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sábado, 30 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27166: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (9): Secas e fomes levaram ao longo do séc. XX à morte de mais de 100 mil pessoas


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1. "30 pessoas morriam por dia, no Mindelo", em São Vicente, no auge da fome que grassou em Cabo Verde... A cidade do Mindelo, cuja economia era muito dependente do tráfego marítimo, foi profundamente afectada pela guerra, e  não escapou aos horrores da seca e da fome. Aí estavam estacionados alguns milhares (c. de 3300)  expedicionários portugueses, como o 1º  cabo Luís Henriques, nº 188/41 (1º Pelotão, 3º Companhia, 1º Batalhão, RI 5).

Os mortos eram levados em esquife e enterrados em vala comum, no cemitério de Monte Sossego. Não se sabe qual foi a morbimortalidade entre os soldados, mas também deve ter sido elevada (por turbeculose, doenças diarreicas, e outras). (No total, em mais de 6 mil homens mobilizados para Cabo Verde, nesta época, terá  morrido  circa 1 %.)

Foi, só mais tarde,  ao ler o romance Hora di Bai (editado pela Vértice em 1962), do Manuel Ferreira (1917-1992), expedicionário como o meu pai (esteve no Mindelo entre 1941 e 1947), que eu me apercebi  dessa tragédia imensa, a seca e  a fome que assolou, em 1941/43,  o arquipélago de Cabo Verde (e depois de novo, no pós-guerra em 1947/48). 

E que matou meninos como o Joãozinho, que rondavam o quartel e que o meu pai protegia, dando-lhe os restos de comida. Era o seu 'impedido".

Recordo-me de o meu pai, à beira de completar 90 anos, em 2010,  já não ser capaz de dar, com precisão, as datas em que terá ocorrido o pico da epidemia de fome. Muitos de nós ainda não tiveram  a consciência dessa tragédia que, de resto, também não foi conhecida pela população portuguesa metropolitana da epoca. Cabo Verde ficava longe... Até por que em no Portugal metropolitano a morte, nomeadamente a mortalidade infantil (mais de 120 casos por 1000!) era banal, a par da mortalidade por tuberculose entre os jovens (10% de todas as mortes!). 
 

Luís Henriques
 (1920 - 2012).
Faria 105 anos
em 19 de agosto de 2025.
Os números que o meu pai cita (30 mortes por dia no Mindelo), devem referir-se ao 1º semestre de 1943. Ele diz que "não viu,  ouvia dizer",  
quando esteve internado ("quatro meses"), no hospital militar (ou anexo, um estabelecimento de repouso,  a nordeste da cidade do Mindelo), já na parte final da sua comissão. Ele esteve 26 meses na Ilha, como expedicionário entre julho de 1941 e setembro de 1943. 'Farto de engolir pó ". Teve alta da junta médica hospitalar em 17/8/1943. 

De qualquer modo, trinta mortos por dia era muita gente, numa ilha que não teria mais do que 15 mil habitantes (em 1940), e contou com a presença de mais de 3300 (!) expedicionários, entre meados de 1941 e finais de 1943 (o que dava um elevada densidade militar na ilha: 4,5 habitantes por cada expedicionário).

Os "expedicionários" fizeram o que puderam,  organizando esquemas de socorros à vítimas nas zonas onde estavam aquartelados (Lazareto, etc.).

Mais de 2/3  dos do total dos efetivos  (c. 6500 homens) estavam afetos à defesa do Mindelo (ou seja, do porto atlântico,  Porto Grande,  ligando a Europa com a América Latina, a par dos cabos submarinos).

Só havia “vapor” (barco), com mantimentos e correio, de três em três meses…  A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram milhares e milhares de mortos (c.  20 mil em todo o arquipélago) tiveram impacto na consciência de bom português,  bom cristão e bom lourinhanense, que era o 1º cabo Luís Henriques, órfão de mãe aos dois anos (vítima de tuberculose, na sequência ainda da pneumónica ou "gripe espanhola" que matou 2% da população portuguesa, que era então de 6 milhões).

O seu "impedido", o Joãozinho, de 5/6 anos (se bem recordo), que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Estava o meu pai  no hospital. Deu todo o dinheiro que ali tinha (c. 16 escudos) para o enterro do seu "Joãozinho". Ouvi muitas vezes esta história dolorosa na minha infância...


Secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX: uma tragédia quase ignorada ainda hoje pelos portugueses


O século XX em Cabo Verde foi marcado por uma trágica sucessão de secas e fomes que dizimaram a população, forçaram a emigração em massa e deixaram cicatrizes profundas na memória coletiva do arquipélago.

Estes períodos de crise, longe de serem meros desastres naturais, foram exacerbados por 3 factores principais:

  • negligência da administração colonial portuguesa;
  • políticas agrárias inadequadas;
  • vulnerabilidade estrutural de um território semiárido.

(i) Causas (estruturais e conjunturais)

  • Clima saheliano, muito variável: precipitação baixa e irregular, concentrada em poucas semanas (sobretudo ago-set), com longos períodos secos; anos sucessivos sem “água grande” provocavam quebras de safra em cadeia; o regime de chuvas depende do posicionamento/força da Frente/Zona Intertropical e de variações atlânticas, o que amplifica a irregularidade anual;
  • Base alimentar frágil:  forte dependência do milho (e feijões) que, quando falhava(m) seguia-se fome, doença e mortalidade;
  • Degradação ambiental: solos insulares delgados , erosão, sobrepastoreio e arborização insuficiente, limitando retenção de água e resiliência agrícola;
  • Fatores político-económicos coloniais:  fraco  investimento público, prioridades orçamentais restritivas no Estado Novo, falhas de abastecimento/armazenamento de água, mercado (inclusive especulação), e uma resposta tardia à crise.

(ii) Principais crises de secas e fomes no séc. XX

As crises mais devastadoras ocorreram em três vagas principais: no início do século, nos anos 20 e, de forma particularmente brutal, na década de 1940.

(i) A Viragem do Século: 1901/04

O início do século XX já anunciava as dificuldades que estariam por vir. Um ciclo de seca severa entre 1901 e 1904 provocou uma fome generalizada, resultando em mais de 20 mil mortos.

As três razões que explicam a situação de total desproteção da população:

  • falta de investimento em infraestruturas de armazenamento de água,
  • dependência de uma agricultura de sequeiro;
  • ausência de um plano de contingência por parte do governo colonial.

A resposta tardia e insuficiente, focada em trabalhos públicos de pouco impacto, não foi capaz de mitigar a mortalidade e o sofrimento.


(ii) A Crise dos Anos 20: 1921/22

Duas décadas depois, a história repetiu-se com contornos ainda mais dramáticos. A fome de 1921/22, novamente desencadeada por uma seca prolongada, ceifou a vida a dezenas de milhares de cabo-verdianos.

A situação foi agravada pela crise económica que Portugal atravessava, durante a I República, e a seguir ao fim da I Grande Guerra, o que limitou ainda mais a capacidade e a vontade de prestar auxílio à colónia.

A emigração, principalmente para São Tomé e Príncipe em condições de trabalho análogas à escravatura, tornou-se a única via de escape para muitos, desestruturando famílias e comunidades inteiras.


(iii) A Grande Fome dos Anos 40: O Auge da Tragédia


A década de 1940 representa o período mais sombrio da história contemporânea de Cabo Verde, com duas vagas de fome de uma violência inaudita. Em 1943 estavam no Mindelo o meu pai, como expedicionário, e o Amílcar Cabral, como estudante do liceu.

1941/43: uma seca implacável mergulhou o arquipélago numa crise alimentar sem precedentes; a produção agrícola colapsou; as reservas de alimentos esgotaram-se rapidamente; a resposta do governo de Salazar foi notoriamente inadequada, com a ajuda a chegar a conta-gotas e a ser distribuída de forma ineficaz;  cerca de 20 mil pessoas morreram de inanição e de doenças associadas à subnutrição.

1947/49: mal refeito do choque anterior, o arquipélago foi atingido por um novo e ainda mais mortífero período de seca e fome; esta crise, que ficou gravada a fogo na memória popular, resultou numa catástrofe demográfica: Ilhas como Fogo e Santiago foram particularmente afetadas, com relatos de aldeias inteiras dizimadas.

Foi neste contexto de desespero que ocorreu o "Desastre da Assistência", a 20 de fevereiro de 1949, na cidade da Praia. Centenas de famintos que aguardavam a distribuição de comida junto a um centro de assistência, morreram quando um muro desabou sobre a multidão. Matou oficialmente 232 pessoas (há quem estime em 3 centenas ou mais)

Este evento trágico tornou-se um símbolo da inépcia e da desumanidade da resposta colonial à fome.


(iv) Mortalidade estimada

Estudos demográficos clássicos (António Carreira, compilados e discutidos por trabalhos recentes da Universidade Nova de Lisboa) estimam as seguintes perdas populacionais líquidas em termos de mortes (e alguma emigração de crise), superiores a 100 mil;
  • 1902–1903: –21 899 pessoas (≈ 12,5% da população)
  • 1920–1921: –22 886 (≈ 10,0%).
  • 1941–1943: –18 679 (≈ 6,2%).
  • 1947–1948 (“o Flagelo de 47”): –44 600 (≈ 16,3%).

Observação: estes números são estimativas robustas usadas na historiografia cabo-verdiana; variam ligeiramente por fonte, mas dão a ordem de grandeza das perdas humanas.


(v) Consequências e Legado

  • Elevada Morbimortalidade por inanição e epidemias associadas (disenterias, etc.):  estima-se que as fomes do século XX tenham causado a morte a uma parte significativa  da população cabo-verdiana (mais de 100 mil no séc. XX);
  • Emigração forçada/contratada como válvula de escape: dezenas de milhares de cabo-verdianos seguiram para as roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe ao longo do século (primeiras vagas desde 1903; picos nas décadas de 1930–50); as condições foram duras e marcaram a memória coletiva: muitos cabo-verdianos foram enviados à força, em condições desumanas, para trabalhar nas plantações de cacau e café, numa forma de trabalho forçado que deixou um legado de trauma e exploração;
  • Desestruturação Social: a perda de vidas e a emigração massiva desestruturaram a sociedade cabo-verdiana, com um profundo impacto nas estruturas familiares e comunitáriasm
  • Reconfiguração social e cultural: reforço da diáspora e das remessas; trauma coletivo refletido em obras como Chiquinho (Baltasar Lopes) e em canções de resistência sobre “Fome 47” ou a "Hora di Bai", de Maniuel Ferreira;
  • Consciência Política / Mudança política a longo prazo: a gestão desastrosa das crises de seca e fome por parte do regime colonial português alimentou o contestação ao imobilismo do Estado colonial; refiorçou o sentimento nacionalista e foi um dos catalisadores para a luta pela independência, que seria alcançada em 1975; no pós-independência o país investiu em dessalinização, açudes/valas e redes de abastecimento para reduzir a vulnerabilidade (embora a variabilidade climática permaneça); te,-.se procuradeo também reflorestar as ilhas.

As memórias destas tragédias continuam vivas na cultura cabo-verdiana, presentes na música, na literatura e na tradição oral, servindo como um lembrete constante da resiliência de um povo que, apesar de abandonado à sua sorte, soube sobreviver e reconstruir o seu futuro.

Em resumo choques climáticos recorrentes atingiam uma agricultura de sequeiro muito dependente do milho, sobre solos frágeis e com infraestruturas e políticas coloniais inadequadas. Quando a chuva falhava um ou dois anos seguidos, a produção ruía e o arquipélago, com pouca capacidade de armazenar/redistribuir alimentos, entrava rapidamente em crise de subsistência com mortalidade e êxodos significativos.

Apresenta-ae a seguyir um ronologia das grandes secas e fomes em Cabo Verde no séc. XX, com referência às ilhas mais afetadas e alguns elementos de contexto (chuva, mortalidade, emigração).

Cronologia resumida – Secas e Fomes em Cabo Verde (séc. XX)

1902/03
  • Contexto: 2 anos seguidos de “fome de sequeiro” (chuvas quase nulas).
  • Ilhas mais afetadas: Santiago, São Nicolau, Santo Antão.
  • Consequências: ~22 mil mortos (12,5% da população).
  • Início de emigração em massa para roças de São Tomé (contratados).

1920/21
  • Contexto: nova falha de chuvas após ligeira recuperação.
  • Ilhas: Santiago e Fogo muito castigadas; escassez generalizada.
  • Consequências: ~23 mil mortos (10%).
  • Aumenta fluxo emigratório para São Tomé e EUA.
  • “Milho do Brasil” (importado) foi crucial, mas tardio.

1941/43
  • Contexto: falhas de safra coincidentes com restrições da Segunda Guerra Mundial (importações limitadasm dificuldades de transprote marítimo).
  • Ilhas: quase todo o arquipélago, mas Santo Antão e São Nicolau registam graves perdas.
  • Consequências: ~19 mil mortos (6%).
  • Epidemias de disenteria e malnutrição.

1947/48 – “O Flagelo de 47”
  • Contexto: seca prolongada, colheitas de milho quase nulas.
  • Ilhas: todas afetadas, com gravidade em Santiago, Fogo e São Nicolau.
  • Consequências: ~44,6 mil mortos (16%). Grande mortandade em povoados do interior.
  • 20/02/1949, Praia – “Desastre da Assistência”: colapso de muro numa distribuição de alimentos → 232 mortos oficiais. Aumento dramático da emigração contratada para São Tomé e clandestina para América. Trauma coletivo cristalizado em música, literatura (Chiquinho).
  • Distribuição geográfica dos impactos: Santiago: historicamente a mais vulnerável (densidade populacional alta, pouca resiliência) | Santo Antão e São Nicolau: também muito afetadas, devido ao peso da agricultura de sequeiro ! Fogo e Brava: alternância entre boas colheitas e fome, mas sempre fortemente dependentes do milho | al, Boavista e Maio: menos agrícolas, mais dependentes de importação → crises por falta de abastecimento, não tanto por seca direta.

Notas finais:
  • Perdas humanas totais (1900/50): ~100 mil mortos em crises de fome — cerca de 1/3 da população média do período.
  • Emigração de crise: estima-se que dezenas de milhares saíram como contratados para São Tomé (1903–1970), e muitos outros emigraram clandestinamente para EUA, Senegal, Guiné, Portugal.
  • Após 1950s: melhores redes de abastecimento, socorros externos (ajuda alimentar), dessalinização e obras hidráulicas reduziram a mortalidade em secas, mas não eliminaram a dependência externa.

Fionte: Pesquisa LG | Assistente de IA (Gemini, ChatGPT)
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Eram os tempos da sardinha para 3 (ou 4), e em que não havia incêndios, embora houvesse piromaníacos e incendiários como haverá sempre, mas os resíduos das florestas eram poucos para aquecer as lareiras e defumar os enchidos.

Fernando Ribeiro disse...

Flagelados do Vento-Leste, poema de Ovídio Martins (S. Vicente 1928 - Lisboa 1999)


(Para Manuel Lopes, poeta e romancista patrício)


Nós somos os flagelados do vento-leste!

A nosso favor
não houve campanhas de solidariedade,
não se abriram os lares para nos abrigar
e não houve braços estendidos fraternalmente
para nós!

Somos os flagelados do vento-leste!

O mar transmitiu-nos a sua perseverança,
Aprendemos com o vento a bailar na desgraça,
As cabras ensinaram-nos a comer pedra
para não perecermos.

Somos os flagelados do vento-leste!

Morremos e ressuscitamos todos os anos
para desespero dos que nos impedem
a caminhada
Teimosamente caminhamos de pé,
num desafio aos deuses e aos homens,
E as estiagens já não nos metem medo,
porque descobrimos a origem das coisas
(quando pudermos!...)

Somos os flagelados do vento-leste!

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos
E as vozes solidárias que temos sempre
escutado
são apenas
as vozes do mar
que nos salgou o sangue,
as vozes do vento
que nos entranhou o ritmo do equilíbrio
e as vozes das nossas montanhas
estranha e silenciosamente musicais

Somos os flagelados do vento-leste!

Ovídio Martins


P.S. - Antº Rosinha, em Portugal sempre existiram incêndios e sempre existirão, porque são uma forma de a Natureza se renovar. Não há volta a dar-lhe. O que não existia, era tantos eucaliptos e tantos pinheiros bravos, que ardem como palha, nem tanto despovoamento do interior. Em 1966, concretamente, morreram 25 militares no combate a um incêndio ocorrido na serra de Sintra. Durante as muitas caminhadas que fiz na serra de Sintra aos fins de semana, estive mais do que uma vez no local onde eles morreram, que se situa perto do convento dos Capuchos. O local está assinalado por uma cruz e uma placa de mármore com os nomes das vítimas, e o terreno em volta estava totalmente desmatado. Para lá se chegar, sai-se de uma encruzihada próxima dos Capuchos, onde confluem as estradas para o palácio da Pena, para o convento dos Capuchos, para o Pé da Serra e para a Peninha. Sobe-se por uma "picada" que sai dessa encruzilhada no sentido do Monge (um túmulo pré-histórico) e que acaba por desembocar perto da Peninha. Os pormenores do trágico incêndio podem ser lidos aqui: https://serradesintra.net/grande-incendio-de-6-setembro-de-1966/

Antº Rosinha disse...

Fernando esse incêndio de Sintra, em 1966 representou bem o que era um país que não estava habituado a incêndios.
Nem bombeiros preparados havia para encarar tal tragédia, que hoje como vemos, encara-se tragédias daquelas como coisa costumeira, excepto claro, militares impreparados para aquilo que não estão preparados.
Mas sempre houve incendiários em Portugal, uns por piromania, outros por inveja do vizinho, outros por interesses particulares.
Infelizmente hoje, Portugal e os europeus mediterrâneos, é todos os verões a arder.
Havia em Angola grandes queimadas, mas devidamente organizadas, e limitadas.
Também não era bom.

Anónimo disse...

Não fazia a minima ideia do que se passava em Cabo Verde nos temos de colónia!
Obrigado pela contribuição para o nosso saber.
V.Teixeira