Publicado originalmente na I Série do nosso blogue, no poste de 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau
Descansa em paz, Iero Jaló
A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
por outros meios,
dirão os entomólogos,
especialistas em insetos sociais,
para quem a morte de um
ou de um milhão
de formigas ou de seres humanos,
é-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
um projeto de ADN
musculado.
Para mim, a guerra é
a aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
para sempre
ao ver morrer pela primeira vez
um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.
Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
de matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
com que se juntam e amortalham
os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
os dias que faltam para a peluda.
Trinta e tal anos depois,
venho dizer-te
as palavras que ninguém te disse
no teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Iero Jaló,
meu herói,
meu camarada,
soldado atirador
do 2º grupo de combate,
3ª secção.
nº 82117869,
da CCAÇ 2590
que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12,
companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
os meus camaradas,
o meu bando de primatas sociais,
territoriais,
predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
de Herr Spínola, o prussiano,
como eu lhe chamava,
ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
são outros contos,
outras histórias,
outros ajustes de contas
com as nossas doridas memórias.
Dscansa em paz,
Iero Jaló,
debaixo do poilão secular
na tua tabanca,
no chão fula,
belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
cercada de arame farpado,
trincheiras,
valas de abrigo.
e cavalos de frisa.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
lá para os lados de Galomaro ?
Desculpa-me ter esquecido
o nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
e o rosto das tuas mulheres,
agora órfãos e viúvas,
sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis,
já não dão o milho painço nem o fundo,
nem a mancarra,
a semente do diabo,
nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra,
voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
poisados no alto da tua morança,
cheirando a morte,
pressagiando a desgraça
Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha,
aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
uma baraca, como eles diziam,
próximo da Ponta do Inglês.
IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
por comodidade,
por lassidão,
por economia de análise.
Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
de cidadão português.
Eras um bravo futa-fula
e eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
mais os teus camaradas,
que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares,
tiros de salva,
hino nacional,
e a bandeira verde-rubra dos tugas
por cima do teu caixão.
De pinho,
do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
à maneira dos teus.
Só faltou o corneteiro
para o toque a finados.
Portugal ?
Ainda te lembras,
os senhores que vieram do norte
e do lado do mar ?
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história.
Nem de geopolítica.
Nem de guerra fria.
No sítio onde moras,
debaixo do teu poilão,
já não tens que saber de nada.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
eu deveria saber o nome da tua aldeia,
no chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Iéro Jaló.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
talvez Sinchã,
ou Madina,
ou Sare qualquer coisa...
Que importa agora ?
Serás mais um dos milhares de soldados desconhecidos daquela guerra.
O que interessa é que chorei por ti,
confesso que chorei por ti,
que morreste a meu lado,
e que levavas um prisioneiro,
teu irmão,
pela mão.
Chorei por ti,
e não tenho vergonha de o dizer,
mesmo se um homem não chora,
muito menos um tuga ou umn fula.
Chorei por ti,
que nem sequer eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
soldado-atirador
de 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
para alimentar a tua família.
Mas, para mim, eras apenas um homem,
da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
A única que conheço.
Foste o primeiro homem que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém,
chorei por ti, Iero Jaló.
Chorei de raiva.
Chorei de imensa raiva.
Nascemos meninos,
mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
por termos nascido
no sítio errado,
no tempo errado.
Imagino-te djubi,
à volta da fogueira,
na morança do marabu ou do cherno
da tua tabanca,
decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
que eu trouxe da tua terra,
e que eu guardo no fundo da minha memória,
são os djubis à volta da fogueira,
soletrando tabuínhas em árabe,
ou pseudo árabe, não interessa.
Lembro-me de quereres aprender
as letras dos tugas
para poderes ser soldado arvorado
e um dia chegares a cabo,
e quem sabe sargento,
e quem sabe oficial,
e quem sabe general.
E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Iero,
morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
na tua cara.
Acidente de serviço
no auge da batalha,
quando avançavas em linha,
no assalto ao acampamento
do IN, do turra,
Levando pela corda
o teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
ainda mais djubi do que tu.
Malan Mané, mandinga,
tão crente como tu,
tão observador dos preceitos corânicos
como tu,
meu querido nharro
Iero Jaló.
E agora, meu camarada,
morto e enterrado,
que foste poupado
à humilhação da derrota
e não viste o teu país
sentar-se de pleno direito
à mesa do mundo,
dos senhores do mundo...
Nem tiveste que fugir para o Senegal...
Que farias tu com esta independência
contra a qual lutaste
sem querer,
sem saber,
sem poder ?
Onde estarão hoje os teus filhos,
e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
não chegaste a aprender o alfabeto latino
e a juntar as letrinhas
e ler,
com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
não de morte matada, como a tua,
mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
foi miseravelmente fuzilado
na parada de Bambadinca,
o poderoso régulo de Badora,
tenente de milícias,
que havia trocado o cavalo branco
da gesta heróica do Futa Djalon,
por uma prosaica motorizada japonesa
de 50 centímetros cúbicos,
oferta do Homem Grande Bissau...
Era dono de centenas cabeças de gado
e de uma harém de cinquenta mulheres,
uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
era filho dele,
o Umaru e mais djubis da CCAÇ 12.
Hoje os heróis do passado sucumbem
sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e inanição
às portas do templo da deusa Europa,
em Ceuta e em Melilla,
em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
desde esse dia já distante
em que a tecnologia da guerra
ou a lotaria do ADN
te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
três meses depois de jurares bandeira
e te comprometeres, por tua honra,
a defenderes uma pátria
que te disseram ser a tua,
até à última gota do teu sangue ?
E do Malan Mané não tenho notícias,
se é isso que queres saber,
mas duvido que ele tenha sobrevivido
aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
à laia de despedida:
não sei se um dia
ainda terei coragem de voltar
à tua terra,
ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
gostaria de perguntar pela tua aldeia,
e de procurar-te
e de ter tempo para conversar contigo,
só tu e eu,
debaixo do teu poilão.
Descansa em paz, Iero Jaló.
Luís Graça,
[revisto nesta data]