Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 23 de fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2576: Ser solidário (7): Vinte e tal amigos e camaradas, do Porto e de Coimbra, a caminho de Bissau (Luís Graça / A. Marques Lopes)
O percurso da expedição Coimbra-Bissau, segundo uma infografia do Diário de Notícias, de 16 de Fevereiro de 2008 (que nos foi enviada pelo nosso camarada de Coimbra, o Carlos Marques dos Santos, e que reproduzimos com a devida vénia....).
O António Pimentel, o Álvaro Basto e o Xico Allen foram notícia de caixa alta no Jornal de Notícias, 21 de Fevereiro de 2008 (1). Eles e outros camaradas do Porto integraram-se na A Expedição Humanitária à Guiné-Bissau, promovida pela Associação Humanitária Memória e Gentes, com sede em Coimbra, que partiu no dia 21 de Fevereiro de 2008, pelas 9h00, a caminho de Bissau.
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > A caravana larga, às 9h da amanhã, a caminho de Bissau, aonde espera chegar a 29, depois de fazer quase 5 mil quilómetros... Esta expedição humanitária irá entregar a diversas escolas e instituições materiais didácticos e desportivos, livros, vestuário, calçado, e bens de primeira necessidade para unidades de saúde (soro, desinfectantes, ligaduras, compressas e certo tipo de medicamentos), que foram recolhidos até 8 de Fevereiro. O volume mais importante deste material já tinha seguido por via marítima, num contentor de 20 toneladas. Ao todo são cerca de dois mil caixotes recolhidos.
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > O Álvaro Basto, membro da nossa Tabanca Grande, é o segundo a contar da esquerda. Em princípio, o grupo com cerca de 26 elementos, eram constituído por 12 pessoas de Coimbra e 14 do Porto (grupo onde haverá um maior número de ex-combatentes, e entre eles pelo menos uma meia dúzia de elementos da nossa Tabanca Grande).
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2007 > O António Pimentel, à esquerda, é outro dos membros do nosso blogue e da tertúlia de Matosinhos/Porto que partiu na expedição. Não tenho a lista completa do pessoal que partiu, pertencente à nossa Tabanca Grande. Espero que o A. Marques Lopes a faça chegar ao nosso blogue.
Sei que vários camaradas do Norte estão inscritos no Simpósio Internacional de Guiledje, entre eles, o Álvaro Basto (CART 3492), o António Pimentel (CCS/BCAÇ 2851), o António M. Almeida e Silva (CART 3492), o Armindo Ferreira Pereira (CCAC 1565), o Francisco Allen (CCAC 3566), o João Rocha,(CCS/BCAÇ 2852), o José Estêvão Pires (BCAC 2851), o José Teixeira (CCAC 2381), entre outros... Do Centro, vai o Paulo Santiago (Pel Caç Nat 53)...
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > O Paulo Santiago (Águeda) e o Álvaro Basto (Matosinhos), ambos membros activos do nosso blogue.
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > Reconheço dois elementos da nossa Tabanca Grande, o Zé Teixeira (o primeiro da esquerda) e o Álvaro Basto (o terceiro).
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > O nosso querido Zé Teixeira (Matosinhos)
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > Mais expedicionários, que não consigo identificar.
Coimbra, Taveiro > 21 de Fevereiro de 2008 > A caravana está quase pronta a partir. De Coimbra a Bissau, são "oito ou nove dias" de viagem, num trajecto com cerca de 4.725 quilómetros, "numa média de 800 a 900 quilómetros por dia", disse aos jornalistas Fernando Ferreira, um dos responsáveis pela organização (2).
Fotos: © A. Marques Lopes (2008). Direitos reservados.
1. No dia 21 de Fevereiro de 2008, às 13h, o A. Marques Lopes mandou-me a seguinte mensagem, telegráfica, acompanha de uma série de fotos, algumas das quais reproduzimos aqui:
Os expedicionários para a Guiné partiram hoje, às 9 da manhã, de perto do Estádio Sérgio Conceição, em Taveiro.
2. No dia seguinte, por volta das 18h, acrescentava o seguinte:
Falei com o Álvaro Bastos agora. Dormiram ontem no hotel Ibis, em Tânger. Saíram de Marraqueche há pouco e vão a caminho de Agadir, onde vão dormir.
A. Marques Lopes
3. O Paulo Santiago acaba de mandar uma mensagem ao editor do blogue, por telemóvel (23 de Fevereiro de 2008, 18h00):
Saímos hoje de Agadir. Vamos dormir a Leghoun. Prevista entrada na Mauritânia na segunda-feira. Abraço.
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Notas de L.G.
(1) Vd. poste de 21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2567: Ser solidário (6): Pimentel, Álvaro Basto e Xico Allen: Juntos a caminho de Bissau, na rota do Porto-Dakar (A. Marques Lopes)
(2) Vd. postes de:
13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2531: Ser solidário (4): Coimbra encaixotou o maior contentor de apoio humanitário à Guiné-Bissau
17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2548: Ser Solidário (5): Ainda a Expedição à Guiné-Bissau (Carlos M. Santos)
(3) Esta aventura solidária começou quando José Moreira, principal precursor da iniciativa, e ex-combatente na Guiné em 1966/67 , em Jumbembem, durante a Guerra Colonial, como furriel miliciano, e regressou ao país. O que viu na Guiné-Bissau ainda hoje o magoa e o choca: "Foi uma desilusão ver tamanha destruição", recordou.
O contentor que foi carregado no sábado vai seguir por via marítima. "Sai no dia 19, numa viagem de 12 dias por mar", referiu Fernando Ferreira. Quando chegar à Guiné-Bissau, no dia 5 de Março, vai ser descarregado na cooperação portuguesa. Por terra, seguem três carrinhas e cinco jipes. Durante a viagem, os aventureiros passam por Portugal, Espanha, Marrocos, Sahara Ocidental, Mauritânia, Senegal e Guiné-Bissau. Em Tânger, entrarão no continente africano.
José Moreira enalteceu o apoio de várias entidades, nomeadamente "a Câmara Municipal de Coimbra, o Governo Civil, a Junta de Freguesia de Taveiro, a Associação de Deficientes das Forças Armadas de Coimbra ou a Embaixada de Portugal em Guiné-Bissau", como de outras instituições, como "a Saúde em Português, a Ambar, a Babou, a Portline ou a empresa Águas do Luso".
É a primeira vez que a expedição é organizada pela "Memórias e Gentes", uma associação humanitária criada em Novembro do ano passado.
Este ano, além de muita solidariedade e esperança, levam roupa, brinquedos, material escolar, bens e equipamentos de saúde... Tudo para um país onde falta (quase) tudo. "Os hospitais estão em ruptura total. Vamos levar , lençóis, ligaduras, medicamentos...", disse Fernando Ferreira.
As escolas são outras das prioridades. Por isso, vão entregar em mão, nas escolas do interior, livros em português. Aliás, a grande maioria dos bens vão ser entregues em mão.
Esperam receber em troca... "um sorriso"... "E um toque de pele. Muitas crianças nunca viram um branco e encostam a pele à nossa"...
Fonte: Adapt. de Diário das Beiras, 11 de Fevereiro de 2008 >Patrícia Cruz Almeida:
Solidariedade - Expedição humanitária vai ligar Coimbra a Bissau: Distribuir esperança para receber sorrisos.
Guiné 63/74 - P2575: Estórias do Juvenal Amado (4): A pequena e adorável Mariama que eu conheci no reordenamento de Bengacia (Juvenal Amado)
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74
1. MARIAMA
Abriu os olhos de espanto e de medo ao ver a minha Berliet, que entrava pela aldeia levantando nuvens de pó. Virou costas e correu no sentido contrário, abrigando-se nas pernas da mãe que, com alguma curiosidade, nos observava junto da sua cabana destruída.
Mariama era uma bajuda de palmo e meio. Tinha um tom de pele café com leite escuro, os olhos grandes e castanhos. O cabelo todo entrançado com amuletos nas pontas. Vestia uma blusa sem mangas e um pano fula enrolado à cintura. Um ronco, num dos tornozelos dos seus pés descalços, completava a vestimenta.
Foto 1> Juvenal Amado junto a um monte de tijolos já fabricados para utilizar na reconstrução de Bangacia
Parei a viatura, saltei dela com a minha arma e disse-lhe adeus, ao que ela respondeu escondendo-se, ainda mais, na roupa da mãe.
Íamos começar a reconstrução de Bangacia, que tinha sido destruída pelos guerrilheiros algum tempo atrás. Sempre achei que aquilo tinha sido um ataque por encomenda.
Assim, quando reconstruímos, fizemos algumas bem feitorias, entre as quais, casas mais espaçosas e telhados de zinco, em vez dos de capim, que tinham que ser mudados de vez em quando, posto médico e escola.
Foto 2> Bangacia depois do ataque
As alterações eram nitidamente do agrado da população. Fizeram-se vários grupos de construção. Sapadores, alguns elementos do Pel Rec que tinham conhecimentos de pedreiro e carpinteiro. Também vieram camaradas das Companhias Operacionais, onde pontuava o Saltinho como grupo mais numeroso.
Cada chefe de família tinha que produzir blocos de barro para utilizar na construção da nova casa, para a sua família. Assim amassavam o barro de cor cinzenta com palha misturada, enchiam um molde e os blocos dai resultantes iam sucessivamente ficando ao sol, até se tornarem duros.
Eu e os outros condutores de Berliet acarretávamos os blocos para o local escolhido pelos seus donos. Escusado será dizer que era preciso pôr ordem nos carregamentos, pois todos queriam ser os primeiros. Assim sempre que não tinha coluna para qualquer lado, lá estava eu logo de manhã a transportar os tijolos de barro, hora para uns, hora para outros.
Foto 3> Bangacia depois do ataque
Fotos: © Juvenal Amado (2008). Direitos reservados.
A Mariama espreitava sempre de longe. Eu acenava-lhe e, à hora do lanche, que fazíamos às 10 horas da manhã, oferecia-lhe com um gesto um pouco de pão. Acabava alguém por vir buscar para ela, mas ela nunca.
Como tinha sempre doce da ração de combate, passei a levar-lhe. Mas pouco e pouco as outras crianças, que andavam sempre à nossa volta, foram-na trazendo mais para perto.
Passado algum tempo, mal eu chegava, vinha a correr dar-me mão. Levava-me ao pé da mãe, mulher de talvez vinte e poucos anos, com dois filhos e a nossa heroína.
A idade dela era difícil de descobrir, tendo em conta os filhos e a vida dura das mulheres da Guiné que rapidamente perdiam a sua juventude.
O pai era mais velho e tinha outras mulheres, como era costume. A riqueza de um Homem Grande, media-se pelo números de mulheres e cabeças de gado.
O nome por que eu era conhecido, fazia-lhes confusão uma vez que Amado era muito parecido com Amadu ou Mamadu. Quando eu o mencionava, os Homens Grandes faziam uma expressão de gozo, metiam a mão à frente da cara Heeeeeiiiiiiiiiiiiii nosso cabo é manga de calabanta (1). Pensavam que eu estava a gozar com eles.
Mas a Mariana, mal eu chegava, ouvia logo a vozita dela a chamar, Almadu…. Almadu, ainda complicou mais o nome. Vinha à procura das guloseimas que no fundo se resumiam a pão, latas de cavala e sardinha. Todo o dia andava comigo para cima e para baixo, em cima da viatura mandando nos outros garotos. Era a mais pequenita de todos.
A reconstrução seguia em bom ritmo. Faziam-se as paredes exteriores dividia-se por dentro em quatro salas iguais, punha-se o vigamento e por último o telhado.
Sempre que se atingia uma fase, assistia-se a estranhas negociações. Os Homens Grandes ofereciam galinhas para serem os primeiros a terem as casas prontas, mas à medida que viam a mesma a ficar concluída, começavam a esquecerem-se das promessas.
Os Islamitas são bons negociadores. Então os camaradas diziam que não lhes acabavam a casa e mais, furavam-lhe os tectos todos. Com gestos simulavam um chuveiro, onde eles passariam a tomar banho. Com grande alarido as negociações começavam em cinco galinhas, mas por fim o Homem Grande só dava uma. E levava tempo a negociar.
Nós riamos pois para nós, naquele caso, era tudo uma brincadeira. Entretanto passei a ser recebido na casa da Mariama. Ela pedia-me tudo o que lhe diziam para pedir: Almadu parte (2) peso, Almadu parte lata etc, etc... Eu na medida do possível, lá lhe comprei uns chinelos coloridos, que ela nem para dormir os tirava.
A mãe torrava-me mancarra (3) numa panela de ferro e foi ali que provei a bianda (4) com molho da polpa que envolve a amêndoa da palmeira.
Um dia a mãe disse-me, mais por gestos de por fala, se eu queria levar a Mariama no Lisboa. Eu ri-me, fiquei embaraçado e disse-lhe que não era possível.
A idade, para além das dores nas pernas e nas costas, traz também por vezes alguma sabedoria e hoje, quando penso neste episódio, vejo com clareza a mensagem daquela mãe.
Trazer a pequenita comigo era livrá-la da mutilação (5), da miséria, do analfabetismo e de uma esperança de vida que não ultrapassa os quarenta anos. A Mariama terá, se chegou à pré-adolescência, passado por essa prova cruel do Fanado, terá sido vendida por dois sacos de mancarra e um de cola, para ser a 2ª ou 3ª mulher de um homem bem mais velho.
A mãe não terá tido consciência do alcance total do seu pedido. Mas estava no seu instinto de mulher tentar um futuro diferente para a filha.
A reconstrução de Bangacia ficou pronta. Foi um prazer ver aquelas casas alinhadas, com arruamentos largos os telhados brilhando a sol.
Passei a ir menos vezes à povoação, embora lá fosse sempre que ia às Duas Fontes. Levava latas de conservas e pão, que trocava por laranjas e mangas, com os garotos. Guardava sempre o melhor para a pequenina Mariama.
Um dia também me apareceu no quartel...
No momento que escrevo estas linhas, peço para que o destino lhe tenha reservado um futuro diferente das milhões de Mariamas que na Guiné sofrem com a pobreza e possivelmente não acreditam que possa haver cura para os seus males.
Juvenal Amado (*)
Notas do autor:
(1) Malandro.
(2) Dá-me um escudo.
(3) Amendoim.
(4) Arroz.
(5) “Fanado”: trata-se de uma prática horrível, onde se mutilam a meninas nos órgãos genitais. Por todo o Mundo Islâmico é praticado. Há no entanto algumas vozes de mulheres africanas, que fazem uma campanha muito corajosa contra esta prática, que as limita como mulheres inteiras, no pleno direito e uso, de todas as suas capacidades.
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2. Comentário de Luís Graça
A Mutilação Genital Feminina (MGF) pratica-se tradicionalmente em 28 países (da África subsariana onde se inclui a Guiné-Bissau, e nalguns países do Próximo Oriente). Não se pratica em todos os países muçulmanos. É bom que se diga que não é imposta pela religião muçulmana. Atinge também mulheres cristãs (coptas, no Egipto) e não tem nada a ver directamente com o Corão ou os preceitos islâmicos... Hoje em dia a MGF tende a ser criminalizada pelo Código Penal da maior parte dos países (incluindo o nosso).
De facto, o Corão não a impõe... Seria, de resto, anterior ao profeta Maomé, remontando ao tempo dos faraós do Egipto... Nos países bérberes,do norte de África (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia...) não se pratica... Nem na Indonésia, por exempo, que é o maior país muçulmamo do mundo (ou pratica-se apenas em pequenas comunidades)... Esta prática é ferozmente combatida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um grave problema de saúde pública, afectando todos os anos cerca de 3 milhões de meninas e de adolescentes...
Portugal também é hoje um país de risco, devido à existência de uma importante comunidade guineense, donde se destacam os fulas...
É bom que se diga e que saiba que a MGF ("circuncisão feminina" ou "fanado das mulheres") era tolerada no nosso tempo, em nome do relativismno cultural, do sucesso da política spinolista Por uma Guiné Melhor e dos superiores interesses da Nação... Duvido que Spínola e o seu Estado-Maior alguma vez se tivesse preocupado seriamente com a sorte das meninas da Guiné (fulas, mandingas, beafadas - os três principais grupos islamizados, onde se praticava e ainda pratica a MGF).
Há já vários postes sobre a MGF (a cerimónia do fanado não se resume à circuncisão femimina nem masculina, é um ritual de passagem, importante em certas sociedades tradicionais, e sem a submissão ao qual uma rapariga ou um rapaz não são socialmente aceites) (**).
L.G.
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Notas dos editores:
(*) Vd. último trabalho da série Estórias do Juvenal Amado, de 18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2551: Estórias do Juvenal Amado (3): Como hóspede do Xime (Juvenal Amado)
(**) Leiam o dossiê do Público sobre a MGF... A jornalista Sofia Branco tem feito uma excelente trabalho de investigação e divulgação sobre a MGF na Guiné-Bissau.
Vd. postes sobre a mutilação genital feminina publicados no nosso Blogue:
30 de Novembro de 2007> Guiné 63/74 - P2316: E as Nossas Palmas Vão Para... (2): Os que lutam, na Guiné-Bissau, contra a Mutilação Genital Feminina (MGF)
25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2131: Mutilação Genital Feminina: É crime, diz explicitamente o novo Código Penal (A. Marques Lopes / Luís Graça)
10 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1580: Fanado ou Mutilação Genital Feminina: Mulher e direitos humanos: ontem e hoje (Luís Graça / Jorge Cabral)
15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVI: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina (Luís Graça)
14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLVII: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)
3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto)(5): ecumenismo e festa do fanado
4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
Guiné 63/74 - P2574: Estórias de Guileje (9): O massacre de Sangonhá, pela Força Aérea, em 6 de Janeiro de 1969 (José Rocha)
Guiné > Região de Tombali > Gadamael - Porto > s/da > Tabanca, reordenada pelas NT.
Guiné > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael -Porto > s/d > Vista aérea do destacamento e da sua pista de aviação. Este destacamento deverá ter sido abandonado pelas NT em finais de 1968 (O destacamento de Mejo foi evacuado em 28 de Janeiro de 1969, na mesma data de Gandembel e de Balana; os aconteciementos referidos nesta estória do José Rocha ocorreram em 6 de Janeiro de 1969).
Fotos: Autores desconhecidos. Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Gentileza de: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2007). Direitos reservados (Editada por L.G.).
Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 2410, Os Dráculas (Junho de 1969 a Março de 1970) > O Alf Mil José Barros Rocha posando sobre a roda de uma peça de artilharia 11,4 .
Foto: © José Barros Rocha (2007). Direitos reservados.
1. Texto de José Rocha (1), enviado em 19 do corrente:
Assunto - Guileje, Gadamael e Mata do Cantanhez...
Amigo Luis:
Ontem na minha visita ao Blogue, li um relato do Zé Teixeira (2) acerca de um bombardeamento efectuado pela Força Aérea na zona de Gadamael em 1969, e tendo em vista precisar a data do mesmo, decidi - sem qualquer intenção de entrar em preciosismos - dar o meu contributo (3).
Aí vai: No dia 6 de Janeiro de 1969, cerca das 8 horas da manhã as forças do PAIGC, estacionadas na antiga pista do quartel abandonado de Sangonhá, iniciaram um ataque bastante cerrado com armas pesadas ao Destacamento de Ganturé, tendo caído algumas granadas no interior do mesmo.
O pessoal do destacamento [de Ganturé] respondeu com morteiro 81 e 60, mas o ataque continuava. Então pediram apoio a Gadamael, que reagiu com mesmo tipo de armamento e, se a memória não me falha, também com o obus 8,8 [, ou peça de artilharia 11,4 ?].
Mesmo assim a festa não parava e então pediu-se o apoio aéreo, que surgiu, composto por dois Fiat.
Foto e legenda: © Benito Neves (2007). Direitos reservados.
Pediram-nos a localização provável de onde estávamos a ser atacados, e que sinalizámos com granadas de fumo, disparadas pelo morteiro 81. Dirigiram-se para essa zona e de imediato começámos a ouvir rajadas - eram de anti-aérea - e nós perguntámos aos pilotos se eram eles que estavam a fazer fogo, tendo-nos respondido que não! Então numa conversa entre ambos os pilotos, ouvimos um deles dizer ao outro "senti qualquer coisa no meu aparelho"! E comunicaram-nos que iam regressar a Bissau.
Passado algum tempo regressaram 4 Fiat e mais tarde 2 T-6 e uma DO [- Dornier 27]. Entraram pelo lado de Cacine e de imediato iniciaram o lançamento de bombas, cuja explosão era perfeitamente audível e sentida através de fortes tremores do solo. (Estávamos a uma distância de cerca de 6/8 Kms em linha recta).
A operação terminou cerca das 13 horas. Na tentativa de sabermos exctamente o que tinha acontecido, eu e o Rodrigues (ex-Alferes Miliciano) reunimos um grupo razoável de voluntários, e pedimos ao Capitão para nos deslocarmos ao local, mas a nossa pretensão não teve acolhimento. Apanhámos um grande balde de água fria!
Somente no dia 9 [de Janeiro de 1969, três dias depois], com apoio aéreo, é que fomos ao local. No percurso encontrámos carretéis de fio telefónico com uma extensão de cerca de 4/5 kms, abrigos individuais ao lado da estrada, e, na antiga pista [ de Sangonhá], armas destruídas e pedaços de corpos de negros e brancos e 13 sepulturas. Uns dias depois tivemos a informação de 36 mortos confirmados e muitos feridos.
O aspecto do local era medonho! A terra, cuja cor natural é avermelhada, tinha a cor cinza! O intenso cheiro a putrefacção! Os abutres (jagudis) às dezenas! As árvores queimadas! Enfim...
Fico-me por aqui. Um abraço e até Bissau
José Rocha
Aeronaves DO-27, T-6 e Fiat 91 G (por ordem) > Fotos: gentileza de Victor Barata, membro da nossa tertúlia, criador e fundador do blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74
2. Comentário de L.G.:
Até Bissau, camarada Rocha, grande Drácula de Guileje! ... Obrigado pelo teu testemunho em directo!... Que vale ouro ! Tu não relatas algo que tenhas ouvido falar (em Bissau, na esplanada da 5ª Rep, o Café Bento, ou à beira do Geba, a comer ostras e a beber cerveja)... Não, camarada, tu estiveste lá, em Sangonhá, três dias depois, em 9 de Jeneiro de 1969.
Quando formos a Guileje (ou Guiledje), no dia 1 de Março de 2008, no próximo sábado, eu quero ouvir-te contar o resto da história de Sangonhá... Foste parco nas palavras, o que eu entendo... Ao que ocorreu em Sangonhá (de eu nunca tinha ouvido falar), chamei-lhe massacre... Não estou a exagerar, pois não ? Haverá ainda antigos guerrilheiros do PAIGC, sobreviventes deste terrível bombardeamento da nossa Força Aérea ?!... Se sim, gostaria de ouvir os seus depoimentos, para podermos finalmente juntar as peças do puzzle e fazer mais um pequeno luto do grande luto que foi esta grande tragédia, para a nossa sacrificada geração...
Se alguém passar por Sangonhá, deixe uma simples flor, silvestre, colhida no mato, e uma tosca cruz nas imediações da actual povoação, para lembrar aos jovens guineenses (e aos eventuais turistas distraídos que por lá passarem, por engano) que, naquela terra, houve bravos guineenses que foram massacrados pela FAP - Força Aérea Portuguesa, numa luta desigual, em 6 de Janeiro de 1969... Não estou a fazer nenhum juízo de valor sobre os nossos camaradas da Força Aérea que fizeram o seu dever, bombardeando as posições do PAIGC, tal como os combatentes do PAIGC faziam o seu dever, combatendo-nos e matando-nos... Estou só a constatar a brutalidade da guerra na Guiné...
Na altura o PAIGC ainda não tinha os Strela, apenas algumas velhas anti-aéreas (5)... Mas em Sangonhá, e por todo o Tombali, também morreram tugas, inúmeros camaradas e amigos nossos... Verguemo-nos à memória de todos esses bravos, de um lado e de outro, que a morte ceifou no auge da vida... Que o seu supremo sacrifício não tenha sido em vão!... Que todos nós e os nossos filhos e netos possam aprender com os erros (trágicos) do passado e com a brutalidade da guerra, de todas as guerras...
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Notas de L.G.:
(1) Vd. postes de:
6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1568: Álbum das Glórias (8): Os Dráculas, CART 2410, Guileje (José Barros Rocha)
18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1443: Contributo para a história da construção do aquartelamento de Guileje (José Barros Rocha, CART 2410, Os Dráculas, 1969/70)
(2) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2545: Blogoteria (41): Guileje, Gadamael, Mata do Cantanhez... e a memória das gentes (José Teixeira)
(...) "Chamarra, 16 de Janeiro de 1969:
"Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN.O resultado, pelo que dizem, demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem, não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.
"Quando os Fiat sobrevoaram o IN, foram metralhados por uma quádrupla anti-aérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os bombardeiros T6 apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculámos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou.
"Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos" (...).
(3) Vd. postes anteriores da série Estórias de Guileje:
18 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2552: Estórias de Guileje (8): Como feri, capturei e evacuei o comandante Malan Camará no Cantanhez (Manuel Rebocho, CCP 123 / BCP 12)
11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)
31 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2493: Estórias de Guileje (6): Eurico de Deus Corvacho, meu capitão (Zé Neto † , CART 1613, 1966/68)
30 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2492: Estórias de Guileje (5): Os nossos irmãos artilheiros Araújo Gonçalves † e Dias Baptista † (Costa Matos / Belchior Vieira)
29 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2489: Estórias de Guileje (4): Com os páras, na minha primeira ida ao Corredor da Morte (Hugo Guerra)
27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)
23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2473 - Estórias de Guileje (2): O Francesinho, morto pela Pátria (Zé Neto † )
14 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2437: Estórias de Guileje (1): Num teco-teco, com o marado do Tenente Aparício, voando sobre um ninho de cucos (João Tunes)
(4) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2535: PAIGC - Instrução, táctica e logística (9): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IX Parte): Defesa anti-aérea (A. Marques Lopes)
Guiné 63/74 - P2573: Futebol em Bedanda, CCAÇ 6, 1971/72 (Ayala Botto / Mário Bravo)
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Notas de L.G.:
(1) Vd poste de 6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola
(2) Vd pos21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2566: Em busca de ... (21): Malta de Bedanda, do futebol e dos serviços de saúde (Mário Bravo, Alf Mil Médico, CCAÇ 6, 1971/72)
(3) Vd. poste de 23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)
(4) O António Pimentel (ex-Alf Mil Rec Info, CCS/BCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70) é um dos nossos queridos camaradas (de armas) e companheiros (de mesa) da Tertúlia do Norte... Está neste momento a caminho de Bissau, devendo já estar na Mauritânia... Aproveitamos para mais uma vez desejar-lhe boa viagem: que os bons ventos de África o leve, a ele e aos restantes camaradas (Álvaro Basto, Xico Allen, etc.), direitinho a Bissau, com saúde e alegria... Vd. postes de:
21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2567: Ser solidário (6): Pimentel, Álvaro Basto e Xico Allen: Juntos a caminho de Bissau, na rota do Porto-Dakar (A. Marques Lopes)
24 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2476: Ser solidário (2): Notícias do Almiro Mendes e do Xico Allen na rota do Dakar, a caminho de Bissau (Álvaro Basto)
A Tertúlia de Matosinhos (ou do Norte) reune-se habitualmente na Casa Teresa, junto ao Porto de Leixões, às 4ªs feiras, à hora de almoço. Mário, espero que um dia possas aparecer.
5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2329: O Hino de Gandembel cantado ao vivo na já famosa Casa Teresa, em Matosinhos, sede da delegação Norte da Tabanca Grande
31 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2395: Tertúlia de Matosinhos: Jantar de Natal, 27 de Dezembro de 2007 (Luís Graça / Zé Teixeira)
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2572: As Nossas Madrinhas de Guerra (4): Madrinhas de Guerra (II) (José Teixeira)
José Teixeira
ex-1.º Cabo Enfermeiro
CCAÇ 2381
Buba, Quebo, Mampatá
1. O nosso camarada José Teixeira enviou-nos mais uma história, destinada à nova série As Nossas Madrinhas de Guerra, que como quase todas as suas intervenções, foca o aspecto mais humano e menos bélico da sua experiência como Enfermeiro na Guiné.
2. Madrinhas de Guerra (II)
Por José Teixeira
Pouco antes de partir para a aventura na Guiné, cruzei-me com uma amiga de alguns anos, a Arminda. Logo me pediu para ser minha madrinha de guerra e lá escrevi a sua morada na listagem de candidaturas, poucas, às quais nunca fiz a vontade.
Nos dois extensos anos que vivi no ambiente de guerra escrevi e ditei algumas cartas para madrinhas de guerra e ou namoradas, para pais de namoradas a pedir autorização de namoro, ou para no regresso da guerra, poder namorar à porta de casa, mas para os outros.
Eu, por opção pessoal não tive madrinha. No entanto, a Arminda foi-me muito útil no acompanhamento de um camarada que infelizmente viveu um terrível drama amoroso.
Quando após regressar, e me encontrei com ela identificando assim, o estranho amigo a quem o meu camarada, surripara a sua morada é que ela entendeu toda a trama.
Vamos a factos.
Já lá iam cerca de oito meses de comissão, quando o Esgalgado, alcunha de um camarada, cujo nome real nunca me deu para memorizar, começou a aparecer na caserna em Buba, pelas duas três horas da manhã, com umas cervejas a mais no estômago. Tinha uma voz grossa e incomodativa, uma língua comprida e afiada. Acordava meia caserna e eu sendo o seu companheiro do lado era o maior mártir.
Cansado de tanta perturbação, para quem dia sim dia não abalava às cinco da matina para montar a protecção à equipa de Engenharia que andava a construir a nova estrada de Buba para Quebo, dispus-me a pegar nele por um braço e trazê-lo para fora da caserna, com o objectivo de tentar saber o que se passava, a razão de tão grande mudança no seu comportamento, que nos estava a afectar a todos.
Caso bicudo. Casado, com um filho. A esposa queixava-se que não recebia correspondência, embora lhe escrevesse todas as semanas.
Por outro lado um tio viúvo, irmão de sua mãe, o qual, na sua partida para a Guiné, lhe propusera a cedência a título gratuito, de uma pequena casa de sua propriedade, mesmo ali ao lado da que habitava. Uma forma da esposa, (operária têxtil) e filhinho viveram, baixando assim os custos com o aluguer. Este, escrevia-lhe contado cenas de infidelidade da esposa, enquanto a mãe lhe escrevia a dizer que era tudo mentira o que o tio escrevia, pois a jovem esposa, passava muito tempo em sua casa e lhe era profundamente fiel.
Esta confusão gerou no Esgalgado uma perturbação psíquica, que o levou aos copos em excesso, ao isolamento e a uma irritabilidade permanente que ainda afastava mais os camaradas.
Amenizado o problema com o desabafo, que durou até ao amanhecer, encontradas formas de evitar o extravio da correspondência, enviando-a para a direcção de sua mãe, a calma voltou à caserna, dois ou três dias depois.
Veio de férias à Metrópole. Regressou e a vida foi continuando.
Tempos mais tarde, o seu comportamento alterou-se de novo. Embora não me afectasse directamente, senti que ele era de novo rejeitado e menosprezado pelos camaradas. Os conflitos pessoais sucediam-se, pelo que, numa alta madrugada em que o vi no exterior da caserna com a G3 na mão, provoquei novo encontro e fiquei apavorado com o que ouvi.
O cerne da questão agora estava no tio que sempre mantivera a versão de que a mulher lhe era infiel.
Este senhor, tinha convidado a sobrinha por afinidade a ir a Lisboa com ele, onde iria tratar de uns assuntos pessoais. Pagou-lhe a passagem de barco do Barreiro, onde moravam, para a capital, o almoço, o jantar e. . . também queria pagar-lhe a noite a dois.
Ela rejeitou, fugiu-lhe e foi para casa da sogra viver, desde então.
Naturalmente que o meu amigo ao saber, ficou profundamente perturbado e concluiu que afinal quem desviava a sua correspondência era o seu querido tio.
O sonho dele agora era regressar para matar o familiar a quem confiara a esposa.
Foram muitas horas de conversa, passei a ser o melhor amigo, o confidente.
Como complemento arranjei-lhe uma madrinha de guerra à altura. Dei-lhe a morada da Arminda e desafiei-o a escrever-lhe e convidá-la para madrinha de guerra, sem denunciar a pessoa que lhe indicara o seu nome para madrinha.
Estranhou que na resposta, ela logo quisesse saber o seu estado civil.
E agora! Quando souber que sou casado manda-me dar uma volta. Comentava ele, que possivelmente tinha pensado num namorico
Não. Diz-lhe a verdade, insisti eu.
Assim fez. Para seu espanto, ela pediu-lhe de imediato a morada da esposa. Mais um estranho pedido, que foi atendido com alguns custos, enquanto lhe ia contando um pouco do seu drama. Ela exigiu que ele escrevesse uma carta à esposa a dizer que tinha uma madrinha de guerra. Ficou perturbado, mas por pressão minha, anui.
Uns tempos depois elas, encontraram-se algures em Lisboa.
O restante tempo que passou na CCAÇ 2381, até regressar ao Barreiro, foi calmo. Recebia todas as semanas carta da esposa e da madrinha de guerra. Queria que eu as lesse, mas apenas aceitei as da minha amiga, que continuava intrigada, quanto à forma como ele tinha sacado a sua morada.
Tornou-se uma excelente confidente. As suas cartas ajudaram-no imenso a ultrapassar o seu problema. Mas, estava lá dentro do seu espírito o veneno, que não o deixava em paz: a atitude de seu tio. Nunca mais teve paz aquele jovem.
Numa das nossas conversas que se prolongavam, noite dentro, descobri que outrora um seu irmão tinha falecido em combate em Angola. Logo lhe propus uma carta para o Comandante Chefe a expor a sua situação e pedir o fim de comissão, pois segundo uma lei existente, quem tivesse irmãos mortos em combate, podiam se o requeressem furtar-se a ir para o então Ultramar.
Oito dias depois, tinha na mão Guia de Marcha para Lisboa, uns dois meses antes do fim da Comissão.
Consegui desenfiar-me para uma consulta no Hospital em Bissau e acompanhei-o ao barco na sua partida da Guiné.
Mais calmo e com toda a situação plenamente esclarecido, lá partiu, deixando três promessas a este amigo.
1 - Não faria qualquer mal ao tio.
2 - Iria esperar a sua Companhia ao Porto de Lisboa.
3 - Ia escrever-me a contar a evolução da situação.
Deixou-me estupefacto, mas feliz com uma confidência de última hora, no abraço de despedida em que ambos chorávamos de alegria e de medo de não nos tornarmos a encontrar: - Quando naquela noite em Empada, vieste ter de novo comigo e eu tinha a G3 na mão, salvaste-me a vida, pois tinha-a ido buscar para dar um tiro nos cornos!
Até hoje, nunca mais consegui notícias dele. Soube por camaradas comuns, que já faleceu. Paz à sua alma.
A Arminda, essa ficou de boca aberta, quando uns tempos depois, nos encontrámos e soube a outra parte da estória. Também ela perdera o contacto desde o tempo em que ele a informara que ia regressar. Ainda escreveu para a esposa, sem resultado.
Zé Teixeira
_____________
Nota dos editores:
Vd. último post da série de 20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2562: As Nossas Madrinhas de Guerra (3): Quem as não teve ? (Luís Graça / João Bonifácio / Paulo Salgado)
Guiné 63/74 - P2571: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (3): A Lusofonia e... a Arqueologia de Uma Guerra (Luís Graça / Pepito)
Foto do Xico Allen, tirada na sua viagem de 2005. Ele é o mais andarilho de todos nós, e na Guiné movimenta-se como peixe dentro de água. Desde que lá voltou em 1998, tem lá ido com frequência. Partiu de novo, ontem, numa caravana automóvel com mais duas dezenas e meia de camaradas e amigos da Guiné, do Porto e de Coimbra. A segunda vez, só este ano.
Na foto pode ler-se a oração em verso: "Santo Cristo dos Milagres / Nesta capelinha oramos / Para sempre sorte dares / Aos Gringos Açorianos".
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Restos de granadas de artilharia que foram andonadas pelas NT em 22 de Maio de 1973, aquando da saíde de Guileje...
Foto: © Xico Allen (2005). Direitos reservados.
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2006 > O brasão da CCAV 8350 (Os Piratas de Guileje), restaurado como se fosse novinho em folha... Foi a última unidade de quadrícula de Guileje, tendo abandonado esta posição em 22 de Maio de 1973, na sequência da ofensiva do PAIGC (Operação Amílcar Cabral, 18-22 de Maio de 1973).
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > 2006 > "Laranjada Convento / Mafra / Marca registada"... Restos arqueológicos de uma guerra... e que hoje figuram no Museu de Guiledje. Na iamgem pode lers-se: "Composição: Sumo - Popa e óleo de laranja - Açúcar granulado - Água esterelizada / Corado artificialmente / Fabricado por Francisco Alves & Filho Lda / Venda do Pinheiro"... Houve muita gente, na Metrópole, a ganhar dinheiro com a guerra, a começar pelos industriais do sector agroalimentar... Ainda conheci o Sr. Francisco Alves e um dos seus filhos, quando trabalhei na administração fiscal em Mafra, em 1973... Constava que o seu sucesso, nos negócios, tinha começado no tempo da guerra de Espanha (1936-1939)...
Na Guiné (como de treso nos outros Teatros Operacionais), o "ventre da guerra" obrigava, por seu teu turno, a uma tremenda logística... Quantos camaradas nossos não terão morrido ou sofrido para que esta garrafa de laranjada Convento chegasse a Guileje ?
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2006 > O que resta do orgulhoso aquartelamento de Guileje, que tinha a fama de ter os melhores abrigos da Guiné, feitos pela Engenharia Militar...
Fotos: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2006). Direitos reservados (Editadas por L.G.).
Guiné > Região de Tombali > Guileje > 2005 > Foi a nossa foto de Natal de 2005 (1) > "Apropriações"... Escreveu o fotógrafo, o Pepito: "Depois de vir ontem de Guiledje, onde tirei esta fotografia, posso-te falar de apropriação pela natureza: uma carcaça de camião com mais de 30 anos, envolvida por uma árvore que entretanto por lá nasceu. Nem que se queira, não se pode tirar o esqueleto de lá"...
Em resposta, o editor do blogue escrevia isto: "Amigos & Camaradas: É simplesmente fabuloso!... Vejam só!... Já agradeci, mais uma vez, ao Pepito (ou Carlos Schwarz, da AD, do Projecto Guiledje)… Mas ele também está à espera de contributos nossos: quanto mais não seja irmos lá inaugurar o ecoturismo de Guiledje/Cantanhez daqui a dois anos (?). Vamos fazer um concurso para a melhor legenda para esta foto. O Pepito já deu o mote: Apropriações… Eu acrescentei outra: A Mãe Natureza não perdoa nem desperdiça… Mas também podia ser: O abraço da paz"...
Logo outros camaradas nossos, da nossa tertúlia, apareceram a mostrar a sua veia poética e artística, e legendaram a foto com o seguinte:
"Uma árvore vingou-nos do absurdo ao rir-se da guerra feita ferrugem"( João Tunes);
"Íntima Cooperação Portugal/Guiné-Bissau"( Humberto Reis);
"Naturalmente fez-se História" (António Levezinho )...
Foto: © Pepito/ AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) (2005). Direitos reservados (Editada por L.G.).
1. Texto do editor do blogue, L.G.:
Há tempos, há dois anos atrás, o nosso amigo Pepito fez-nos um pedido um algo insólito: precisava de um obus 14, para pôr no seu quartel de Guiledje, agora objecto de escavações, limpeza e reabilitação (2)...
Na altura eu até achava que a bizarria do nosso amigo Pepito se justificava: afinal, Guileje teria sido o único quartel das NT bombardeado pelas... NT. Constava, dizia o Pepito, que o Spínola terá mandado arrasar tudo, posteriormente à retirada da CCAV 8350. Ora esta versão não é correcta... Não sei.
O mais interessante, do ponto de vista da arqueologia da guerra , é que nas limpezas e escavações que o Pepito e a sua equipa do projecto Guiledje, estavam a fazer, em 2006, ia-se encontrando objectos do quotidiano dos tugas, alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto (!) ou garrafas de laranjada, como que reproduzimos acima, de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra... São de facto duas curiosas imagens de uma garrafa com inscrições pirogravadas (que hoje já não se usam)... Em suma, Guileje (ou Guiledje) é também, hoje, um estação de arqueologia militar...
Divertidas, para o Pepito, eram então as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos aliados, os tugas... Há, de resto, gravações áudio e vídeos em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...! Seus f... da p...!
O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações audio, reveladoras do superior sentido de humor fula... Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas. O Pepito também corrobora este ponto de vista: os fulas são orientados para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas... Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e hienas...
Mesmo assim, os fulas e os seus dirigentes têm a consciência de que, presas e predadores no passado, terão de coexistir hoje, pacificamente naquela terra, que é a sua terra... E a Guiné-Bissau ainda vai ser uma grande terra, graças à contribuição de todos os grupos étnicos-linguísticos, alguns outrora inimigos, como os balantas e os fulas... Entretanto, é importante preservar a memória do passado, dos tempos de paz e de guerra... É também para isso que servem os museus (3)...
E ainda mais importante é o reforço dos laços - linguísticos, afectivos, culturais e económicos... - entre os nossos dois povos... É que numa coisa estamos de acordo, muitos de nós, portugueses e guineenses: o mais importante que deixámos na Guiné não foram os restos calcianados das máquinas de guerra, mas um instrumento de paz, de desenvolvimento, de cultura e de ciência, que é a língua, e que é a língua portuguesa... É em Português que nos entendemos, é em Português que aprendem as nossas crianças, fulas, balantas, açorianas, madeirenses, alentejanas, minhotas, de Lisboa ou de Bissau, de Bragança ou de Bafatá...
2. E a propósito de apropriações/desapropriações, e de uma pequena querela linguística (sobre a grafia do topónimo Guiledje em vez de Guileje e que envolveu o prestigiado Ciberdúvidas da Língua Portuguesa), tenho que voltar a transcrever, na íntegra, o magnífico texto, intelectualmente provocador, desassombrado, descomplexado, que o Pepito me mandou na altura (e que eu publiquei, e que está de novo na altura de reler, agora que se fala em mais uma revisão do Acordo Ortográfico entre os países lusófonos).
Seria ocioso recordar aqui que o Carlos Silva Schwarz, Pepito, é engenheiro-agrónomo de formação, licenciado, tal como o Amílcar Cabral, pelo nosso Instituto Superior de Agronomia da Universidade Técnica de Lisboa.
Escrevia então o Pepito (4) (itálico e bold meus):
Prometi que voltaria ao assunto de “Guiledje ou Guileje?”, e aqui estou a dar a minha opinião, não como linguista que não sou, mas como simples utilizador da língua portuguesa.
Gosto por igual, e muito, do português quando o leio nas penas do Eça de Queiroz (Portugal), Pepetela (Angola), Jorge Amado (Brasil), Mia Couto (Moçambique) e Abdulai Silá (Guiné-Bissau). E sei que não é só um português.
São vários, com um tronco comum é certo, mas mesmo assim variado na forma de escrever e falar. Amilcar Cabral dizia que a melhor coisa que Portugal nos deixou foi a língua.
Para o bem e para o mal o português deixou de pertencer só a Portugal. É também a língua de outros povos, que dela se apropriaram e a utilizam diariamente.
Só que o processo de apropriação de algo que não é inicialmente nosso, implica a incorporação daquilo que é nosso. Senão, não há apropriação e continua a ser eternamente estrangeiro. Quando falamos e escrevemos em português, não estamos a fazer nenhum favor a Portugal. Estamos a utilizar algo que também agora é nosso.
Quem não aprecia os fabulosos vocábulos inventados pelo Mia Couto ou a irreverência do Pepetela que começa um dos seus livros com a palavra “Portanto” (forma literariamente criticada alguns anos antes por um seu professor da Faculdade de Letras de Lisboa)?
Para mim, a lusofonia não é uma questão de se falar “bom português”, mas é um processo de exigências e concessões recíprocas na procura de caminhos solidários e cúmplices de aproximação e de desenvolvimento.
A dinâmica de incorporação de novos vocábulos é imparável. No nosso caso, na Guiné-Bissau, o grupo consonântico “dj” é utilizado por dá cá aquela palha. Dizer que se vai a Jufunco ou a Djufunco é o mesmo que ir a duas localidades diferentes. A realidade incontornável é esta.
O bico de obra, não é nosso. É dos especialistas que têm de regulamentar uma língua que, por ser viva, vai ter que aceitar o desafio de pertencer a um numero cada vez maior de pessoas.
Abraços
pepito__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. poste de 14 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXVI: A Nossa Foto de Natal 2005 (Luís Graça / Pepito)
(2) Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se! (Luís Graça)
(2) Vd. postes de:
16 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2544: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (1): Gesto de ternura e simbolismo do herói de Gadamael, J.C.Carvalho
17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2547: Campanha 1 Peça para o Museu de Guiledje (2): O aerograma em que o Casimiro Carvalho prêve o ataque ... (Manuel Rebocho)
(3) Vd. poste de 6 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)
(4) Vd. poste de 6 Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXV: Em bom português (1): Guileje e não Guiledje (Luís Graça / Ciberdúvidas)
Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão
Açores > São Miguel > 1967/68 > Instrução na parada dos Arrifes, S.Miguel. O Botas era um soldado extremoso mas muito atado. Surpreendeu-me perguntando para que servia o cantil... com naturalidade, respondi-lhe que tanto podia levar água como aguardente da Graciosa...
Fotos (e legendas): © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 27 de Dezembro de 2007:
Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXI
EM BISSAU, EM TEMPO DE VESPERAX
por Beja Santos
(i) As insónias agravaram-se, vou algemado para Bissau
A 3 de Janeiro [de 1970], quando estou a preparar os tarecos para quatro dias na ponte Udunduma, Bala, o ordenança do Comandante, vem chamar-me, o Major Sampaio quer que eu vá com urgência à Sala de Operações. Desembaraçado, foi direito ao assunto:
-Oiça, Beja, este mês vai ter um conjunto de operações de grande porte, toda a gente no nosso Sector vai estar em movimento. Acertei com o Major Cunha Ribeiro que uma das forças de intervenção só fará uma dessas operações, o que significa que todos os dias apoiará o reordenamento dos Nhabijões, a segurança da ponte de Udunduma, os abastecimentos às milícias em Amedalai, Taibatá e Demba Taco, idas ao regulado de Badora, correio e o mais que for necessário. Sorteou-se, é o seu Pelotão que vai entrar neste corropio. Dê-se por feliz, V. não sabe, mas neste momento está a decorrer uma operação na zona de Galo Corubal, está lá gente da CCaç 12, do Xime, de Mansambo e do Xitole. Vou agora na DO para lá. O seu trabalho só tem canseira, o risco é mínimo. Sei que anda doente, é uma boa ocasião para reparar forças.
As cartas que enviava para Lisboa e outras paragens deixavam os leitores alarmados ou, no mínimo, atónitos: a letra estava garatujada, incompreensível; casos havia em que as cartas ou bilhetes ou aerogramas iam escritos até meio, parecia que a conclusão ficava para depois, as interrupções eram surpreendentes, para não dizer bizarras; e, excepcionalmente, havia mensagens telegramáticas, quase esotéricas; e um caso houve em que o comprimido que o Vidal Saraiva me receitara (creio que um Valium 10) tivera tal efeito que um risco bem grosso atravessara um aerograma de alto a baixo, rasgando-o.
Em conclusão, estava a ficar fora deste mundo. Com reacções extravagantes (recordo que a um alferes em trânsito, a tomar duche, atirei-lhe com uma embalagem de Vim pela cabeça abaixo, gritou, barafustou, agrediu-o com uma lambada na boca, foi-se queixar ao Comando, tinham chegado os sinais de alarme sobre a minha perturbação), o Vidal Saraiva sentia que eu precisava de uma medicação rigorosa numa outra atmosfera, para eu sair daquele caos. A oportunidade veio a seguir.
Nesse mesmo dia 3, no decurso da Operação Navalha Polida fez-se um prisioneiro que teria de ser ouvido em Bissau, após interrogatórios preliminares em Bambadinca, já que o prisioneiro se revelava conhecedor das várias bases do PAIGC perto do Xime (Ponta Varela, Poidon, Buruntoni ou no Corubal (Galo Corubal, Mina e Fiofioli entre outras).
Regressei da ponte de Udunduma em péssimo estado, estive uns dias nos Nhabijões que deu para perceber, após um patrulhamento minucioso, que as gentes de Madina continuavam a cambar o Geba estreito enquanto prosseguiam as obras do reordenamento que mudavam a face das velhas tabancas.
Houve tempo para conversar com todos acerca do acidente que vitimara Uam Sambu, os rancores que recaíram sobre o Doutor foram-se diluindo aos poucos. Recordo que o papel do Benjamim Lopes da Costa foi decisivo, lembrou a todos o que se passara em Malandim, naquela malfadada emboscada em que morrera uma mulher e ele perdera a cabeça, insultando-me. Depois dos Nhabijões ainda estive dois dias entre Sansacuta, Sinchã Mamajã e no regresso a Bambadinca informaram-me que a meio da tarde seguiria para Bissau algemado ao prisioneiro que fora capturado na região de Seco Braima.
O Vidal Saraiva (*) entregou-me uma carta fechada para o David Payne (*), colocado no HM 241.
Algemado ao prisioneiro, converso com o Pires, nessa época o único furriel em funções, apelo à sua compreensão, nessa altura já sabíamos que estava iminente a vinda do Vitorino Ocante transferido do Pel Caç Nat 63 por troca com o Pina, que partia sem deixar saudades.
(ii) Em Bissau, sonos de quinze horas, a alegria em rever os amigos
A 14, escrevo à Cristina:
“Perdoa a minha exaltação ao telefone, eu devia estar aos berros, tinha acordado ao som do despertador minutos antes, fui a correr para a estação dos correios, com a fralda de fora, tudo resultado das mezinhas que o Payne me prescreveu.
Cheguei no sábado da avioneta, algemado a um rebelde que veio para interrogatórios. O David deu-me logo uma batelada de comprimidos, estou a dormir quinze horas por dia, em casa dele. A Isabel tem sido muito amável, está uma bonita grávida de quatro meses, dá-me almoço e jantar, eu também não aborreço ninguém, só quero estar deitado. Vai ser assim toda esta semana e parte da próxima.
Acredita que desejo ardentemente que venhas para o pé de mim, e tudo farei para que tal aconteça, embora nada saiba sobre o meu futuro, é bem provável que fique em Bambadinca até ao fim da comissão.
Encontrei logo no primeiro dia que aqui cheguei o tenente coronel Teixeira da Silva do agrupamento de Bafatá (agora cidade!) que me disse que ia estudar a possibilidade de eu gozar uma licença. Depois foi falar com alguém dos serviços jurídicos, afinal não tenho direito a férias neste último ano de comissão. Enquanto espero o veredicto final, fui à TAP e marquei uma passagem para 19 de Fevereiro. Como já tens todos os papéis em teu poder, por favor acorda com os teus pais uma data para o nosso casamento. Sugiro que a cerimónia civil seja marcada para os primeiros dias de Fevereiro, se acaso eu não poder ir.
Acabo aqui a carta pois estou muito derreado.
Estou confiante de que daqui a um mês te vou ver”.
No HM 241 procurei falar com o Botelho de Melo, tinha entrado no bloco operatório, a certa altura um dos enfermeiros disse-me que o meu amigo oftalmologista propunha jantar amanhã no Grande Hotel, pelas 20 horas. Disse logo que sim, nos últimos dias os Açores tinham voltado às minhas doces recordações.
2ª Edição, Editorial Inquérito,1959
Capa da das Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues. 2ª ed.
"Estive quase a levar este livro para a Guiné, parece que a minha Mãe mo pediu para ler. Felizmente! Era mais uma perda para a minha memória desse jantar/encontro com o Armando Côrtes-Rodrigues".
Lembrava-me de um jantar havido em casa do Dr. Armando Côrtes-Rodrigues, nessa altura o último sobrevivente do Orpheu. Recebera-me na Rua do Frias, 101, vestia um traje típico, a casaca parecia que tinha uns guizos, ostentava um sorriso muito aberto, a voz estentória. O encontro fora impulsionado pelo padre Simão Bettencourt, seu admirador.
Pouco recordo o que se disse, mas à saída ofereceu-me duas publicações uma das quais eram as Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, de Fernando Pessoa, com introdução de Joel Serrão.
É a primeira vez que leio cartas de Pessoa, alguma da sua prosa publicada no Orpheu, só conhecia a “Mensagem”, assombrei-me com a sua simplicidade. Por exemplo, a carta que escreve a Côrtes-Rodrigues em 23 de Junho de 1915:
“É uma circunstância violenta e aflitiva. V. pode emprestar-me cinco mil reis até ao dia 1 mês que vem? É aflitivíssimo o caso, creia. O pagamento é a pronto e certo no referido dia 1, se não for antes... Se v. me pudesse fazer isto. Valia-me uma conjuntura em que não tenho ninguém para quem me vire... Não estarei no escritório amanhã senão tarde. Mas, vindo v. cá e deixando-me em envelope a quantia, ser-me-á entregue fielmente quando eu chegue...”.
A dedicatória que Côrtes-Rodrigues escreveu a estas cartas tem a data de Fevereiro de 1968, e termina assim: Esta lembrança afectuosa de um Homem que vive só” (BS)
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Mas não me lembro só de Côrtes-Rodrigues, tenho saudades da família Teves Lemos, da Cremilde e de tantos outros. Dei duas recrutas nos Arrifes, tudo correu muitíssimo bem, percebo agora a admiração que se tem pelos militares açorianos, esforçados e cumpridores.
Saio do HM 241, vou ao Batalhão de Engenharia, em Brá, encontro o Rui Gamito e o Emílio Rosa. As cumplicidades nunca se extinguem, prometera ao Alves Correia interceder para chegar mais material de construção civil a Missirá e a Finete. Pela primeira vez abordo a questão do meu casamento e pergunto ao Emílio:
-Se casar aqui, como espero, tu gostarias de ser meu padrinho?.
Ele disse imediatamente que sim. Almocei com eles e fui a correr para casa descansar. Sentia que o tratamento me estava a fazer bem, havia uma quebra na ansiedade, a opressão parecia passar em certas horas do dia.
(iii) Uma época de cartas de amor e de estudos sobre a Guiné
É uma semana em que pouco escrevo, telefono o que posso, estou determinado a vencer a depressão. Leio numa carta à Cristina o rol das mezinhas que o David me receitou: Valium 10, Vesperax, Chimar e Dalcortil-C. A 25, registo num aerograma:
Voltei à consulta, melhorei muito da depressão e da ansiedade, as insónias apagam-se aos poucos. O que parecia grave não é. Aliás, o prazer de conversar não esmoreceu. Ainda tonto e triste, fui jantar com o Botelho de Melo, ele vai regressar em breve, falámos dos Açores e não ponho de parte que possamos fazer a nossa vida lá.
O Botelho de Melo assiste a todos os sinistrados que chegam ao hospital, eu posso imaginar os milagres que ele faz, nutro por ele uma grande admiração.
Amo-te cada vez mais, desculpa o meu silêncio, desculpa as cartas brutais que por vezes te mando, confesso-te que às vezes me sinto muito ferido com a vossa incompreensão sobre o que aqui se passa, mas depois caio em mim e percebo que é muito difícil aceitar que existe uma guerra na selva, quando essa guerra não faz parte dos noticiários dos jornais, rádio e televisão.
Prometo que amanhã telefono.
Recebe muitos beijinhos de saudade”.
Nos aerogramas falo da sua vinda ao mesmo tempo que falo na minha chegada a Lisboa. É um correio paradoxal em que lhe proponho que venha e em que digo recear que ela fique em Bissau sozinha. Afinal, não tenho resposta para coisa nenhuma, quero e não quero, pareço determinado e depois hesito. Imprevistamente, estou há já dez dias em Bissau, acordo sorridente e a cantarolar, pergunto-me pelo Pel Caç Nat 52 e enquanto faço a barba pergunto ao espelho:
-Não tens vergonha de estares aqui sabendo que o teu lugar é lá? - É nesse instante que me sinto curado, o entusiasmo renasceu.
A meio da primeira semana de tratamento vou até ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, folheio sem qualquer fito livros e revistas, estou à espera de uma ou várias surpresas, vou sempre munido do meu caderninho viajante.
Começo a ler o relatório da província da Guiné Portuguesa, ano económico de 1888-1889, pelo governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança.
Copio um parágrafo, para depois fazer perguntas ao comandante Teixeira da Mota: “Se a cultura se for desenvolvendo no rio Geba, como é de esperar num futuro muito próximo devido ao estabelecimento de muitas famílias mandingas desde Malafo até Sambel-Nhanta, a prosperidade da província fica de vez assegurada”. Concretamente, a que estabelecimento se refere Correia e Lança?
Passando para África Ocidental - Notícias e considerações, por Francisco Travassos Valdez, 1864, encontro pormenores sobre a povoação de Geba, páginas 361 e 362:
“Geba contava antigamente dois mil cristãos, além dos habitantes gentios, e de todos os presídios do interior era o mais importante, exceptuando o de Zeguichor, hoje apesar de Geba não ter talvez mais de mil e duzentas almas, incluindo os escravos, está superior em importância a Zeguichor... Geba não tem fortificação alguma ou paliçada, nem maior guarnição do que dez soldados com um comandante militar, mas é um mercado sofrível onde se vende algum oiro, marfim , couros e outros produtos do país, que todos são permutados por sal, cola e mercadorias europeias que vão apara ali de Bissau em grandes canoas, a ponte que esta praça pouco valeria se não fosse o movimento de Geba”.
É nisto que um livrinho me desperta a atenção: trata-se do Dicionário de Crioulo-Português e o autor chama-se Marcelino Marques de Barros. É um investigador que me vai interessar muitíssimo a partir de agora, como se verá.
(iv) De Simenon a Alfonso Sastre
Trouxe comigo Um crime na Holanda, mais uma investigação de Maigret.
Um certo professor Jean Duclos, da Universidade de Nancy fora fazer uma conferência em Delfzijl, perto de Groningen, recebera a hospitalidade de um tal Conrad Popinga, que fora assassinado em casa, o revólver aparecera nas mãos de Jean Duclos, por sinal estudioso em criminologia.
Trata-se de uma investigação muito difícil, muitos dos holandeses não falam francês, Maigret não fala holandês, há um drama latente que envolve toda a família Popinga, há um número excessivo de provas disparatadas, apontando em várias direcções, envolvendo pessoas alheias à família.
A trama é poderosa, Maigret consegue superar todas as dificuldades linguísticas, Maigret apercebe-se das diferentes paixões e ciúmes desenvolvidos por Conrad Popinga, depois de uma maratona de perguntas e respostas a todos aqueles que viveram as circunstâncias do crime, é revelado o criminoso e o seu móbil.
Estou cada vez mais convencido que Georges Simenon é um dos grandes escritores do século, paga a desconfiança de ser um dos maiores nomes da literatura policial. Não é o único.
Simenon tira partido de uma atmosfera de interdições, rancores e maldade em lume brando, tudo envolvido por bolos e genebra nas tabernas locais. Maigret,subitamente, junta as peças do puzzle, reconstitui o crime e indica o assassino. Literatura de 1ª água.
Capa da peça de teatro Ana Kleiber, por Alfonso Sastre.
Editorial Presença, 1963, tradução de Egito Gonçalves, capa de E.Silva.
Foto: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.
Quis conhecer o teatro de Alfonso Sastre e escolhi Ana Kleiber que muitos consideram uma obra-prima do teatro contemporâneo.
Li algures que Sastre é um herdeiro de Valle-Inclán e seguidor do teatro épico de Bertolt Brecht.
A peça abre com diálogos simultâneos, na recepção do um hotel em Barcelona, de um escritor que está a ser entrevistado por dois jornalistas, o recepcionista dormita e um casal discute. Ana Kleiber chega ao hotel e vai para o seu quarto descansar.
O escritor toma a palavra e esclarece o público que Ana Kleiber morreu naquela noite no seu quarto.
Escritor e recepcionista dialogam, entra em cena Alfredo Merton que tinha encontro marcado com Ana. Segue-se um conversa a três, escritor Alfredo, e recepcionista. Desfiam-se confissões entre Alfredo e Ana, no segundo acto, aparece Cohen, antigo empresário de Ana, que exalta as suas qualidades, tudo acaba em discussão e Alfredo mata Cohen. Surge novo personagem, o contra-regra.
É um teatro circular que acaba como começou, depois de se falar das lutas contra a ditadura, dos encontros e desencontros em que vive a Europa fustigada pelas ditaduras.
É um teatro ágil, didáctico, comedidamente revolucionário, pronto para ser representado em todas as plateias das democracias parlamentares.
Sente-se que é um teatro de combate, doseado, para não espantar a nova burguesia. A capa, há que o reconhecer, era vanguardista na época.
Num dos meus passeios até ao Café Avenida comprei um livro da miss Marple, a amorosa detective engendrada por Agatha Christie. Vou agora lê-la nos intervalos em que as mezinhas me põem a dormir.
Os sonos são pesados e às vezes sonho: com a reconstrução de Missirá, com a travessia da bolanha de Finete, às vezes levo o Paulo Semedo às costas, outras vezes oiço os gritos lancinantes do Fodé Dahaba, é tudo confuso e parece que a química sai vitoriosa, põe-me de pé, pronta a recomeçar uma vida que parecia partida em mil bocados e onde só o amor a Deus, a uma mulher amada e a um conjunto de soldados fazia sentido.
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Notas de CV:
(*) David Payne e Vidal Saraiva foram ambos Alf Mil Médicos no BCAÇ 2852
(1) Vd. último poste da série: 15 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2540: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (20): A morte de Uam Sambu, na Missão do Sono, em Bambadincazinho