Foto: © Manuel Traquina (2008). Direitos reservados
1. Já aqui publicámos duas ou três histórias do Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, a última das quais foi o relato do ataque à povoação de Contabane, ocorrido em 22 de Junho de 1968 (*). O nosso camarada está connosco desde o início do ano de 2008, honrando-nos com a sua presença na Tabanca Grande. Sabemos que vive em Abrantes, eastando reformado como técnico do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Sabemos ainda que tinha por hábito escrever pequenas histórias no seu tempo de Guiné (onde andou por Buba, Aldeia Formosa, Contabane, entre 1968 e 1970). E que já publicou cinquenta artigos , alguns com fotogografias, na imprensa regional (Jornal de Abrantes) relacionados com as suas memórias de guerra. Ficamos, por fim, felizes por saber que tenciona reunir estas estórias em livro. E mais felizes ainda por ele continuar a mandar-nos material para publicar no blogue...
O Traquina é um excelente contador de estórias/histórias, que merece ter a sua série própria, como o Juvenal Amado, o José Teixeira, o Torcato Mendonça, o Jorge Cabral, o Paulo Santiago, o Beja Santos e tantos outros. A partir de agora as suas estórias não serão mais avulsas. Não consegui falar com ele ao telefone, mas deduzo que ele queira dar seguimento, no blogue, a essas estórias. Começamos a série com esta evocação do ex-Fur Mil Trms Pinho, há tempos falecido. (Esta é a nossa melhor maneira de homenageá-lo e de manifestar a nossa solidariedade à sua família enlutada.) (LG)
2. Histórias de Manuel Traquina (3): O Pinho e os seus rádios
por Manuel Traquina (**)
O Furriel Pinho, da especialidade de transmissões, era o encarregado do equipamento rádio da companhia [, a CCAÇ 2382]. Para seu azar, os aparelhos que lhe foram confiados, bastante usados, já com alguns anos de guerra, normalmente estavam avariados. Por outro lado, ele próprio dizia que não percebia grande coisa daqueles aparelhos, e para quem o conheceu e com ele conviveu naqueles tempos de guerra diga-se que era dado à boa paz. De facto, não tinha nascida para a guerra.
Instalados que estávamos na aldeia de Contabane, ao nosso amigo Pinho não lhe faltavam dores de cabeça com os seus rádios, por isso ele se tinha deslocado ao aquartelamento de Aldeia Formosa, a fim de proceder à reparação de algum material. Porém o comandante daquela unidade, e daquela zona operacional, ameaçava-o constantemente com punições, se não conseguisse que os rádios funcionassem.
Naquela noite, em Aldeia Formosa, ouviu-se um bombardeamento na direcção de Contabane, e foi visível também o clarão do incêndio que destruíu a aldeia. Mais uma vez os rádios de Contabane estavam “mudos”. O comandante chama o Pinho e dá-lhe as seguintes ordens:
- Logo que comece a amanhecer vai pôr pernas a caminho de Contabane, com dois milícias (soldados guineenses) e quero aqueles rádios a funcionar.
Naquela zona, de certo modo perigosa, de madrugada lá partiu ele com aqueles dois guarda-costas. Os cerca de quinze quilómetros que separavam as duas localidades foram percorridos pelo mato, era preciso evitar trilhos concorridos e a própria estrada.
É bom que se diga que o Pinho estava na Guiné havia pouco mais de um mês. Também tinha dúvidas sobre até que ponto poderia depositar confiança naqueles dois acompanhantes. Pelo sim pelo não, optou por pô-los a andar à sua frente e segui-los de arma na mão... Ao narrar esta sua aventura o Pinho costumava dizer:
-Se caísse um coco naquele caminho, acho que me borrava todo.
Mas depois desta grande aventura , na madrugada daquele dia, 23 de Junho de 1968, o Pinho lá chegou a Contabane, são e salvo, e só então compreendeu a mudez daqueles malfadados rádios!... É que eles estavam irremediavelmente perdidos, carbonizados no incêndio provocado pelo ataque do inimigo, que naquela noite destruiu a Aldeia.
Passados que foram já quarenta anos sobre este acontecimento, e porque o falecimento deste meu grande camarada e amigo ocorreu recentemente, vítima de doença incurável, daqui lhe rendo a minha homenagem e envio sentidas condolências a sua esposa e Filho.
Manuel Batista Traquina
PS - Na foto um enorme Baga-Baga, na zona de Contabane, arquitectura da formiga guineense.
_________
Notas de L.G.
(*) Vd. poste de 19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
(...) "Tinha anoitecido e, de repente, algumas explosões deram início a um ataque que se ia prolongar por cerca de três horas, as balas incendiarias atravessavam a palha que servia de cobertura à tabanca onde o ferido começava a receber o soro. Disse ao Chambel e ao Coelho que tínhamos que sair daqui imediatamente com o ferido, porém ele, já mais endurecido pela guerra, reunindo as suas débeis forças, arrastou-se até à porta e, no escuro, sem que nos apercebêssemos desapareceu rastejando. Só na manhã seguinte o voltámos a ver, quando da chegada do helicóptero que o evacuou bem como a outros feridos.
"Foram cerca de três horas de bombardeamentos em que a aldeia ficou reduzida a cinzas, mais parecia um inferno. No final foi uma forte trovoada que transformou a cinza em lama, onde quase não havia onde nos abrigar. Não tenho dúvidas de que nós os militares que naquela tarde fomos à água, passámos muito perto do local onde o inimigo preparava o ataque e só não fomos feitos prisioneiros porque o objectivo era o ataque.
"Apesar do grande aparato e grande potencial de fogo, sofremos apenas três feridos, dois dos quais de maior gravidade. Porém, quase todo o património da companhia ali ficou reduzido a cinza, os rádios, os géneros alimentícios, o equipamento de enfermagem, tudo ali ficou carbonizado. Grande parte dos militares ficaram apenas com a roupa que tinham vestida.
"Na manhã seguinte um helicóptero evacuou os feridos, alguns militares apressaram-se a escrever um ou outro aerograma meio queimado e enlameado que foi entregue ao piloto do helicóptero. Era a parte psicológica a funcionar, pretendiam partilhar aquele momento de desânimo com alguém do coração.
"Contabane foi totalmente evacuada de população e militares, saímos dali moralmente destroçados, alguns apenas de calções, sapatilhas e a sua G3, mas vivos para suportar muitos outros ataques e emboscadas durante os vinte e dois meses que se seguiram. Já no termo da comissão viemos encontrar na cidade de Bissau o milícia que ao pisar a armadilha foi amputado de um pé, e que naquela cidade tentava sobrevier como engraxador de sapatos" (...).
(**) Vd. postes de:
2 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2500: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (1): CCAÇ 2382 - A hora da partida
19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane
14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2944: Convívios (66): Pessoal da CCAÇ 2382, no dia 3 de Maio de 2008 na Vila de Óbidos (Manuel Batista Traquina)
23 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2791: Álbum das Glórias (46): O distintivo da CCAÇ 2382, 1968/70 (Manuel Baptista Traquina).
13 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2533: O cruzeiro das nossas vidas (10): Fui e vim no velho e saudoso Niassa (Manuel Traquina)
2 de Janeiro de 2008> Guiné 63/74 - P2399: Tabanca Grande (47): Manuel Traquina, ex-Fur Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)
Sem comentários:
Enviar um comentário