
Caro Carlos:
Mais uma estória, desta vez pequena e de pouco interesse, mas foi o que se pôde arranjar de momento.
Aproveito para dizer que acompanhei as sessões, no Clube Literário do Porto, (anúncio postado no Blog), de que gostei muito.
Aprendi mais umas coisas sobre a Guiné, através de alguns estudantes guineenses lá presentes.
Já tinha ouvido tocar cora várias vezes na Guiné mas num ambiente fechado e sem ruidos é simplesmente divinal.
Ontem assisti à projecção do filme Nha Fala, que achei de nível internacional, comparável a muitos outros filmes que tenho visto nas salas de cinema. Achei-o com certos ares do filme Gato Preto Gato Branco do Kusturica.
Um abraço
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BAFATÁ
17 – Apanhado pelo clima
Foto e legenda: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.
Nasci ainda durante a 2.ª Guerra Mundial e comovo-me ainda hoje ao saber, por mo terem contado pois tinha dois ou três anos de idade, que o meu pai ia propositadamente ao bar da esquina, tomar um café sem açúcar, para o poder trazer ao filho, dado que nessa altura tudo estava racionado.
Quando fui estudar para o liceu em Coimbra, tinham passado uns escassos oito anos do fim da dita guerra. Lembro-me de ver em algumas janelas de edifícios públicos cruzes de papel colado, para os vidros não estilhaçarem muito no caso de um ataque aéreo, isto apesar de o nosso país ser neutral.
Tudo isto para dizer que quando fui mobilizado para a Guiné, só ainda tinham passado também uns escassos vinte e poucos anos do fim daquela guerra. Se ainda agora, passados quarenta anos, discutimos a nossa guerra, nessa altura, pelo menos em mim, ainda estava muito presente a guerra de 39/45.
Em Bafatá cedo fiquei a saber que na tabanca de Geba havia um comerciante alemão. Haveria por toda a Guiné muitos comerciantes metropolitanos e talvez muitos mais libaneses, mas existir um alemão metido em semelhante buraco logo me cheirou a esturro. Seria que era um fugitivo nazi?
Durante toda a comissão fui pensando no assunto, principalmente quando regularmente Geba era atacada e o nosso senhor Landorf aguentava firme no seu posto.
Como já várias vezes referi, muita sorte tive na Guiné. Em matéria de ataques fui um privilegiado. Em Bafatá era o que se sabia, paz. Em Bambadinca dormi lá uma noite mas o ataque foi no dia seguinte. Madina Xaquili, onde estive quinze dias, só começou a ser atacada passado um mês de ter saído de lá. Quando muito, de Bafatá via muito bem os ataques a Geba que, como era costume, eram sempre ao princípio da noite.
Estando eu a um mês ou dois do fim da comissão, apanhado pelo clima quanto bastasse, resolvi, no dia seguinte a um desses ataques, ir com a coluna de reabastecimento a Geba. Dois propósitos se impunham: Um era ver como tinha ficado a tabanca depois daquele fogachal todo, o outro era ver o Sr. Landorf e perscrutar, se possível, se realmente tinha ar de nazi ou de um simples civil alemão que teria vindo para aquele buraco refazer a sua vida.
A coluna de reabastecimento, feita pelo Esq. Fox. aquartelado à nossa beira, partiu só ao fim da tarde contando regressar no mesmo dia. Eram pouco mais de 10 Km e a picada era muito boa.
Pedi autorização aos meus superiores e lá salto para cima de um Unimog com a farda que trazia vestida e completamente desarmado. Um autêntico turista. O que aquele clima provocava! É certo que sabia que além dos ataques nunca tinha havido problemas no itinerário Bafatá/Geba, nem emboscadas nem minas.
Em determinada altura do percurso, a uns 2 ou 3 Km de Geba, o Furriel que comandava a coluna mandou-a parar, ao que foi dito, por alguém se sentir indisposto ou coisa parecida. Quase todo o pessoal desceu das viaturas, tendo eu ficado em cima do Unimog. Já estava a anoitecer mas ainda deu para ver, a uns 200 ou 300 metros da cabeça da coluna, um elemento africano atravessar a correr a picada de um lado para o outro. De imediato dei conhecimento disso ao Furriel mas ele não valorizou o ocorrido. Poderia muito bem ser o abortar da primeira emboscada IN no percurso Bafatá/Geba à coluna de reabastecimento. Eu estava no fim da comissão mas os camaradas do Esquadrão, que ainda ficaram por lá muito tempo, é que podem confirmar se passou, ou não, a haver aí emboscadas ou minas a partir Junho de 1970.
Termino referindo que, pelo atraso provocado pela paragem da coluna, chegamos já noite a Geba e foi só descarregar os géneros e as munições regressando de imediato a Bafatá. Não tive pois oportunidade de ver os estragos e tão pouco o Senhor Landorf. Foi uma tremenda desilusão mas ainda hoje penso que, já no fim da comissão, não devia ter feito o que fiz. Muitos camaradas tiveram o azar só nos últimos dias.
Na próxima estória, e de regresso a Bafatá, vou falar de algumas figuras típicas da cidade.
Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2009> Guiné 63/74 - P5262: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (16): O baptismo de fogo da Regina, ou um Capitão não é um Capitão