1. O melhor assistente de IA para sabermos coisas sobre os nossos comes & bebes na Guiné ? São os nossos "intendentes" e os nossos "vagomestres", pois claro.
Infelizmente são poucos, os que integram a Tabanca Grande e estão ainda vivos. Mas felizmente que temos o nosso Aníbal Silva (ou Aníbal José da Silva, como está registado na Tabanca Grande) que tem sido inexcedível na sua vontade em partilhar informação (oral e escrita) sobre estas matérias, que já estão tão esquecidas da maior parte da malta... Além disso, ele é o autor da notável série "Vivências em Nova Sintra", de que se publicaram 16 postes, desde 4/3/2025 até 17/6/2025.
Perguntei a alguns de nós se se lembravam do "per diem", a verba para a nossa alimentação diária... Já ninguém se lembrava da quantia em escudos (24$50), que o gen António Spínola, no relatório do comando relativo à situação em 1971, propunha que passasse para 33$00 (um aumento de mais de 1/3), face ao agravamento do custo de #géneros de 1ª necessidade" bem como dos "transportes da Metrópole para a Província". (Não sabemos se até ao final da guerra houve alteração da verba para a alimentação diária no CTIG.)
Era com esses 24$50 que o vagomestre tinha de nos alimentar diariamente (3 refeições).
Além de informador privilegiado como vagomestre e como gestor da cantina de Nova Sintra, ao tempo em que esteve com a sua companhia, CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), o Aníbal Silva é um excelente e afável contador de histórias e lembra-se de coisas do arco da velha.
O Aníbal (que fez a Escola Comercial e foi técnico de seguros) tem especiais competências em matéria de literacia e numeracia: só podia, pois, ser o homem certo no lugar certo. E ainda hoje guarda (o que é incrível!) documentação daquela época, rekatcionadas com a alimentação e atigos de cantina, e que faz questão de partilhar com o nosso blogue.
Mensagem recente, de 22/10/2025, 09:10Bom dia, caríssimo Luís
Depois da nossa conversa telefónica de ontem, que muito me honrou, procurei e encontrei o livro sobre a alimentação, o "missal" dos vagomestres, que tem umas dezenas de páginas e do qual envio em anexo meia dúzia dessas páginas, digitalizadas.
Caso pretendas, para os teus estudos e análises, posso enviar-te pelo correio os dois "documentos". Na afirmativa, fico a aguardar que me facultes o teu endereço. (...)
De acordo com as ementas nºs 5 e 6. a ração diária de vinho, dos militares, nos anos da guerra do ultramar, era de 0,5 l (0,2 l ao almoço, e 0,3 l ao jantar).
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Aníbal Silva, ex-fur mil SAM, CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70) |
2. O que transcrevo a seguir é um apanhado das conversas que vou tendo com ele ao telemóvel (ele vive em Arcozelo, se não erro, freguesia de Vila Nova de Gaia, já prometemos encontrarmo-nos quando eu for à Madalena).
2.1. São João, frente a Bolama, era abastecido diretamente por Bissau. Tite também. E Fulacunda. E Bambadinca. E, claro, Nova Sintra,
A via fluvial ainda era a mais rápida, económica e relativamente segura (rio Cacheu, na zona Oeste; rio Geba, na zona Leste; canal do Geba e de Bolama, para a região de Quínara; o rio Cumbijã e o rio Cumbijã e o rio Cacine, para a região de Tombali).
O vinho era transportado de Bissau em barris de 100 litros (mais tarde bidões de 200 l, mas já não é do tempo do Aníbal Silva, nem do meu, somos de 69/71,.
2.2. Em Nova Sintra, era através de um afluente do rio Grande de Buba.
Como não tinham outro sítio para os guardar os barris de 100 litros, utilizava um antigo galinheiro, que estava vago; claro que era um sítio de fácil acesso aos "ladrões de vinho" (não havia "guarda á adega").
Uma vez aberto um barril, durava dois a très dias... E a opinião que a malta ainda hoje tem é que vinho que se bebia em Nova Sintra até era de boa qualidade, tinha bom paladar; e de resto toda a gente bebia vinho.
E interessante a informação de que um barril de 100 l dava só para 2 ou dias. Ou seja, não havia risco de oxidar.Utilizava-se um tubo de borracha para encher recipientes mais pequenos como garrafões. Também já não é do seu tempo o uso de garrafões de 10 l, empalhados, para o transporte de vinho (deve ter sido prática dos primeiros anos de guerra).
2.3. Claro que também aqui havia pequenos furtos: havia sempre ums "jeitosinhos" que, com uma broca manual, fazia um furinho na tampa, e com uma borrachinha ia lá encher o cantil.. "Pró petisco".
Tal como havia malta que, no dia de descascar batatas para o rancho levava as calças de camuflado para encher os bolsos..."pró petisco". Os iam de calções, que era o traje habitual...
Tal como havia malta que era capaz de, numa coluna logística ao porto fluvial, no reabastecimento mensal, e antes da chegada ao quartel,. , "desviar uma ou duas caixas de cerveja", gurdá-las no mato em sítio seguro e ir lá depois buscá-las, passadas 24 ou 48 horas.
2.4. Mas também havia a ração de aguardente. A meio da comissão, a Intendência mandou perguntar se a companhia tinha barris de aguardente. O Aníbal disse que não. Passados uns tempos, foi abrir um barril (que julgava ser de vinho) e viu que era aguardente. Havia 300 litros (3 barris) de aguardente, em "stock", intactos!... Bom, deu para o resto da comissão, enquanto a malta esteve em Nova Sintra antes de ir para Tite. Uma ração de aguardente passou a ser distribuída pelos abrigos.
2.5. O Aníbal, vagomestre, tirou a especialidade em Póvoa do Varzim, na antiga Escola Prática de Administração Militar (hoje Escola de Serviços do Exército) ficou também, em Nova Sintra, com a cantina, ao tempo do segundo capitão da companhia que detectou irregularidades na gestão anterior.
Havia um "buraco" nas contas que era preciso sanear... E que ele saneou... (Como "prémio", ficou, no fim, na "comissão liquidatária" da companhia e do batalhão, um "pincel" que ninguém queria, podendo atrasar o regresso a casa.)
Não havia máquinas de calcular, naquele tempo, as contas eram feitas à mão, uma, duas, três, quatro vezes, até baterem certas. E havia um lençol, o famigerado mapa modelo 1, que era um a quebra-cabeças para qualquer vagomestre.
2. Falando há dias com um antigo comandante de companhia, hoje cor art ref, o nosso grão-tabanqueiro Morais da Silva, disse ele que "nunca bebeu vinho em Gadamael" (onde comandou a CCAÇ 2796, entre jan 1971 e fev 1972). Nem ele nem os seus alferes e furriéis,. Bebiam cerveja. Aliás, deixou de beber vindo desde que veio de Angola. onde fez o curso de comandos.
Já não se lembrava do "per diem" nem da ração de vinho diária...Vai perguntar ao vagomestre que é hoje um quadro superior do BCP, reformado. Gaba-se de ter tido excelentes colaboradores em todos os setores de apoio, da saúde (onde teve um 1º cabo aux enf excecional, e de quem toda gente perdeu o rasto) às transmissões, da intendência ao material.
Tem ideia, sim, que a malta se queixava que a Intendência punha uns "pozinhos no vinho".
O Humberto Reis, ex.fur mil op esp /ranger, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) e colaborador permanente do nosso blogue também confirma que os nossos soldados, pro serem resarranchados, recebiam mais 750$00 por mês.
Quando o Gr Comb dele, o 2ª, ia para o destacamento do rio Undunduma, o pessoal metropolitano recebia o seu rancho, confeccionado em Bambadinca, mas a viatura também trazia os "tachos de arroz" que as mulheres dos nossos soldados cozinhavam para eles na tabanca... Cada um tinha um lenço da sua cor.... Em operações no mato, também levavam a sua "marmita" (arroz cozido embrulhado num lenço)...
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Nota do editor LG:
Último poste da série > 2 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27340: A nossa guerra em números (42): com um "per diem" (verba de alimentação diária) de 24$50 (hoje 4,10 euros) dava para fazer uma... ometela simples mas saborosa!










4 comentários:
O João Lourenço, ex-Alf Mil do PINT 9288/72 (Cufar, 1973/74), que vive na Figueira da Foz, já veio aqui em tempos defender a sua dama, a Intendência, negando a adição de pozinhos...Mas por mais desmentidos que se façam, o vinho da Manutenção Militar ficará para a história associado à maldita "cânfora"...(que tem propriedades terapêuticas e antissépticas).
Continuo a pensar que a Intendência, na Guiné, não conseguia assegurar que cada militar "arranchado" tivesse a sua ração diária de vinho de 0,5 litros...No interior, o abastecimento era feito em larga medida por via fluvial: Farim, Bambadinca, Buba, e mais tarde (1/8/1973) Cufar...Mansoa, Bula e Teixeira Pinto seriam abastecidos por terra... Mas o resto era de barco (LDM/LDP da Marinha, barco-turra)...Os "frescos" eram, em geral, entregues por via aérea (DO-27...). E no tempo das chuvas não poderia haver entregas por paraquedas...
Os únicos que comiam bem era a Força Aérea e a Marinha (e, claro, as tropas especiais).
O esforço logístico para abastecer o Exército era enorme. E o vinho é apenas um item (embora volumoso) dos bens de 1ª necessidade: um companhia de 160 homens consumia teoricamente 80 litros de vinho; ao fim do mês, 2400 litros, 24 hectolitros=24 barris de 100 l (mais tarde, 12 bidões metálicos de 200 l).
Em 1973, estavam no CTIG 25,6 mil militares do recrutamento metropolitano (partinos do princípio que o pessoal do recrutamento locval era "desarranchado"). O consumo teórico de vinho, por dia, seria (ou deveria ser) da ordem dos 12,8 mil litros diariamente. Ao fim do mês, seriam 384 mil litros = 3840 hectolitros = 3840 barris de 100 litros...Ao fim de um ano, 46 mil!...
Digam-me que navios tínhamos, fretados ao exército, capazes de assegurar o transporte anual, sem queras, só de 46 mil barris de vinho (para a Guiné...) ?!|... E depois havia a penosa (e perigosa) distribuição pelo mato, dos barris, bidões, garrafões..., pelas tais 220 guarnições militares (no final da guerra)...Um bico de obra!
Agora juntemos ao vinho todos os demais itens de que uma companhia tinha de ser abastecida regularmente: víveres, "frescos", correio, artigos de cantina, medicamentos, fardamento, munições, armamento, combustíveis, materiais de construção civil, etc.
Amigos e camaradas: não damos às vezes a devida atenção a variáveis que condicionam e muitas vezes acabam por ser determinantes no desfecho dos conflitos armados... Todas as guerras têm um fim, até a guerra dos 100 anos... A guerra da Ucrânia há de ter um fim, como teve a da Coreia, Argélia, Vietname, Maldivas, África do Sul, Iraque, Angola... Para além das variáveis geoestratégicas, diplomáticas, políticas e militares (que já nos eram desfavoráveis), tínhamos a demografia, a economia e as finanças a jogar "contra nós"...
Mesmo "orgulhosamente sós", a guerra não era sustentável, a médio/longo prazo (mnais 5 anos), pela simples razão de que o "ventre" da tropa começava a dar horas... O petróleo disparara (400%), havia bichas para a gasolina emn Lisboa, os países produtores de petróleo boicotavam Portugal, a ONU e a OUA incriminavam-nos, os nossos aliados e parceiros tradicionais (incluindo a NATO, a EFTA, etc.) viravam-nos as costas, etc....
A sangria demográfica e sobretudo económica e financeira, a par da quebra do "moral" entre os combatentes e a retaguarda (longínqua), não augurava nada de bom para o 2º semestre de 1974 e para os anos seguintes...
Quando o arroz na Guiné dispara dos 6$50 para os 14$00, em 1974, e nós temos que alimentar meio milhão de guineenses que se acolheram à sombra da bandeira portuguesa..., está tudo dito!...
Não foi pelas armas que o PAIGC obrigou os militares portugueses a optar pelo "golpe de Estado" (que foi o 25 de Abril de 1974), mas sobretudo pelo cansaço, a "usura física e mental" de uma guerra sem solução à vista por total incapacidade do poder político (a elite dirigente do Estado Novo)...
Repare-se: com os 1300 (600 de pré + 700 do "desarrancho") que os meus soldados da CCAÇ 12 recebiam em 1969, compravam 200 kg de arroz...Cinco anos depois, em 1974, com o mesmo patacão (admitindo que não tenha havido aumentos substanciais), compravam 93 quilos... Se tivessem 2 esposas, tinham que mandar uma para volta da casa dos pais... Esta é que é a realidade brutal da "economia política da guerra"...
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