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Quanza > Navio misto, de 2 hélices, construído em 1929 na Alemanha e abatido em 1968. Tinha 133 metros de comprimento e cerca de 6500 toneladas de arqueação bruta. Com 149 tripulantes, possuía alojamentos para 108 em primeira classe, 120 em segunda, 90 em terceira e 214 em terceira suplementar, no total de 532 passageiros. Armador: Companhia Nacional de Navegação, Lisboa. O Isdálio Reis e os seus camaradas da CCAÇ 2317 devem ter sido dos últimos passageiros a viajar no velho Quanza.
Foto: ©
Navios Mercantes Portugueses , página de
Carlos Russo Belo (2006) (com a devida vénia...) . O autor foi oficial da marinha mercante.
Início da publicação da história da CCAÇ 2317, contada pelo ex-Alf Mil Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835,
Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1):
Fotos e legendas: ©
Idálio Reis (2007). Direitos reservados.
Parte I - A CCAÇ 2317 chega a Bissau, a 24 de Janeiro de 1968 (2). IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional em Olossato e Mansabá.
BCAÇ 2835 > CCAÇ 2317 (1968/70) > Emblema da Companhia
O Idálio Reis, de ontem (1967)
O Idálio Reis de hoje (2006)
"A 17 de Janeiro de 1968, o velho
Quanza partia para nos levar a terras de África. Só uma singela recordação dessa data, onde se destaca este trio composto pelo alferes Francisco Trindade e os furriéis Carlos Valério e António Nabais" (IR).
"A Companhia era maioritariamente constituída por gente da periferia do grande Porto, como o caso destes 3 vizinhos: os soldados Sá Pereira, Manuel Carvalho e Ângelo Marques" (IR)
"A 24 de Janeirode 1968, a CCAÇ 2317 recebia as boas vindas, na parada do aquartelamento de Brá". (IR)
Assunto: Uma aclimatação de 2 meses, o quanto bastou para enveredar por um sinuoso rumo, a uma fatídica zona do Sul da Província. Aí, num local estranho da região do Forreá e apenas no efémero prazo de 11 meses, houve lugar às facetas mais pérfidas da guerra, em que do mito e do mistério sobrou só o nome: Gandembel/Ponte Balana.
Caros Luís e demais companheiros tertulianos:
O alvor do dia 24 de Janeiro de 1968, já com o velho Quanza fundeado, começava suavemente a despontar. O Sol, no longínquo do horizonte, parecia emergir brandamente das águas mansas do Golfo, a dardejar os seus primeiros raios de luz avermelhando a aurora, fogosamente. Parecia prenunciar que o dia que então se aclarava, iria manter-se estranhamente acalorado.
Era um clima substancialmente diferente do que há uma semana havíamos deixado na longínqua Lisboa, que ainda vivia estarrecida de um pluvioso Inverno que a fustigava com inundações incontroladas, e que puseram a descoberto todas as misérias dos bairros de lata, onde causaram tanto desespero e dor, pelas perdas inteiras de escassos espólios e de muitos dos seus moradores.
Bissau à vista
E a madrugada desse dia, desde logo fez concitar nos seus tripulantes, a tomarem comportamentos estranhos, tornando-os inquietos, nervosos, a provocar-lhes um sôfrego alvoroço. É que a amurada do navio, proporcionava a um fácil alcance da visão, distinguir com bastante nitidez, um casario denso: era Bissau. E, enquanto o Sol descoberto, descrevia a sua trajectória zenital, mais ele resplandecia na sua rutilância.
Pairava uma atmosfera quente e abafada, que logo começaram a inquietar os nossos corpos, a ressudarem uma humidade adensada e pegajosa, que repassava os novos camuflados dos recém-combatentes. É que, aos mobilizados da guerra colonial, foi-lhes infundido para fazerem gala na sua verdadeira farda de apresentação. E todo o BCAÇ 2835, com o seu crachá ao peito, pontificado por uma divisa a preceito −«Nas armas, singulares»−, aí estava na Província da Guiné, em missão de soberania, na salvaguarda de uma Pátria una e indivisível. E a organização política e administrativa da Nação que então preponderava, fazia acrescentar que também era inalienável e imprescritível.
Sufocados por uma esquisita temperatura e uma pesada vestimenta, era pisada terra firme, e mais uma imensidade de soldados
periquitos arribavam a uma terra estranha, para ficarem à mercê de um impreciso e incerto destino. E o Quanza, serenamente parado nas imediações do célebre cais de Pidjiguiti, ia sendo esventrado dos haveres encomendados, com a saída dos individualizados parcos espólios, metidos a esmo nuns sacos esverdeados que a roupa os avolumava.
O bulício envolvente era essencialmente de cariz militar, em que uma distendida caravana de camiões pesados se perfilava, a fim de nos transportar para algures, nos arrabaldes da cidade. E logo que nos arrumámos nas viaturas, seguimos por uma larga estrada que já percorria a sua periferia, onde se divisavam inúmeras casas térreas de bairros degradados, com bastante população negra e em que prevaleciam muitas crianças quase desnudadas, até se entrar num espaçoso aquartelamento com diversos pavilhões prefabricados: era o denominado quartel de Brá.
E na sua parada imensa, nos perfilámos já sob uma inclemente temperatura, para receber as boas vindas de um grupo de oficiais superiores do estado-maior de Arnaldo Schultz, bem protegidos sob um espaçoso guarda-sol. Findo tal cerimonial de unida ordem, qual testemunho de coesão e disciplina, foram então alojados os 168 militares da Companhia.
E a partir daqui, com os homens postos em sossego, teve início a sua efectiva integração no contingente bélico-militar da Província. Começava a traçar-se o seu destino colectivo, que alguns mandantes lhe haviam de reservar e impor nesta arredia e inclemente terra africana. O aparato militar que nos envolvia, parecia ser urdido segundo uma orientação preconcebida de há muito, de tal modo a que não nos se deparassem tempo suficiente para que tomássemos alguma consciência do que este novo embate da vida nos poderia provocar.
De uma regulamentar descrição sumária da situação a viver nos próximos tempos, fomos instruídos para tomar uma conduta ordeira e domesticada, a manter no absoluto durante alguns dias, sem contactos externos, procurando que a tropa conseguisse absorver de maneira célere e no isolamento, a primeira das grandes provações, resultante da ampla diferenciação climática encontrada. Aqui se estampava, muito certamente, o início de um julgamento de inocentes sem justa causa. Que não se aspirasse a grandes ilusões!
Três semanas em Brá e os primeiros ecos da guerra
Durante um período de cerca de 3 semanas, fomo-nos quedando por Brá, onde mesmo assim, era possível manter fúteis contactos com muitos militares em situação de transição. Alguns, com a comissão já avançada, faziam chegar aos nossos ouvidos, relatos da sua guerra e que se travavam pelos cantos da Província, que nos fechava em silente mutismo, absortos pela crueza das suas narrativas, que não deixavam de causar uma indefinida perplexidade quanto à sua perceptibilidade. Os factos descritos pareciam ser complexos enigmas, de difícil decifração, mas o rescaldo do eco das palavras era de todo assimilado, para uma cismada busca do seu real significado.
Durante este lapso de tempo, houve uma visita do Presidente da República Américo Tomás . Tal serviu para a Companhia receber o seu armamento ligeiro, e ficar incumbida de montar segurança a essa dignitária personalidade, a exercer ao longo da estrada de Bissalanca. Contudo, o que a tropa denominava de treino operacional, desenrolou-se nos aquartelamentos de Mansabá e de Olossato, desenvolvido aproximadamente durante um mês.
Treino operacional em Mansabá e Olossato
A situação militar naquela região não era muito conflituosa, apesar dos Oio e Morés já terem fama naqueles tempos, e cujos nomes eram temidos naqueles locais. Contudo, nas saídas ocasionais de acompanhamento, não houve nada a justificar qualquer nota de maior destaque, a não ser um ligeiro ataque ao denso povoamento de Mansabá.
Recordo que no
Olossato, a Companhia aí sedeada era comandada pelo então Capitão Azeredo [hoje, o general reformado Azeredo e Leme, com uma folha de serviços exemplar, que o alcandora no galarim dos grandes oficiais do Exército], e que mais tarde após a evacuação de Gandembel, vim encontrar em Aldeia Formosa, já com a patente de major, como comandante de um Comando Operacional − os célebres COPs que Spínola tinha feito criar para as zonas mais nevrálgicas.
Nesse aquartelamento do Olossato, dada a sua localização em território de configuração apaulada, com algumas bolanhas na sua proximidade, viemos encontrar a seguir às inclemências do intenso calor e humidade, o confronto com o segundo dos mais acirrados inimigos −os mosquitos−, afrontando as delicadas ‘peles de pêssego’ dos
periquitos e que nos causticavam sem dó nem piedade. Reconheço contudo, que este flagelo serviu para depressa se criar uma maior imunidade contra os malefícios desta outra praga, embora o paludismo acabasse por nos colher a todos, e quanto era doloroso, por vezes, debelar esta maleita de febres intermitentes.
Quanto a
Mansabá, era um local amplo e frondoso, muito maior do que viríamos a encontrar em Nova Lamego, e as condições de habitabilidade do seu aquartelamento, foram as que melhor fruí durante toda a comissão. Mas foram apenas alguns dias!
Mas sobre toda esta zona, tive há relativo pouco tempo, a grata oportunidade de ler um livro de uma narrativa que se plasma nas díspares vivências que se deparam a cada militar no seu quotidiano, guiadas por ditames que só o labirinto da guerra consegue impor e não quer escamotear, escrito por um antigo camarada que viveu por estas bandas, e que recomendo vivamente; trata-se de
Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto, publicado pela Âncora Editora. Quanto seria importante ter connosco este companheiro para nos contar também as suas estórias!
Porém, ao fim destes 2 meses, o treino operacional findava. A tropa da Companhia parecia estar, em definitivo, inteiramente apta para enfrentar qualquer situação de guerra, fosse onde fosse. Tantos enganos! Para o atestar, não houve qualquer rebuço em nos meterem numa LDG, rio Geba abaixo, rumo ao Sul da Província.
Quem tramou a companhia ?
Em Cacine apeámos, e a 20 de Março [de 1968] chegávamos a Guileje, e ninguém pressagiava a sinistra e fatídica odisseia que doravante estava reservada à CCaç 2317. Ao mandar construir um destacamento fixo, em zona onde o PAIGC detinha um quase inteiro domínio territorial, o estado-maior do comando militar da Província cismou numa táctica militar imprudente, reveladora de uma grosseira insânia, destituída de qualquer preconceito, tanto mais que assentava no propósito de minimizar o poderio militar do adversário.
Quem ousou pensar nesta decisão? Parece que, para os toldados mentores desta ultrajante aventura, o valor da conveniência estava exactamente a par do valor da vida humana, tentando de qualquer modo, atingir-se um putativo fim, sem minimamente se olharem aos meios. Não o haviam conseguido até então, e compelia-se uma Companhia sem qualquer experiência, a desempenhar um papel de protagonismo em permanente risco de vida, o de desamparados peões de briga, quais meros joguetes de uma estratégia insolente, e que vai precisar de uma ajuda constante, para não vir a ser dizimada.
Eu que vivi esses tempos tão sofridos, sem hiatos, ao tentar procurar entender esta resolução, não a descortino. E julgo que se cometeu uma ignóbil e hedionda manobra estratégica, que se viria a revelar desastrosa para todas as tropas que estiveram envolvidas nessa infinda operação. Ainda que esta eventual operação de acantonamento obrigasse o PAIGC a alterar a sua conduta militar de forma acentuada, este nunca deu mostras de soçobrar. Ao contrário, quase sempre demonstrou apresentar uma organização à altura das circunstâncias que as NT lhe tentavam mover. Apesar de reconhecer que tiveram que reforçar o seu poderio militar, bem atestado na forma como veio a agir, o abandono de Gandembel só pode apresentar uma leitura consequente: mais uma vez, as NT soçobraram naquela zona.
E se o desaire não é de todo gorado, tal deve-se ao preponderante papel desenvolvido pelas tropas paraquedistas, que se cruzaram connosco nesta aventura, pela forma extremamente meritória como o souberam assumir. Foram as verdadeiras tropas de elite, que num momento particularmente conturbado para nós, apearam em Gandembel, e coube-lhes a ousadia de conseguirem suster quase radicalmente as acções do PAIGC. Mas, no deve e haver, ficaram a perdurar para sempre, os resultados de uma sentença muito pesada. E estes, sem margem para quaisquer dúvidas, vieram a redundar num rotundo e plangente fracasso, pela quantidade de mortos e estropiados, dos feridos graves, e dos evacuados com maleitas várias, estas doenças que nos vêm chagando no nosso quotidiano.
Já alguém apontou no nosso blogue, o número de 52 mortos e muitos feridos graves. Torna-se-nos muito difícil atestar este valor, caro Zé Neto, mas do que me foi dado a observar e conhecer, considero que as tropas que estiveram mais ou menos envolvidas com a odisseia de Gandembel, entre mortos e evacuados para Lisboa (feridos e doentes), atingem seguramente a centena de homens, como terei oportunidade de ir focando.
Os custos materiais não contam para mim, mas mesmo aqui, quantas razões de queixa a lamentar, onde à falta de tantos meios, até a fome chegou a pairar, não por falta de comida, mas porque houve um longo tempo que se tornou difícil de tragar por manifesta má qualidade.
Oxalá que não seja por este conjunto de razões, que os factos bélicos que atravessaram as vivências de Gandembel/Ponte Balana, estejam praticamente omissos nos arquivos histórico-militares, e que acabarão fatalmente por se apagarem, pelo inexorável determinismo da lei da vida. E por isso, sinto-me profundamente chocado com este procedimento, que em nada enobrece a Instituição Militar. Assim, trair-me-ia, se deixasse perder o passado, de uma parte fundamental das vidas destes deserdados filhos de um deus menor.
Em seu nome, dos que tiveram a desdita de me acompanharem neste longo pesadelo, que se prolongou principalmente entre os meados de Março de 1968 a Maio de 1969, e mormente dos que vimos afastaram-se precoce e compulsivamente do nosso seio, procurarei dar sinal dos amargos momentos vividos, que o denegrido baú das minhas memórias, ainda não arrumou de todo, apesar das poeiras de 4 décadas.Será pois um conjunto de narrativas imperfeitas, mas que poderá vir a ser colmatada por outrens, e os foras-nada ficarão então mais consolados.
Mas, até breve!
Um abraço do Idálio Reis.
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 20 de Janeiro de 2007 >
Guiné 63/74 - P1449: Para breve, a história da CCAÇ 2317, que esteve em Gandembel e Ponte Balana (Idálio Reis)
(2) Vd. posts anteriores do Idálio Reis:
19 de Abril de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)
18 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)
12 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P866: De Cansissé e a Fonte dos Fulas ao Baixo Mondego ou como o mundo é pequeno (Idálio Reis)
12 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P867: Que madrasta Pátria é esta ! (ou o meu comentário à carta do Padre Mário de Oliveira (Idálio Reis)
13 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P874: O que é feito dos nossos relatórios de operações ? (Idálio Reis / Nuno Rubim)
12 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P953: Cansissé, terra de encantos mil (Parte I) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
12 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P954: Cansissé, terra de mil encantos (Parte II) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
25 de Julho de 2006 >
Guiné 63/74 - P988: O soldado paraquedista Lourenço, natural de Cantanhede, morto e enterrado em Guidaje (Maio de 1973) (Idálio Reis)
2 de Agosto de 2006 >
Guiné 63/74 - P1016: Cansissé, terra de mil encantos (Parte III) (Idálio Reis, CCAÇ 2317, Julho de 1969)
19 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1382: Feliz Natal, Próspero Ano Novo, Adeus e Até ao Meu Regresso (7): No longínquo ano de 1968 em Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis)