ser tão insignificantes. E se não tivéssemos levado a efeito o levantamento da contabilidade da empresa monopolista do século XVIII, pouco ou nada se podia apresentar”.

A posição portuguesa que fora de relevo no século XVI e até às primeiras décadas do século XVII não suportou a concorrência da Inglaterra, da Holanda e da França, que passaram a ter um papel dominante nesta área do Atlântico. E tece o seguinte comentário: “O nosso traficante era tímido e hesitante. Não se aventurava a empates de dinheiro a médio ou longo prazo. Tanto na Inglaterra como na Holanda as casas reinantes e a alta finança investiam no tráfico e em navios para o corso. O século XVII marcou a viragem para a formação de companhias fortemente apetrechadas, destinadas aos tratos e aos resgates. A situação na Guiné e em Cabo Verde continuou a piorar e levou à formação da Companhia de Cacheu, Rios e de Comércio da Guiné, mal terminou o prazo concedido a esta empresa foi criada a Companhia do Estanco, do Maranhão e Pará, empresa que foi muito mal recebida. Anos volvidos é formada outra empresa, a Companhia de Cacheu e Cabo Verde”.

O investigador António Carreira analisa um conjunto de fenómenos sociopolíticos e económicos suscitados pelo aparecimento do ouro e de diamantes no Brasil, que vai criar um entusiasmo entre os portugueses para ali irem viver, e disserta sobre as relações económicas entre a colónia brasileira e Lisboa. Os dados que compulsou permitiram-lhe apresentar dados sobre os escravos comprados pela Companhia do Grão-Pará e Maranhão, o papel económico desempenhado pela urzela de Cabo Verde, os panos de algodão produzidos nas ilhas de Cabo Verde, a natureza de subsídios, donativos e outras taxas, as alcavalas cobradas na última fase do tráfico e assim chegamos à marcação a ferro quente dos escravos. Escreve Carreira: “Numa primeira fase a marcação tinha por finalidade principal a identificação dos escravos pertencentes à Coroa, fossem eles adquiridos, fossem recebidos em pagamento de direitos ou de rendas pelos contratadores. Poucos anos depois, os contratadores, para não serem defraudados, passaram igualmente a marcar os seus escravos”.

Refere também a identificação dos escravos, e desperta-nos para alguns aspetos curiosos quanto a designações:
“Adultos: cabeça; peça; marfim ou ébano de Guiné; escravo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro boçal; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou molecona; molecona de peito atacado (a que tivesse os seios bem formados); mocetão ou mocetona.
Crianças: minino; cria de peito; cria de pé (a que anda).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos. Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75m de estatura para designar a peça-da-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e batismo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício.
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado com a pena de prisão com grilhão nos pés.
Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à tutela do seu senhor.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física.”


Carreira também nos dá uma lista de tipos de instrumentos de prisão, é uma lista horrível, inclui instrumentos de tortura, de prisão ou de humilhação, devem ter sido copiados e aperfeiçoados os modelos usados pela Inquisição. Esta lista de castigos corporais merece a Carreira bastante detalhe, custa ler tanta violência, tanta severidade e tanta desumanidade.

É vasta e muito útil a bibliografia que António Carreira anexa sobre o tráfico português de escravos. Obra pioneira pois, é justo relembrá-la pelo timbre de rigor e a abertura que deu a novas investigações.

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24129: Historiografia da presença portuguesa em África (358): "Notas Sobre o Tráfico Português de Escravos", por António Carreira, 2.ª edição revista; Universidade Nova de Lisboa, 1983 (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

O Navio Negreiro de Castro Alves com os seus "Tinir de ferros… estalar de açoite…", foi declamado num comício em Almada no verão quentinho do 25 de Abril.

Eu tinha vindo de Luanda de férias propositadamente para assistir em Lisboa ao "desfazer da feira".

De tanta gente a assistir aquele comício havia algumas pessoas acreditando que era actual a leva de escravos das colónias.

Na altura era fácil convencer toda a gente.