domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4905: Blogoterapia (123): Aos políticos, governantes, a quem pode decidir (Carlos Farinha)

1. Mensagem de Carlos Farinha (*), ex-Alf Mil da CART 6250/72, Mampatá e Aldeia Formosa, 1972/74, com data de 2 de Setembro de 2009:

Caro Luís e restante equipa editorial

Já há algum tempo que trago algo a incomodar-me e decidi partilhar esta minha inquietação com a Tabanca Grande. Escrevi o texto que anexo e não ficarei ofendido se não puder ser publicado.

Um abraço
C.Farinha


Aos políticos, governantes, a quem pode decidir

Hoje, é um regalo ver as despedidas ou a recepção feita no regresso, aos nossos militares quando partem ou regressam de missões, que nunca excedem alguns meses, no estrangeiro com a gente graúda, militares e políticos, a comparecerem em peso e a mediatização que tais acontecimentos têm sendo amplamente divulgados pelas televisões em horário nobre.

Os tempos são outros, e ainda bem que mudaram, mas não posso deixar de sentir um nó na garganta quando me lembro da minha partida para a Guiné, pela calada da noite, escondidos de toda a gente, como se de um bando de malfeitores se tratasse, com partida ainda de madrugada.

Hoje, os nossos militares têm cumprido missões de guerra em locais perigosos com reconhecida competência mas, segundo se diz, são voluntários e, acho que, bem remunerados, bem treinados e equipados.

Não foi o caso da maioria dos ex-combatentes que foram obrigados a ir, com uma deficiente preparação militar e colocados em locais perigosos militarmente e, muitas vezes, sem quaisquer condições.

Terminado o conflito colonial, parece que houve pressa em colocar uma pedra sobre esse passado incómodo e, nomeadamente, sobre treze anos de guerra e as desgraças que daí resultaram.

Daí que, acho dever fazer algumas perguntas, à laia de desabafo, à classe que nos tem governado, chamo-lhes uma classe porque pelas decisões que tomam ou não, parece que vivem num mundo diferente do meu, o mundo real:

Nunca mais ouvi falar nos ex-combatentes. Seja em programas de apoio psicológico, assistencial ou outro, seja qualquer outro tipo de ajuda que a eles se destinasse. Como todos sabemos, muitos de nós nunca mais atinaram com o rumo certo.
Nunca ouvi falar que tenha sido efectuado o levantamento rigoroso dos nossos mortos que ficaram sepultados em locais inóspitos ou cemitérios e se procedesse ao levantamento e repatriamento dos seus restos mortais. Um país que não respeita os seus mortos que deram o seu bem maior em sua defesa, depois de os obrigar a trilhar esse caminho, não merece o respeito dos seus filhos.
Nunca ouvi falar que aos africanos que acreditaram em nós, que combateram lado a lado connosco e aos quais muitos de nós devem a vida:

- Fossem pagas as pensões devidas.
- Tivessem apoio médico ou outro para fazer face às mazelas ocasionadas pela guerra.
- Fosse atribuída a nacionalidade portuguesa e trazidos para Portugal, se fosse esse o seu desejo.
- Que nas negociações de transição de soberania fosse garantido o respeito pela dignidade humana dos ex-combatentes autóctones.

Portugal tem que assumir o seu passado sem vergonhas, por inteiro. Os nossos políticos, alguns deles também são ex-combatentes, têm de assumir o país como ele é, e os ex-combatentes são uma parte, ainda significativa, desse país. Os nossos governantes andam preocupados com combatentes doutros países, vamos receber dois presos de Guantánamo por questões humanitárias, e não se preocupam com os do seu próprio país que até, provavelmente, lhe entregarão o seu voto. A falta de consideração dos políticos pelos milhares de ex-combatentes, ficou bem patente na novela da contagem do tempo, passado a arriscar a vida, para efeito de reforma. Qualquer funcionário colonial tinha esse direito nós, carne para canhão, não o tínhamos.

Para mim, o que acho mais grave e que mais dói, não é termos sido tratados da forma como o fomos pelo regime anterior, o que considero grave é hoje, nesta democracia que se quer pujante e participada, sermos ignorados e considerarem que já morremos!

Talvez eu esteja enganado em relação ao que escrevi, talvez não seja bem assim e esta opinião se deva à minha ignorância. Oxalá, eu esteja enganado, seria caso para dizer, bendita ignorância!
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Notas de CV:

(*) Vd. último poste de Carlos Farinha com data de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4846: O nosso encontro com o PAIGC em Mampatá (Carlos Farinha)

Vd. últimpo poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (122): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

Guiné 63/74 - P4904: Notas de leitura (21): Grandes Batalhas Navais Portuguesas, de José António Rodrigues Pereira (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 1 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos Vinhal,
Junto uma recensão de uma obra que certamente agradará os tertulianos.
Aqui temos a versão mais recente sobre a Operação Mar Verde, tão ilustrada no nosso blogue.
Recebe um abraço do
Mário



Grandes batalhas navais portuguesas:
A Operação Mar Verde (1970)


Beja Santos

O capitão-de-mar-e-guerra José António Rodrigues Pereira, professor da Escola Naval e do Instituto de Estudos Superiores Militares, director do Museu da Marinha, é autor da obra “Grandes Batalhas Navais Portuguesas, Os combates que marcaram a História de Portugal”, (A Esfera dos Livros, 2009). É um repositório feliz e útil sobre episódios e batalhas navais, entre 1180 e 1970. Na introdução, o autor refere-se à importância do mar logo na conquista de Lisboa aos mouros, na contenção dos piratas mouros, nas expedições luso-genovesas às Ilhas Canárias, depois no quadro de toda a expansão portuguesa do séc. XV em diante. No tocante à participação da Armada das lutas da Guiné, Rodrigues Pereira escreve que “A Guiné foi o teatro de operações onde a Armada desempenhou, em termos tácticos e estratégicos, uma acção vital; tal ficou a dever-se às características geoidrográficas daquele território, com grandes vias fluviais e marítimas que permitiam a rápida movimentação do pessoal e material”. E descreve como e quando: “Logo a seguir às primeiras acções armadas do Movimento para a Libertação da Guiné foram enviadas para a Guiné duas lanchas de fiscalização pequenas (LFP) e, seguidamente, uma lancha de fiscalização grande (LFG) e duas lanchas de desembarque pequenas (LDP); seguiram-se em Janeiro de 1962, um Destacamento de Fuzileiros Especiais (DFE) que iniciou prontamente a sua actividade operacional e a recolha de informações. Em 1963, a Armada enviou mais dois DFE, uma Companhia de Fuzileiros (CF), três lanchas de desembarque grandes (LDG) e duas LFP”.

O autor introduz a Operação Mar Verde a partir do objectivo do enfraquecimento do PAIGC e dos seus abastecimentos transportados por via marítima e fluvial. Sabia-se, em 1969, que o PAIGC dispunha de três pequenos navios e três lanchas rápidas, tipo P-6 de fabrico soviético. Estas P-6 eram lanchas-torpedeiras de 75 toneladas com 25,7 metros de comprimento e 43 nós de velocidade (duas vezes e meia superior aos navios portugueses mais rápidos), armadas com dois tubos lança-torpedos e quatro peças de 25 milímetros; a sua tripulação era de 25 homens. Acresce que a República da Guiné dispunha de quatro lanchas do tipo Komar, ligeiramente maiores que as P-6, e que dispunham de dois mísseis SSN-2 Styx, que eram uma verdadeira ameaça à superioridade naval portuguesa, não existindo meios para lhes fazer frente.

É nesse contexto que surgiu a ideia de neutralizar estas lanchas através da colocação de minas nos cascos por mergulhadores. O general Spínola e o almirante Reboredo e Silva (chefe do Estado-maior da Armada) aprovaram a operação e o capitão-tenente Alpoim Calvão foi encarregado de procurar este tipo de material, que veio a ser fornecido pelos serviços secretos sul-africanos. Fizeram-se pesquisas para reconhecer os planos do porto de Conacri. Em Bissau o general Spínola e o capitão-tenente Alpoim Calvão, propondo que nesta incursão a Conacri se devia também tentar trazer os 26 prisioneiros portugueses em posse de PAIGC. Os objectivos foram reavaliados, medida em que a Força Aérea não podia pôr em competição os seus Fiat com os MIG-15 e MIG-17: destruir os MIG era tão importante como destruir as lanchas.

Aos poucos, o objectivo da operação ofensiva dilatou-se a uma escala muito ambiciosa: realizar um golpe de Estado em Conacri, por essa via enfraquecer o PAIGC, destruir os MIG, trazer os prisioneiros portugueses, entre outros. De um simples golpe de mão passou-se para uma opulenta operação anfíbia. A PIDE/DGS deu informações preciosas sobre o principal movimento de oposição a Sékou Touré. Entendeu-se que se devia apoiar um golpe de Estado desse movimento de oposição, cobertura para ocultar a operação portuguesa. Observa o autor que “As altas hierarquias portuguesas não eram favoráveis a este tipo de operações, vistas como um risco demasiado elevado nas suas consequências políticas. Temia-se que servissem de pretexto para um intervenção internacional contra Portugal, um dos piores cenários que poderiam apresentar-se aos governantes portugueses”.

Marcelo Caetano mostrou-se favorável à operação contra Conacri, com a condição de que ela fosse realizada de modo a que ninguém se apercebesse que Portugal estava envolvido no golpe dos opositores de Sékou Touré.

Nasceu assim a Operação Mar Verde: preparação dos militares oposicionista a Sékou Touré, cuja recrutamento se transformou numa operação delicada; recolha de informações sobre a República da Guiné; e laboração dos planos de ataque, cabendo aos militares portugueses algumas das missões cruciais para o sucesso do golpe de Estado, cujo ponto alto era a eliminação física de Sékou Touré. A Operação Mar Verde foi gizada com uma operação anfíbia durante a qual seria realizado em simultâneo um elevado número de golpes de mão, comissões bem demarcadas para cada equipa.

Não cabe aqui desenvolver como se preparou e como decorreu a Operação Mar Verde, aliás bem documentada por Rodrigues Pereira. Sabe-se que uma boa parte dos objectivos foram alcançados, com a excepção do essencial: não se encontrou Sékou Touré, falhou o golpe de Estado, a rendição de um grupo de comandos africanos denunciou para o mundo inteiro a paternidade da operação, não se destruiu um só MIG. As forças navais de Conacri e do PAIGC desapareceram e foram libertados os prisioneiros portugueses. Se houve um balanço militar positivo, as consequências políticas revelaram-se calamitosas, prosseguiu e aprofundou-se o isolamento de Portugal.

A todos os títulos, para quem quer conhecer com o detalhe necessário os combates navais que marcaram a nossa História, o livro de Rodrigues Pereira é muitíssimo interessante, uma verdadeira surpresa.
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Nota de CV:

(*) Vd. último poste de Beja Santos com data de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4902: Controvérsias (27): Haverá alguma relação entre Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul? (Nelson Herbert/Beja Santos)

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 – P4903: Notas de leitura (20): Histórias do pessoal da CCAÇ 2382, por Manuel Traquina (Parte I) (Luís Graça)

Guiné 63/74 – P4903: Notas de leitura (20): Histórias do pessoal da CCAÇ 2382, por Manuel Traquina (Parte I) (Luís Graça)


Notas de leitura (20), por Luís Graça (aqui, ainda em férias, no 'turismo rural' de Candoz, no dia 4 de Setembro de 2009)


Foto: © Augusto Pinto Soares (2009). Direitos reservados


Manuel Traquina (ver foto abaixo) nasceu no Souto, Abrantes, em 1945 (*). Frequentou o Curso de Sargento Milicianos (CSM), nas Caldas da Rainha, no 1º trimestre de 1967. Em 30 de Março, dava início à especialidade de Mecânico Auto (vulgo, ferrugem) na Escola Prática de Serviço e Material (EPSM), em Sacavém.

Fez ainda estágio no Centro de Instrução de Condutores Auto nº 3 (CICA3) em Elvas. Em finais de Agosto, é transferido para o Depósito Geral de Material de Guerra (DGMG), em Beirolas. Quinze dias depois, a 13 de Setembro, é mobilizado para a Guiné. A 19 de Fevereiro de 1968, apresenta-se no RI 2, em Abrantes, a fim de integrar a CCAÇ 2382. Passados dois meses e meio, a 1 de Maio de 1968, parte no Niassa, com destino a Bissau, aonde desembarca a 6.

Na Guiné, passou pelos seguintes aquartelamentos: Brá, Bula, Aldeia Formosa e Bula. Regressa a Portugal em Abril de 1970, no mesmo T/T Niassa.

Depois da ‘peluda’, trabalhou em Angola, no Serviço de Emprego. Regressa Portugal, na sequência do processo de descolonização. Em Abrantes, é técnico de emprego, do Centro de Emprego local. Está actualmente aposentado do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFO).


Um livro publicado com o apoio financeiro de antigos camaradas da CCAÇ 2382

Publicou em Maio de 2009 o seu livro de memórias, Os Tempos de Guerra – De Abrantes à Guiné, edição de Palha de Abrantes – Associação e Desenvolvimento Cultural, com sede em Abrantes, e patrocínio de diversos antigos camaradas da CCAÇ 2382.

Desses antigos camaradas, é de destacar o nome dos seguintes:

(i) Ex-Sol João Bento Cosme, sócio gerente da empres Construções e Habitações Lda, com sede em Vimeiro, Lourinhã (Telemóvel: 962 715 464);

(ii) Ex-Alf Mil At Inf Luís M. Simão Almeida, hoje advogado, em Lisboa (Telefone: 213 555 996);

(iii) Ex-Fur Mil At Inf Cipriano Augusto S. Monteiro, hoje gerente da Contassis – Contabilidade e Assistência Fiscal, Lda, com sede em Lisboa (Telefone: 213 511 510);

(iv) Ex-1º Cabo Trnms José Manuel de Oliveira Madeiras, sócio-gerente da Estrela da Beira – Sociedade de Comércio e Transformação de Carnes Lda, com sede em Milreu, Vila de Rei. (Telemóvel: 919 980 325);

(v) Ex-1º Cabo Radiotelegrafista António Joaquim Coelho, gerente da AJC – Serrelharia Civil, de Fernão Ferro, Seixal (Telefone: 21 124 047);

(vi) Ex-1º Cabo Mec Auto Rodas Manuel Fernando O. Magalhães., gerente da Auto Magalhães, de Jovim, Gondomar;

Teve ainda o patrocínio da Pensão Primavera, de Vidago (965 479 816); da Quinta do Lago, Alferrarede, Abrantes; e da firma Eusébio Catarino e Filho, Lda, Vale de Vacas, Amêndoa (Tel. 274 877 177).

Na prática, foi uma edição de autor, com o apoio financeiro de vários camaradas da Guiné. Trata-se de uma iniciativa que é digna de registo e merece o nosso aplauso.


Das Caldas da Rainha (RI 5) a Abrantes (RI)2), passando por Sacavém (EPSM), Elvas (CICA 3) e Beirolas (DGMG)


Tudo começa pelo RI 5, nas Caldas da Rainha, em 1967, sítio para o qual o Manuel Traquina foi enviado, em Janeiro de 1967, para frequentar o CSM – Curso de Sargentos Milicianos. No comboio da Linha do Oeste, a caminho das Caldas, encontrou dois conterrâneos, o Rui Navarro e o Joaquim Silvério Alcaravela (Este último julgo tratar-se do mesmo Alcaravela, colega de sociologia, que foi meu antigo aluno do Curso de Administração Hospitalar da Escola Nacional de Saúde Pública, e que fará depois uma brilhante carreira à frente dos Hospitais do Serviço Nacional de Saúde, incluindo o hospital da sua terra, hoje integrado no Centro Hospitalar Médio Tejo).

Nas Caldas pertenceu ao 3º Pelotão da 6ª Companhia, de que era comandante o então tenente Vasco Lourenço. O Manuel Traquina era o nº 1107 e o Silvério o nº seguinte, o 1108. Foi-lhe distribuído uma G3, velinha nas que tinha de estar sempre impecavelmente limpa. “Era preciso ter cuidado, não deixar roubar o protector de boca, porque se faltasse tinha que ser pago. Era habitual que alguém o roubasse, para a seguir no-lo tentar vender… Achei engraçado que em calão militar, ao vulgar utensílio de refeitório, a colher, se chamasse o mesmo nome de ‘protector de boca’ (p. 20/21).

Das várias recordações desse tempo, o Traquina menciona a célebre “padaria na estrada de Óbidos, onde alta noite íamos comprar pão quente” (p. 21), a par do Campo de Tiro da Tornada. Um café das Caldas que devia ser evitado era o Zaida, onde pairavam os oficiais. De preferência, os recrutas davam salto, nas horas livres, à Foz do Arelho.

A parte final da recruta, a semana de campo, teve lugar nos pinhais entre a Foz do Arelho e a povoação da Tornada. Era Inverno e os recrutas eram, frequentemente, acordados por um sádico de um oficial para lhes dar “algumas notícias da actualidade” (sic)… Comenta o Traquina: “só mais tarde me apercebi do efeito psicológico de atitudes deste género”. No essencial, a recruta reforçou duas coisas importantes, em matéria de valores, e que marcaram o autor para o resto da vida, “a disciplina e a pontualidade” (p. 22).

No final de Março de 1967, o Traquina segue para Sacavém, para a Escola Prático de Serviço e Material (EPSM), para tirar a especialidade de Mecânico Auto. O acrónimo EPSM também era objecto do humor de caserna: Entras Pedreiro, Sais Mecânico. Ali perto corria o Rio Trancão, com o seu já famigerado mau cheiro (p. 26).

Em Junho de 1967, terminado o período de especialidade, o Traquina ruma ao Centro de Condutores Auto nº 3 (CICA 3), em Elvas (pp. 27/28). No CICA3 onde “havia alguns velhos sargentos, cuja especialidade anterior era Ferrador no tempo em que ali havia cavalos” (p. 27), o tempo passou depressa e bem… Ia-se ao Caia, na fronteira, “ver las chicas” (p. 28).

O próximo destino foi o Depósito Geral de Material de Guerra, em Beirolas (que ocupava um espaço integrado hoje no Parque das Nações). Em Beirolas, o Traquina tinha “um emprego sem ordenado (recebia, como pré, no final do mês, cerca de 80$00)”.

Com surpresa, apercebe-se que por aquele quartel passavam filhos de algo, “filhos de gente importante, bastante influentes para que os filhos ali passassem o serviço militar, sem o risco e o inconveniente da guerra colonial. Havia mesmo aqueles que entravam e saíam trajando civilmente e que, à porta do quartel, deixavam estacionados Ferrari e outros carros idênticos, que deixavam transparecer a vida abastada dos seus proprietários” (p. 29).

O Traquina levanta aqui uma questão que também tem a ver a natureza não-democrática do Estado Novo: nem todos éramos iguais perante a Pátria; o dinheiro, o estatuto social e a influência política foram usados, nessa época (como noutras), para safar alguns jovens portugueses (ligados, directa ou indirectamente, aos círculos da elite dirigente) das agruras de África e sobretudo da guerra colonial… 0 Traquina não pertencia a esse grupo de gente de excepção: por Ordem de Serviço de 13 de Setembro de 1967 é mobilizado para a então Província da Guiné. Em Fevereiro do ano seguinte, foi então juntar-se à sua futura CCaç 2382, que estava em formação na sua Abrantes natal…

Há um capítulo dedicado ao RI 2, em Abrantes, por onde terão passado muitas dezenas de milhares de militares destinados aos TO de Angola, Guiné e Moçambique, e ao IAO (Instrução e Adaptação Operacional) da CCAÇ 2382 (pp. 31-42). Também em Abrantes havia um café chamado Pelicano, ponto de encontro de militares, a lembrar um outro futuro Pelicano, o de Bissau. Na véspera da noite da partida o Fur Mil Ramiro de Sousa Duarte não parou de tocar, na sua viola, e de cantar, de viva voz, a canção então em voga, candidata portuguesa ao Festival da Eurovisão, “O vento mudou e ela não voltou”… Menos de um ano depois, o Duarte era um dos que estava na lista daqueles que não mais voltariam, com vida, à sua terra, nem voltariam a rever o Pelicano de Abrantes… Premonitoramente ou não, por inciativa do Duarte tinha sido criada em Nhacra, lá no cu de judas, um pequena cantina militar a que foi dado o nome de Pelicano (pp. 45/46).

Voltando ao IAO, e nomeadamente às experiências daqueles, como eu, que conheceram o Campo Militar de Santa Margarida … Quem não se lembra das brincadeiras estúpidas que fazíamos à noite, como os “golpes de mão ao bivaque do inimigo”, para roubar comida e bebida ? Numa dessas simulações da guerra da Guiné, debaixo de uma saraivada de pedras, espetei uma vez com um tiro de mauser, com bala de madeira, no traseiro do desgraçado de um cabo miliciano que se meteu à minha frente, no meio da noite e do alvoroço… Dezenas de estilhaços de madeira tiveram que retirados à pinça, pelo enfermeiro, ao longo de toda a noite… Prometi a mim mesmo nunca mais usar a merda de uma espingarda, até por que eu tinha a esquisita especialidade de Atirador de Armas Pesadas de Infantaria… Pensei, ingenuamente, que iria passar na Guiné uma missão tranquila, a afinar a pontaria dos morteiros 81 e 107…

Volto ao texto do Traquina: “Recordo que, algumas vezes, durante a noite, éramos acordados pelos tiros de assalto de um grupo comandado pelo Capitão São Martinho, que uma vez foi mal recebido…à pedrada” (p. 33). O homem não terá apreciado a resposta dos sitiados, mas lá engoli em seco, que “na guerra dá-se e leva-se”…

A partida das três CCAÇ (2381, 2382, 2383) , num total aproximado de 450 homens, foi feita em ambiente de festa, nas ruas de Abrantes, com direito a desfile e charanga militar (pp. 43/44). “Naquela noite de 30 de Abril do ano de 1968 ‘valia tudo’, a caderna estava um ‘pandemónio’. Muitos para esquecer, tinham bebido de mais” (p. 43).

Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 30 de Abril de 1968 > Embarque no Niassa, do pessoal da CCAÇ 2382 (Buba e Aldeia Formosa, 1968/70)e outras subunidades.

Foto: © Manuel Traquina (2008). Direitos reservados.


De Lisboa a Bissau, no velho Niassa

No Cais da Rocha de Conde de Óbidos, o Traquina assistiu a cenas que não mais esqueceu, como qualquer um de nós que por lá passou, a caminho da Guiné. “A despedida foi um quadro que, quem o viveu, o recorda como triste e arrepiante, com gritos, choros e desmaios” (p. 43).

Como muitos de nós, o Traquina mentiu à família sobre a data do embarque. Intencionalmente, para lhe poupar o inútil sofrimento da despedida. Esta prática não sei se era generalizada, mas já me foi confirmada por diversos camaradas da nossa Tabanca Grande. Ninguém partia para a guerra, com o exultante sentimento de orgulho por ir servir a Pátria. Naturalmente, houve excepções, e nomeadamente nos primeiros anos da guerra do Ultramar. Mas para muitos África, e em especial a Guiné, era vista como um degredo… Mas outros não escondem que, vistas as coisas retrospectivamente, até foi “o melhor tempo” das suas vidas…

Ei-lo agora, no T/T Niassa, “Tejo abaixo, passando por baixo da então nova ponte Salazar, e foi num instante que aquele navio atingiu o estuário do Tejo e se fez ao largo” (…) (p. 44).

No velho e glorioso Niassa, o autor evoca, entre outros detalhes, as ‘sonecas’ que os militares batiam no convés, ou ainda o passatempo que era “com um canivete, entalhar na madeira o seu nome, a data ou outra referência”… Depois de tantas viagens, e de tantos milhares de militares transportados, “aquele convés quase já não tinha um pedaço de madeira disponível para mais um nome” (p. 51).

O seu fim foi inglório, possivelmente hoje poderia ser um navio-museu: “as inscrições que nele foram feitas (…) representam também uma página da história da guerra colonial”… Este país de marinheiros, que tinha uma poderosa marinha mercante no auge da guerra colonial, sempre tratou mal o seu património ligado ao mar, e em especial os seus barcos. Veja-se, por exemplo, o que se passou com a frota bacalhoeira. Salvou-se, por uma unha negra, e sobretudo pela mobilização das gentes de Viana do Castelo, o navio-hospital Gil Eanes…

De Bissau, o Traquina deixa-nos dois ou três apontamentos que nos ajudam hoje a reconstituir ‘puzzle’ do roteiro da capital da Guiné, que “naquele tempo vivia à base dos militares” (p.55).

Tinha já então “uma larga avenida que descia da Praça do Império, onde se situava o Palácio do Governador até ao porto, o chamado Cais do Pijiguiti [, que em rigor é apenas uma parte do porto…]. Aqui começava a outra, também bonita, avenida marginal ornamentada com algumas palmeiras” (p. 56).

Havia um florescente comércio. Podia-se comprar “de tudo um pouco”, incluindo artigos que não vistos na Metrópole e sobretudo que era inacessíveis à maior parte das bolsas dos portugueses. “As vésperas de embarque eram grandes dias de negócio, eram centenas, ou mesmo milhares de militares que iam regressar a Portugal, e normalmente todos faziam as habituais compras nas lojas de Bissau (entre outras lembramos a Casa Escada, o Taufik Saad, a Casa Pintosinho e a Casa Gouveia)”… Era aí que se faziam as compras de última hora, as lembranças para amigos e familiares. “Na baixa da cidade cada porta era uma loja, os artigos orientais com a etiqueta ‘Fabricado em Macau’ invadiam já as lojas, muito antes de chegarem a Portugal” (p. 55).

A guerra trouxe mais cafés, restaurantes, pensões, e algumas casas de diversão. A oferta, em matéria do “repouso do guerreiro”, era contudo muito limitada: “nos fins de semana havia futebol no estádio, situado quase no centro da cidade, e o Cine-Udib exibia dos ou três filmes por semana. Havia 'A Meta', uma cervejaria com uma pista de carrinhos comandados à distância (…) A única praia existente situava-se na ilha de Bubaque, no Arquipélago dos Bijagós, inacessível à população” (p. 56).

A cidade não se dava a conhecer, logo à chegada, até por que praticamente todos os militares, ali desembarcados, partiam para o mato, no próprio dia, ou logo a seguir… “Aqueles que mais tempo permaneciam na cidade, à noite e fins de semana limitavam-se a dar umas voltas, todos sabiam onde podiam ver as poucas mulheres brancas de Bissau, que normalmente eram empregadas no comércio local. A esplanada do Café Portugal no centro da cidade, a Caldense ou o Pelicano na marginal eram os pontos de encontro, onde se bebia muita cerveja e comiam as picantes e tão apreciadas ostras. Da esplanada do Pelicano muitas vexes ouvia-se os rebentamentos e viam os clarões dos ataques ao aquartelamento de Tite, situado a sul de Bissau, do outro lado do rio Geba” (p.56)…

Curiosamente, o autor não faz qualquer referência a outros lugares obrigatórios de Bissau: o Café Bento ou a 5ª Rep (que eu não sei em que ano abriu) e o famigerado Pilão (pouco recomendável no tempo do Schultz, substituído em Maio de 1968 por Spínola no cargo de Governador Geral e Com-Chefe)…

O resto do livro reúne um notável conjunto de pequenas histórias, sketches ou simples apontamentos, de que falaremos mais em detalhe na II parte, histórias essas que já foram, algumas, aqui publicadas no nosso blogue (**).

(Continua)


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Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

2 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)

5 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4642: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (18): Manuel Traquina, ribatejano, escritor... e fadista (Luís Graça)


7 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4648: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (19): Os nossos escritores (Luís Graça)


(**) Vd. postes de:

2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida

19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane

17 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3214: Venturas e Desventuras do Zé do Ollho Vivo (3): Contabane, 22 e 23 de Junho de 1968: O Fur Mil Trms Pinho e os seus rádios

15 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3457: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (4): Baptismo de fogo e gemidos na noite

8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3855: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (5): As colunas Buba-Aldeia Formosa

12 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4019: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (6): Estrada nova Buba - Aldeia Formosa

12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4327: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (7): O saxofone que não tinha sapatilhas

Vd. também:

8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4797: Cancioneiro de Buba (1): A paixão do futebol (João Boiça / Manuel Traquina)

14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2944: Convívios (66): Pessoal da CCAÇ 2382, no dia 3 de Maio de 2008 na Vila de Óbidos (Manuel Batista Traquina)

23 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2791: Álbum das Glórias (46): O distintivo da CCAÇ 2382, 1968/70 (Manuel Baptista Traquina).

13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)

Guiné 63/74 - P4902: Controvérsias (34): Haverá alguma relação entre Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul? (Nelson Herbert/Beja Santos)

A semelhança entre os nomes Porto Gole/Guiné-Bissau e Port Cole/Carolina do Sul será pura coincidência?

1. Comentário de Nelson Herbert ao poste P4858 (*):

Porto Gole ou Portocole (**)??? Enfim...

Numa das minhas deslocações à Carolina do Sul, por sinal o estado norte-americano com maiores traços de parecença com a Guiné - o clima quente e húmido, o cheiro a terra quando a chuva bafeja, os pântanos, as bolanhas, os mosquitos e a bicharada - confesso pois que reencontrei nele, pedaços da minha Guiné e deparei-me também com um Port Cole, um outrora importante porto fluvial que serviu de ponto de entrada de escravos naquela região, cuja população conserva ainda hoje traços fisionómicos, idênticos a de algumas etnias guineeses.

Port Cole, hoje uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos.

Haverá porventura alguma relação entre esses dois Portos "Goles" ou "Coles" ?
A curiosidade despertou em mim, a determinação de aprofundar a investigação desse facto.

Mantenhas
Nelson Herbert
USA


Guiné-Bissau > Porto Gole (2005) > Monumento erigido pela CART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68).

Foto: © Jorge Neto (2005) Direitos Reservados



2. Baseado neste comentário do nosso Tertuliano Nelson Herbert que nos segue nos EUA, lancei o seguinte repto à tertúlia:

Caros camaradas
Eis uma questão curiosa para os expert em História.
Um abraço
Vinhal



3. Mensagem/resposta do nosso camarada Mário Beja Santos, um entendido da cultura e história da Guiné, reencaminhada para o Tertuliano Nelson Herbert:

Carlos, Querido Camarada,
Sem prejuízo da peregrina hipótese de um escravo beafada oriundo daquele ponto da então Senegâmbia, transbordado em Cabo Verde para a Carolina do Sul, ali ter deixado uma memória das suas origens, o mais provável é que não exista qualquer nexo entre Porto Gole e Port Cole.
Encontrei, ao longo de porfiadas leituras, as mais díspares referências a Porto Gole(no século XIX escrevia-se frequentemente Portoguole, e na certidão de óbito dos comandos guineenses ali fuzilados, em Dezembro de 1977, escreveu-se Portogole, o que bem comprova a falta de consolidação do termo).

Inclino-me para explicação que os Soncó me deram em Missirá, tratava-se de bastardização de a Porta do Cuore, efectivamente os limites originais do regulado do Cuor chegavam a este entreposto fundamental antes de se chegar às praças-presídio de Fá e Geba, os limites da presença do branco, até ao século XX.
Vou ficar atento a outras conjecturas, prometo voltar à biblioteca da Sociedade de Lisboa no início de Dezembro, depois volto ao assunto.

Recebe um abraço do
Mário



4. Resposta minha de agradecimento ao camarada Beja Santos

Caro Mário
Muito obrigado pela tua pronta e oportuna intervenção.
No nosso Blogue, és sem dúvida das pessoas mais conhecedoras da história da Guiné, tanto pelos ensinamentos colhidos nos diversos livros que procuraste e continuas a procurar incessantemente, como nos contactos com naturais da Guiné, de quem recolheste imensa informação. Estou a lembrar-me do que referes no teu Diário da Guiné, 1969-1970 - O Tigre Vádio.

Com votos de estejas bem, apesar das circunstâncias, deixo-te um abraço.

O camarada e amigo
Carlos Vinhal



5. Comentário de Nelson Herbert:

Caro Vinhal

Valeu!! Bloguista que se preze, não vira as costas a um bom desafio.

Interessante a perpectiva do Beja Santos. E curioso que coincidindo com a minha estada no Port Cole dos gringos, no local encontrava-se e em início de trabalho de campo numa das Plantations, uma equipa de arqueólogos do Senegal... em busca de vestígios da presenca de povos da Senegâmbia na região - disse-me na altura o líder da equipa de arqueólogos, cujo contacto retive e que vou tratar de reatar, quanto mais não seja, para conhecer o evoluir das pesquisas!

Mantenhas
Nelson Herbert



6. Comentário de CV

Caros Tertulianos ficamos na espectativa de alguém vir até nós responder à interrogação de Nelson Herbert, e desfazer a nossa dúvida quanto à relação entre os nomes das duas localidades.
Não queremos sugestões, mas dados concretos.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 30 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXV: CCART 1661 (Porto Gole, Enxalé, Bissá, 1967/68)

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4872: Controvérsias (26): Amílcar Cabral em Xangai (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P4901: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (16): Soldado anónimo


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais um texto do seu baú de memórias:

Camaradas,

Continuando as minhas memórias retirei do meu velho baú este texto, a quem prestei uma pequena actualização.

Por acho o assunto sempre actual e de grande interesse colectivo.

Chamei-lhe:

"SOLDADO ANÓNIMO"


O "Soldado Anónimo" é uma figura de personalidade sensível mas muito forte, criada por mim e que eu muito estimo e admiro.

Ser “Soldado anónimo” não é o mesmo que ser clandestino, exilado ou objector de consciência.

“Soldados anónimo” foi todo aquele Homem, de várias raças e credos, a quem, atribuíram um simples número mecanográfico, serviu o melhor que pode e sabia, muito para além daquilo que o cumprimento do dever lhes exigia, nas Forças Armadas desta Nação, e que depressa foi passado ao esquecimento, pelos seus irresponsáveis e incompetentes políticos e instituições da Tutela.

Muitos Homens que passaram despercebidos num problemático conflito armado, apesar de se terem entregados de corpo e alma, em nome de valores que lhe eram incutidos. Valores uns patrióticos e outros moldados à causa de um regime político, que os chamava para bem longe das suas terras, famílias, escolas, amigos, etc.

Depois eram embarcados para uma guerra, em inúmeros casos via limites extremos, para a execução prática de missões perigosas e mortíferas, para as quais muitos estavam mal preparados, fracamente formados e, deficiente e obsoletamente armados.

Foi a grande massa de uma geração jovem, de uma Pátria, a quem deram o seu melhor como podiam e sabiam, sem nada pedir em troca, onde pouco ou nada podiam questionar e apenas… cumprir. Quem ousasse questionar, lembram-se, tinha logo a PIDE à perna, os calabouços e, certamente, o degredo político. Foram enviados para a guerra “evangelizados contra o turra” até á raiz dos seus seres e intencionalmente despolitizados.

Sofreram na pele todas as amarguras do conflito; sofrimento, fome, miséria, dor e morte mas, mesmo assim, foram magnânimos nas suas acções e espontâneos e correctos, sabe bem Deus como, na execução das suas comissões.

Foi uma geração inteira - a mocidade do meu país de então -, que ninguém conhecia em terras distantes de Além-mar, de quem nos últimos 35 anos se evita falar, a quem o poder tutelar não reconhece os méritos dos seus Feitos Históricos, como foram o defender a nossa Bandeira, da nossa Cultura, da nossa Religião e dos nossos Compatriotas que lá viviam, procriavam, construíam, negociavam, etc.

Embarcaram para África como “Soldados anónimos”, regressaram como proscritos, e como desconhecidos permanecem.

No regresso, perderam-se na plenitude duma Metrópole alheia aos problemas e conflitos africanos, na sua lufa-lufa de sobrevivência diária, do mesmo modo quase completamente despolitizada. Mesmo os Camaradas bem colocados na política ”esqueceram” os seus restantes Camaradas, em nome de interesses político-partidários.

Dividimo-nos todos, cerca de 1 milhão de ex-Combatentes, pelos motivos mais diversos e mesquinhos, a que não é alheio, fundamentalmente, o egoísmo e o egocentrismo pessoal, em maiores ou menores doses, de cada um.

Tornamo-nos assim incómodos, insignificantes e minúsculos para que nos vejam?

Quantas vezes não fomos envergonhados pelos nossos próprios amigos e familiares, por diversos motivos, e ostracizados e desprezados pelos sucessivos governos deste país?

Sujeitamo-nos a leis pseudo-progressistas, rotulagens, perseguições e paranóias pós-abrilistas, que nos marginalizaram e quase nos destruíram, e continuamos a perguntar a Deus, que mal fizemos para merecer tal sorte?

Concluamos que o que muitos nos desejam, consciente e criminosamente, é a morte!

Talvez depois de mortos ressurjamos das cinzas e nos prestem então (para quê?), a devida justiça e algumas tardias e bacocas homenagens e honrarias.

Esta é a saga de muitos milhares de anónimos, soldados como eu, que combateram por este País numa terra longínqua e então traiçoeira chamada… Guiné.

Terra esta, com um povo adorável, que nós estranha e enigmaticamente continuamos a sonhar!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Imagem: Casimiro Carvalho (2009). Direitos reservados.
___________

Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

sábado, 5 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4900: (Ex)citações (42): Resposta ao P4813 (J. Mexia Alves)

1. Mensagem de J. Mexia Alves (*), Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 20 de Agosto de 2009:


Resposta ao P4813

Caro Camarigo António Pereira da Costa
Não vou escrever muitas palavras a responder à tua resposta.

Já nos conhecemos de outras discussões e sabemos bem que se concordamos nalgumas coisas, noutras temos opiniões diferentes o que é muito salutar.

Julgo que nos envolve uma amizade especial, cimentada nos lugares do Xime e Bambadinca, pelo que estou à vontade, como tu estás, para podermos concordar e discordar.

Apenas dois ou três pontos:

1 - «Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia.»

É opinião tua!
Para mim é uma forma desprezível de afirmar a sua discordância.

Se vamos por esse ponto de vista, também é valentia assaltar um banco!

2 – Quando digo que nós ganhámos a guerra e o PAIGC também, quero utilizar um sentido figurado.

Ganhámo-la porque fizemos ambas as partes o que nos era pedido, mas soubemos na maioria esmagadora dos casos, fazer as pazes connosco e com os outros.

Uma guerra só pode ser “ganha” por ambos os beligerantes, se as duas partes chegarem à conclusão de que a guerra nada resolve e que não é preciso morrer gente para que as pessoas se entendam.

3 – Eu nunca disse que ganhámos a guerra, disse sim que não a perdemos!

Continuo sem entender a necessidade de se afirmar que perdemos a guerra, (refiro-me às Forças Armadas Portuguesas), baseados sempre no que havia de vir.

Mas parece-me que para falar sobre isso tem de se entrar na politica e por aí eu não vou.

O 25 de Abril não precisa disso, justifica-se por si próprio.
Coisa bem diferente é o 26, 27 28 e por aí adiante e aqui também, já me estou a referir a outros textos em que se fala dos que foram deixados, dos que foram assassinados e dos que tendo vindo, continuam ostracizados.

Sem qualquer falta de respeito por ti ou por outros, não voltarei a este tema, ou melhor, não responderei a mais nenhuma resposta que eternize esta troca de opiniões.

Com a amizade que nos une, abraço-te camarigamente
Joaquim Mexia Alves
__________

Notas de CV:

Sobre o assunto em (Ex)citação vd. postes de:

11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (39): Resposta a J. Mexia Alves (A.J. Pereira da Costa)

13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: (Ex)citações (34): Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)

12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

OBS:- Lamentavelmente esta mensagem do nosso camarada Mexia Alves extraviou-se e perdeu a actualidade. Foi-nos reenviada e agora publicada. Julgamos estar o assunto devidamente escalpelado.

Guiné 63/74 - P4899: Convívios (159): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)


1. Mensagem do Artur Conceição, ex-Sold Trms Inf e Cond Auto, CART 730, Bissorã, Farim e Jumbembém(1965/67):

XIV Convívio dos ex-Combatentes

Freguesia de Campia
22 de Agosto de 2009


Realizou-se no dia 22 de Agosto, mais um convívio dos ex-Combatentes da freguesia de Campia.
O convívio contou com a presença de cerca de uma centena de pessoas, não obstante o mês de Agosto não ser dos mais favoráveis, para este tipo de eventos.

Mas, graças ao esforço de divulgação por parte da Comissão Organizadora, poderá considerar-se mais um sucesso.

Na parte da manhã teve lugar a cerimónia de boas vindas e colocação de uma coroa de flores na base do Monumento aos Combatentes do Século XX, tendo sido proferidas algumas palavras alusivas ao acto, pelo Senhor Presidente da Junta de Freguesia, António Ferreira, também ele um ex-Combatente.

Seguiu-se o desfile até à Igreja Paroquial tendo sido celebrada missa em memória de todos os que, entretanto, já partiram.

Após a Eucaristia teve lugar a romagem ao Cemitério onde, novamente, foi ouvida a oração dos Combatentes. Toque de silêncio e de alvorada, e a colocação de flores nas campas dos mortos em combate.

Do mesmo modo foi colocada, em local apropriado, uma coroa de flores em homenagem a todos os ex-Combatentes que já nos deixaram.

Terminadas as cerimónias religiosas teve início, cerca das 13 horas, o almoçam convívio mais uma vez servido no Restaurante “O Sacristão”.

Está de parabéns o Carlos Duarte que, como vem sendo habitual, se esmerou na confecção dos produtos mais ao sabor dos participantes, deixando-nos a promessa de que para o ano teremos o almoço em novas instalações, mais amplas e adequadas.

Ao fim da tarde ainda houve tempo para um momento cultural, em que o Carmindo Ramos nos brindou com um momento de poesia, bem como umas “modinhas” no seu acordeão.
Que para o ano possamos estar todos de novo.



Capitão Álvaro Dório Correia Tavares, quando se dirigia ao Monumento com a coroa de flores



Interior da Igreja Paroquial durante a Eucaristia


Quem os conhece? Estiveram todos na Guiné:
Da esquerda para a direita: Manuel Marques Pereira (esteve sempre em Bissau 1970-72), Adamastor Dias (esteve sempre em Bissau 1971-73), José Rodrigues (Compª 2316 - Guillege), Mejo (Bula, Cacine, Gandembel e Gadamael - 1968-70), Celso Farias (Compª 2440 - Piche e Nova Lamego - 1967-69), José Marques Pereira (Compª 1591 - K3, Fulacunda e Mejo - 1965-67), Artur Conceição (Compª 730 -Bissorã e Jumbembem -1965-67) e Manuel Pereira Tavares (26ª Compª de Comandos - 1970-72).


Foto de família antes da partida para o almoço




Veteranos da Índia. Da esquerda para a direita: Capitão Hipólito Nogueira (ex-prisioneiro de guerra), Mário Azevedo e Carmindo Ramos



MOMENTO DE POESIA



Quem somos nós...


I
Quem somos nós afinal!
Que estamos aqui presentes
Neste evento tão legal
Como outros feitos antes.

II
Somos aqueles resistentes
De experiências vividos
Um grupo de ex-combatentes,
Seus familiares e amigos.

III
Viemos uma vez mais
Conviver em harmonia
Por causas bem sociais
Na nossa terra, Campia

IV
Prestámos as homenagens
Como sempre se tem feito
E fizemos as romagens
Com grande amor e respeito

V
Por aqueles que já partiram
Desta vida para o além
Que lá no céu as ouviram
E nós sentimo-nos bem

VI
P'ra uns a vida foi curta
Outros, foi assim assim
Mas toda ela uma luta
Com princípio, meio e fim

VII
Estejamos pois atentos
Em cada dia que nasce
Ponderando nos momentos
Que faltam pró desenlace

VIII
E como alguém nos dizia
Sem qualquer tom de vaidade
O tempo da fantasia (para nós)
Acabou. É bem verdade

IX
Estamos mais que maduros
Pensamos melhor agora
Enquanto os dias futuros
Um a um se vão embora

X
Nesta fase das nossas vida
O tempo passa depressa
Prega-nos sempre partidas
Mas a questão nem é essa

XI
Os anos parecem meses
E os meses, as semanas
Nesta ilusão que às vezes
Queima mais que as próprias chamas

XII
Assim... vamos convivendo
E não menos divertidos
E que Deus nos vá guiando
Enquanto estivermos vivos

XIII
Termino o meu poema
É tempo de reflectir
Com a alma bem serena
E o amor sempre a fluir.


Por: Carmindo Pereira Ramos


Um abraço,
Artur Conceição
Sold Trms Inf e Cond Auto da CART 730


Fotos: Artur Conceição (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4898: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (6): Os amores do Soldado Valença

1. Neste episódio de Gavetas da Memória, Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, conta-nos uma bonita história de amor.



Os amores do soldado Valença

Chamava-se Luís António Rodrigues, mas era mais conhecido por Valença, por ser natural daquela vila nortenha, onde ajudava o pai numa bomba de abastecimento de gasolina. Quando atingiu a idade do serviço militar, deram-lhe uma farda especial camuflada, uma espingarda metralhadora e enfiaram-no num navio que mais lembrava um barco de negreiros navegando agora em sentido contrário. Em vez de sair de África era para lá que se dirigia.

Primeiro foram os patrulhamentos, depois as emboscadas, as operações de vários dias, debaixo de um sol inclemente, chafurdando em pântanos tenebrosos, comido por hordas de mosquitos insaciáveis que suportava com uma incrível paciência. A tudo resistia, taciturno e a tudo ia sobrevivendo.
Nos poucos momentos livres, sentado à porta da caserna, distraía-se brincando com uma pequena cadelita de pêlo amarelo que um dia lhe apareceu por ali e logo correu a lamber-lhe as mãos.
Sempre tinha tido jeito para lidar com os animais. Por onde passava encaminhavam-se logo para ele como se atendessem ao chamado do dono. Era uma atracção que ele tinha, diziam os colegas, que até se serviam disso para fazerem chacota.

- Eh, pá, contenta-te com a cadela, pois com as mulheres és capaz de não teres tanta sorte!

O Valença não dizia nada, mas entre dentes lá ia murmurando:

- Cambada de burros! Não têm respeito por nada!

Até que um belo dia, as canseiras pelos arredores de Bissau terminaram e a Companhia foi enviada para o interior da Guiné encarregada de outras missões.
Sem abandonar a pequenina cadela, a Dourada, o nosso Valença lá chegou às novas paragens, feliz como quem vai emigrando para o Paraíso.
Quando se achou por fim livre entre o céu e as sombras profundas dos grandes mangueiros, corria pela pequena pista de aviação, perseguido pela cadela, dando largas à sua ânsia de liberdade.
Brincavam como duas crianças.

Os dias foram passando, veio a monotonia dos largos meses sempre iguais e um certo dia a Dourada desapareceu.
Logo ao alvorecer, o soldado Valença estranhou ela não estar debaixo da cama, onde sempre ficava. Veio cá fora, deu uma olhadela pela parada, pela cozinha, inspeccionou até os abrigos das sentinelas um por um, e nem rasto da Dourada. Assobiou várias vezes por ela, mas nada.
Ninguém a tinha visto e apesar de todos se disponibilizarem para a procurar, indo mesmo com o Unimog até à bolanha, onde as raparigas da aldeia lavavam a roupa, nada, nem sombras da cadela.

Durante vários dias, mas cada vez mais desanimado, o Valença não descansou. Todos os dias vagueava pelos arredores do aquartelamento sempre com a esperança que, de um momento para o outro, se ouvissem os latidos alegres da sua amiga. Mas nada.
E os dias iam passando, sempre cada vez mais iguais, e nada de novidades da Dourada. Alguém, ou alguma coisa, a tinha feito desaparecer de vez, com certeza.

Veio a época das chuvas e os soldados passavam o tempo abrigados debaixo do telheiro da caserna, no pequeno bar da cantina a jogar as cartas ou num pequeno casebre mesmo em frente do arame farpado que rodeava o quartel. Aí, um mestiço, tinha um estabelecimento tipo super mercado do mato, onde havia sempre tudo o que se precisava para uma emergência ou para o mais trivial, um arame, uma corda, uma lata de petróleo ou um Petromax, arroz, pneus de bicicleta, uma aspirina, mas principalmente, e também, a aguardente de cana, sofregamente bebericada pelos bêbados do costume, determinados em esquecer ali aquela pasmaceira, aquela opressão de um sol que desde que nascia até que se deitava, pesava como chumbo derretido.

Atrás do balcão, duas adolescentes, lindas e misteriosas como só as cabo-verdianas sabem ser, a Ermelinda e a Argentina, que com o tio vieram para aquele fim do mundo, quando ficaram sós, após a morte da mãe em Bissau, vítima de tuberculose. Restou-lhes então aquele tio, irmão da mãe, que logo as tinha ido visitar assim que soubera do óbito. No regresso, não hesitou e trouxe-as também com ele, pois até estava a precisar de uma ajuda lá na venda.

As meninas, habituadas já a todo o tipo de trabalho duro nem estranharam, mas conservaram aquele ar de desenvoltura da cidade grande, do falar bonito, sem espantos nem gritos, como gente mais instruída.
Eram, sem dúvida, o principal e o mais interessante atractivo da venda do velho Passarinhas que desde logo soube tirar rendoso proveito dessa novidade, mantendo-as sempre em bom recato, como um valioso tesouro.

O pobre do Valença, inevitavelmente, não tardou a que lá fosse cair. Quando o serviço no quartel terminava, era ali que o podiam encontrar, sentado cá fora, debaixo do alpendre, bebericando uma cerveja, com os olhos postos na estrada, sempre na esperança de ver surgir a Dourada, a companhia que tinha lhe sido roubada, por algum malandro, dizia ele.

Aos poucos e poucos a Ermelinda, a mais velha das duas irmãs, habituou-se à sua presença e quando ele não aparecia, era ela que vinha cá fora, olhar para os barracões do aquartelamento. E ajeitando o cabelo, soltava de vez em quando um profundo suspiro.
Mas nos dias em que ele aparecia, corria logo a servir-lhe uma cerveja bem gelada. O Valença de inicio, não lhe ligava grande importância, mas aos poucos e poucos, foi começando a reparar e a demorar mais o olhar naquela negrinha que lhe sorria sempre. Passados tempos também ele lhe correspondia, agradecido. E de repente começaram a trocar confidências, perguntas sobre a família, a terra natal, o futuro. Como quase um namoro, sem que ambos dessem por isso.

O Tio Passarinhas, de princípio não gostou nada da brincadeira. Dizia que a sobrinha se estava a enredar de mais com aquele branco portuga, que isso só poderia trazer manga de chatice. Mas com o passar do tempo e perante a mansidão do Valença e da sua conversa mole, até ele começou a ficar enredado na situação. Apesar de, lá no fundo, não acreditar muito no futuro daquele romance.

Agora era o Valença que lhe dava sugestões para melhorar o negócio, ajudando em tudo que era preciso, e a coisa até resultava!
E não foi ele também que, num belo dia, começou a dizer que havia de se juntar com a Ermelinda, casar mesmo com ela, abandonar a tropa, não voltar para a terra e ficar por ali a viver com eles?
Não era mesmo uma coisa de maluco? Só podia ser!

Mas o Valença insistia, contando como é que iria pedir autorização ao Capitão para no fim da comissão não regressar a Portugal e ficar a viver na Guiné para sempre. Que não tinha para onde ir (o pai, entretanto, tinha falecido de repente), agora era aqui a sua nova terra. Que aqui é que ele se sentia bem. E não arredava pé, convencendo-se cada vez mais a si, e aos que o ouviam.

O Alferes, do Pelotão do Valença, nem queria acreditar quando lhe foram contar o que ele andava a tramar. Ainda tentou ter uma conversa de homem para homem, à porta da taberna, mas perante o olhar apaixonado dos futuros noivos, nem teve palavras.

Finalmente como sempre acontece, chegou o momento fatal. Enquanto os colegas davam saltos de alegria e cantavam abraçados, bêbados de felicidade pelo bendito dia do regresso ter enfim aparecido, o nosso Valença, no escuro do casebre do Tio Passarinhas, estreitava contra si a chorosa Ermelinda, prometendo-lhe que logo que tivesse tratado de todos os papéis para deixar a tropa, voltaria a correr para os braços da sua amada.

No alvorecer do dia fantástico, uma desconjuntada coluna de camiões carregados como se fossem carroças de mudanças, abandonou a aldeia, deixando para trás tantos sonhos tantos medos, tantas bebedeiras e tantas promessas deitadas ao vento, tudo condenado a ficar coberto pela poeira vermelha daquela terra de que agora já se iam esquecendo. A pouco e pouco foram-se deixando de ouvir os gritos doidos dos soldados que nem para trás quiseram olhar quando desapareceram na curva da bolanha.

E quando a coluna de camiões chegou finalmente a Bissau, foi um lufa-lufa para descarregar as bagagens para à velha caserna que já os tinha acolhido no primeiro dia. Ali ficaram alojados até ao embarque, de novo no mesmo navio negreiro, transformado agora pela mirífica imaginação de todos, em paquete de luxo. Ao fim da tarde desse mesmo dia passearam pela Baixa, com um sorriso estampado no rosto, maior que o mundo, exibindo a fitinha verde e rubra que o Coronel do Batalhão numa arremedo de homenagem para heróicos combatentes (?), lhes tinha espetado no peito. Era a medalha dos feitos cometidos na guerra, o reconhecimento pela dádiva de dois anos da sua juventude, do passado que passou, que nem era bom lembrar. Agora ninguém mais os segurava!

Mas inesperadamente, o nosso soldado Valença debatia-se num dilema. Largar tudo e todos, fugir e voltar para trás, ou deixar-se levar com a carneirada, até ao lúgubre quartel que os aguardava lá na Metrópole, onde iriam depositar tudo o que traziam, os farrapos das fardas, as velhas armas, as botas rotas, as mantas, os colchões, os tachos e as panelas ainda com restos da picante gordura africana?

Todos lhe diziam que era isso mesmo que deveria fazer. Que esquecesse a companhia da pretinha que, por muito apetitosa que fosse, não era modo de vida para ele. Era à terra natal, à velha Metrópole que pertencia e estava tudo dito.
Mas o soldado Valença revolvia-se na cama, incapaz de se esquecer do sorriso de Ermelinda, daquele jeito tímido de lhe afagar o ombro quando trazia a cerveja gelada.
Os longos fins de tarde, contemplando juntos a silenciosa agonia do sol, que caía lá para trás dos grandes mangueiros da velha aldeia.

E tanto batalhou, tanto procurou e tanto massacrou a cabeça do Primeiro-Sargento da Secretaria que este, só para se ver livre dele, tratou de lhe fazer a vontade.
Ali mesmo se procedeu à entrega do material que o estado lhe tinha emprestado, quando o mandara para a guerra, e num abrir e fechar de olhos ficou livre como um passarinho.

Vestido com a pouca roupa civil que ainda possuía, com resto das suas coisas metida numa decrépita mala de cartão e acariciando no bolso uma meia dúzia de notas em dinheiro guineense, correu, ligeiro como um gamo, fugindo pela porta de armas em direcção à cidade, para procurar um transporte qualquer que o levasse de volta ao Paraíso, ao regaço da sua Ermelinda que nunca deveria ter abandonado.

Lá longe, no interior desconhecido de uma África ignorada, num mundo perdido, era aí que morava o destino que desejava e que, se calhar, lhe fora por isso traçado.

Foi o culminar da uma existência, desaparecendo como um rio que, sinuosamente, percorre as terras rasas em busca de um final feliz, numa reunião de amor com o mar oceano das nossas lágrimas.

Nunca mais se soube dele.

Viana, 23 Junho de 2009
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada