terça-feira, 25 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)



Guiné > Região de Tombali >  Ilha do Como > Cachil > 1966 >  Interior do aquartelamnento

Foto: © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados.



1. Mensagem, de 1 de setembro, do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66).

Olá Luís!

Aqui te mando parte duma novela escrita em memória do nosso saudoso camarada [Mário} Sasso (*). Talvez se enquadre no nosso blogue.


Um grande abraço, extensivo aos tertulianos todos.
Joaquim Mendes Gomes
_________________

FICOU UM PALMEIRIM NAS BOLANHAS DA GUINÉ… > PLANO

1.- A Origem do Nome – “PALMEIRINS”

2.- A Cidade Moçambicana da Beira

3.- A Barra do Tejo

4.- Os Cheiros de Lisboa

Chapter 1

&.- 1 – A Feira Popular

&.- 2 - Uma Sardinhada em Cacilhas

&.- 3 – As Brumas (Ruelas) Fadistas de Alfama e Madragoa

&.- 4 – As Palmeiras da Estufa Fria

&.- 5 – As Vielas da Ameixoeira

&.- 6 – A Feira da Ladra

&.- 7 – A Baixa às ordens de Pombal

&.- 8- O Jardim do Campo Grande

&.- 9- A Estrela Real

&.-10 - Os Bosques de Monsanto



2. Ficou um Palmeirim nas bolonhas da Guiné (1): A origem do nome: "Palmeirins"

por J. L. Mendes Gomes [, foto atual à direita]

“Os Palmeirins” foi o nome de guerra que a companhia de caçadores 728, aplaudiu, em peso, perfilada no sítio habitual do quartel da Ilha do Como, diante do comandante.

Cerca de 200 homens, na flor da juventude, a maioria, alentejanos, viviam, ali, dentro das 4 paliçadas, de toros de palmeira, carcomidos pelos 2 anos de exposição ao rigor tropical dos elementos, já quase reduzidos à carcaça exterior.


Serviam mais de confortável albergue às possantes ratazanas que abundavam e de cortina, muito frágil, p´ra tapar as vistas, do que de desejado fortim protector para a metralha que, a qualquer hora, poderia chover, grossa e medonha, a partir das matas espessas, lá ao fundo.


A companhia já ia, quase, no final do primeiro ano da comissão. Era preciso arranjar-lhe um nome de guerra, como tinham as mais antigas. Deveria ser um nome que, por si, sugerisse ou tivesse alguma coisa a ver com a companhia, em concreto.


O capitão Silva lançara o repto, de um modo especial, aos 18 sargentos e 5 alferes, como era de esperar. Era pena. Mas, ainda havia muitos analfabetos.


Ao fim de uns dias, o comandante do 2º pelotão, o alferes Mendes Gomes, por sinal e feitio, o alferes que já se tinha revelado mais virado para essas questões, ─ passava a maior parte do tempo livre, a mexer e remexer livros, de história, literatura ou de direito, tinha andado no seminário até muito perto do fim, dera aulas de português aos voluntários, da companhia ─ apresentou ao capitão o nome de “PALMEIRINS”…


O capitão riu…Nem sim, nem não… E ficou à espera da explicação. Nunca tinha ouvido falar na novela de cavalaria do Palmeirim de Inglaterra, famosa, pelo menos, para quem tenha estudado história da literatura portuguesa.
Conta a história de uma figura da cavalaria inglesa na Idade Média, semelhante ao nosso lendário, herói e aguerrido cavaleiro, Nuno Álvares Pereira.

Esta relação histórica com o herói de Aljubarrota e a conotação natural da companhia com o mundo das palmeiras, omnipresentes, transformadas na matéria prima por excelência para tudo que era essencial à segurança e ao conforto, conquistou, logo, a simpatia do comandante, dos alferes e dos sargentos.
 
─ Vamos reunir a companhia, a ver o que eles pensam. “Palmeirins”, é um nome que até soa bem ao ouvido  , acrescentou.

Momentos depois de acabar o bem conhecido toque de corneta, os duzentos homens, tresmalhados pelo universo variado daquele mundo, pequeno mas completo, começaram a formar a companhia, em tronco nú e de chicatas de esponja, nos pés, ( o traje habitual que se imponha a toda a gente) apreensivos com o motivo daquele toque inesperado.

Chegou o último soldado, - era sempre o mesmo, o castiço e pacholas soldado Faria, parecia um pouco atrasado da bola, mas não, era assim mesmo, um ensonso, com a sua regra muito pessoal e sem remédio, por mais que o comandante o repreendesse.
─ Ó meu comandante, eu estava a dar de cadeiras quando ouvi o toque a corneta…e não podia… atalhou ele com a habitual inocência.

Uma gargalhada geral. Agora toda a gente sabia o que era isso de dar de cadeiras…como se dizia no Alentejo…
─ Meus senhores. A nossa companhia já não é maçarica. Também não é velhadas…Ainda vai ter de aguentar mais uns anitos, por estas bandas…

Ouviu-se um urro geral, respeitoso, em uníssono, saído daqueles pulmões bem puxados e bravios…─ Anos?… Nunca. Só uns mesitos. Sim…─ gritou um dos mais atrevidos, como os há sempre.

E o capitão continuou. Todas as companhias precisam de um nome de guerra, em vez do número que lhe deram.
─ 728 é lá para os “mangas” da CCS (Os serviços administrativos)
─ É verdade.  ─  crescentou alguém, lá do meio.
─ Aqui, o nosso alferes Mendes Gomes pensou num nome que me parece bem. Vamos ver o que é que vós pensais dele. Ele vai explicar.
─ Então qual é?…gritou um dos tais que nunca conseguem conter-se.

O alferes Mendes Gomes avançou para a frente da companhia, postada, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas…
─ O nome que encontrei é “ OS PALMEIRINS”.

Uma risada geral, entrecortada de um nervoso miudinho , logo interrompida, para ouvirem bem a explicação. O nome soava bem mas não lhes dizia nada. Ainda se fosse o nome de algum animal feroz, de meter medo ou respeito a toda a gente…Os Leões…Os Lacraus…Os Panteras… Palmeirins, que é isso?…Deve ter alguma coisa a ver com palmeiras, mas mais nada…
Foram as interrogações que o alferes começou a avançar como sendo as que lhes estava a ler na cara deles. Começou então a contar os traços essenciais da época famosa da cavalaria, nos tempos recuados da Idade Média, em todos os países da Europa e, principalmente, na Inglaterra e Portugal . Citou o exemplo conhecido da maioria, apesar dos muitos analfabetos que havia, do nosso D. Nuno Álvares Pereira, o vencedor da Batalha de Aljubarrota.

Via-se que as coisas já estavam a ganhar algum sentido. Pois bem, quem estudou a História da Literatura Portuguesa, ouviu falar dum romance famoso que conta história de um guerreiro inglês, chamado “ O Palmeirim de Inglaterra”. Foi um livro tão famoso e lido pelas pessoas daquele tempo, como agora se lê a história do Tio Patinhas… [Vd. à esquerda capa da  Crónica de Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, ed. 1786, publicada originalmente em Lisboa, em 1592, cortesia do sítio Open Library]

De novo, uma gargalhada rebentou. Bom sinal…

Esse Palmeirim era um guerreiro terrível para conquistar castelos. Nem um só lhe resistiu. O simples boato de que o Palmeirim e o seu pelotão de cavaleiros andavam, por perto, era o bastante para toda a gente fugir dos campos e aldeias e se fechar a sete chaves nas muralhas do castelo, até a onda de terror passar.
 
─ Era um “gajo fodido”, meu alferes. ─ avançou, inesperadamente, de forma interrogativa e a resumir, bem à sua moda, aquela lengalenga duma cavalaria, atrasada, movida a fardos de palha que já não dizia nada a ninguém  ─ um dos habituais soldados, desavergonhados, mas com a malandrice toda deste mundo meida na cabeça.

O alferes, que ainda continuava a ser, um tanto, púdico, demais para a maioria, apenas esboçou um ligeiro sorriso, o bastante para se peceber o seu acordo, parcial e continuou a descrever as virtudes daquele energúmeno, inglês, na tentativa de conquistar não só a simpatia como a admiração e orgulho do novo patrono de guerra…Diga-se que sentiu medo de o não vir a conseguir e, no seu íntimo, chegou a arrepender-se de o ter indicado.

Mas quando se lembrou, sentiu tanta alegria e certeza que nunca imaginaria que não fosse aceite. Se o não fosse, seria porque não tinha sido capaz de o apresentar à rapaziada. 
O capitão gostou logo, lembrou-se, de si para si, num esforço íntimo de se mostrar mais convincente.

De repente, uma salva de palmas irrompeu inesperada e estrepitosa. Estava consagrado o acordo de toda a gente. Nem era preciso mais histórias. Que alívio invadiu o alferes Mendes Gomes, já quase a esgotar as ligeiras recordações que ainda se encontravam na memória. Não tinha ali um só livro de literatura, onde pudesse ir beber qualquer coisinha.


Guiné > Região de Tombali > Pendão da CCAÇ 728, Os Palmeirins (1964/66)


Foto: © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados




Pronto. Agora, havia que desenhar o emblema para a bandeira dos “PALMEIRINS”.  Desenho, isso, já não era para a sua mão pesada e cegueta…

Alguém haveria de arranjar um desenho. E arranjaram. A tempo de o nosso famoso Primeiro Sargento, de carreira, levar consigo, para mandar fazer na metrópole, quando fosse de férias…em Julho seguinte. Um fundo preto. Duas palmeiras, fera, altas e esguias, ao centro de um quadrilátero em movimento . Uns traços sugestivos, a amarelo e vermelho e ali estava o futuro símbolo daqueles guerreiros, com muito sangue na guelra, mas que, - a verdade é para se dizer- ainda não tinham tido o seu baptismo de fogo !…

Mais uns tempos e já era corrente o uso fraternal de palmeirim, no trato matinal e saudação de cada novo encontro dentro da companhia.

A ideia do alferes fora um sucesso.

(Continua)
____________

Nota do editor:

/*) Vd. poste de 29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez


(...) 2.15. O dia final do alferes Sasso

As densas matas do Cantanhez, só de ouvir o seu nome, causavam calafrios aos mais corajosos… Aí, se acoitava uma forte concentração de casas mansas, uns verdadeiros fortins inexpugnáveis, mesmo à força da intensa metralha de artilharia. Podia dizer-se que ali se encontrava o quartel general, inimigo, da zona sul da Guiné.

De lá saíam expedições constantes de grupos a espalhar a insegurança por todos os nossos aquartelamentos, quer por emboscadas quer por ataques às unidades isoladas.

Além disso, controlavam uma população nativa muito numerosa que, voluntariamente ou não, trabalhava os campos, fonte principal do seu abastecimento.

Por todas estas razões tornou-se premente efectuar uma grande operação que desagregasse aquele bastião. Foi o que se pretendeu com a Operação Tornado.


Os três batalhões sitiados no sul, com as unidades de artilharia e cavalaria, mais um grupo de fuzileiros e uma LDM, ajudados pela força aérea, ficaram responsáveis por esse objectivo.

A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.

Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.

Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [na carta de Cacine, Darsalam]. De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.

A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou. À frente, nada se tinha passado.

Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi. (...)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10429: Blogues da nossa blogosfera (56): Novas da Guiné-Bissau



1. O blogue Novas da Guiné-Bissau já existe desde 2009. E tem já mais de 726 mil visualizações. Também está no Facebook, onde tem já quase 1800 amigos, entre os quais alguns membros da nossa Tabanca Grande, mas a maior parte devem ser guineenses da diáspora... 

O autor do blogue, que não sabemos quem é (a não ser que deve ser guineense  e takvez músico), diz que se de trata de um "site de informação, sem fins lucrativos e apartidário" (sic). É do sexo masculino, vive em Lisboa, e tem outro blogue (Braga por um canudo): é tudo o que podemos saber através da consulta do seu "perfil completo" no Blogger.. Está entretanto a construir uma página só dedicada à Música Africana.

Hoje, 24 de setembro de 2012, saudou o dia da República da Guiné.Bissau, nestes termos, desencantados mas com uma ponta de humor (negro):


(...) Calorosas saudações para todos os que estejam a comemorar a independência da Guiné-Bissau. apesar de não haver [nada] que comemorar!!

Hoje completamos 14,040 dias da nossa independência. (...).

2. Todos os povos têm direito à dignidade e  à esperança. E ao seu dia de festa. Apesar da descrença e do desencanto generalizados em relação ao presente (e ao futuro)  da Guiné-Bissau, queremos também deixar aqui um abraço fraterno  a todos os membros da nossa Tabanca Grande, de nacionalidade guineense, a todos os nossos amigos que lá vivem, bem como a todos os  nossos antigos camaradas de armas,  guineenses,  que ainda lá vivem, e lá têm conseguido sobreviver, apesar das muitas dificuldades do presente.

Recordo que, de acordo com as regras do nosso blogue,  procuramos não nos intrometer "na vida política interna da actual República da Guiné-Bissau (um jovem país em construção)", sem que isso signifique a negação do "direito de opinião de cada um de nós, como seres livres e cidadãos (portugueses, europeus e do mundo)"...  Acima de tudo, queremos preservar e celebrar a amizade entre os nossos dois povos. (LG)

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10427: Blogues da nossa blogosfera (55): Memórias de Bissum-Naga, no blogue de Quim Santos (CCAÇ 2781, 1970/72)

Guiné 63/74 - P10428: Notas de leitura (409): "Comandante Hussi", de Jorge Araújo (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Nem sempre uma reportagem de gabarito se pode converter numa peça novelística do mesmo nível, no caso em apreço, o comandante Hussi sai vencedor nos dois processos de escrita, Jorge Araújo pusera a criança a percorrer Bissau sempre a sonhar com a sua bicicleta, nesta história que podia ter começado por “Era uma vez…”, a luminosidade da criança ganha encanto, e o que antes fora uma reportagem de alta intensidade converte-se agora numa narrativa encantadora e imaginativa.
A Guiné-Bissau e os acontecimentos de 1998-1999 são presentes nos dois cenários. As ilustrações de Pedro Sousa Pereira valorizam todo o texto, adoçam o que já é terno, acrescentam, nas suas linhas por vezes pueris, uma densidade que potencia a fantasia do texto.
Mas será mesmo fantasia o objetivo da narrativa? Compete ao leitor ajuizar de tanta capacidade de sonho.

Um abraço do
Mário


Comandante Hussi 

Beja Santos

Foi a ler “Reportagem, uma antologia” (por José Vegar, Assírio & Alvim, 2001) que tive conhecimento do soberbo trabalho de Jorge Araújo, uma peça intitulada “Comandante Hussi”, e publicada no jornal O Independente, numa edição de Fevereiro de 1999. O jornalista cabo-verdiano Jorge Araújo assentou arraiais em órgãos de comunicação social portugueses como O Independente, TVI e Correio da Manhã. Presentemente, é editor do “Actual”, caderno do semanário Expresso.

Comandante Hussi é o seu primeiro romance e venceu em 2003 o Prémio Gulbenkian para a Qualidade Literária. Este romance foi publicado recentemente entre nós (Clube de Autor, Novembro de 2011). O ponto de partida foi a reportagem em que Jorge Araújo percorreu a Guiné em chamas durante o conflito político-militar de 1998-1999. Como escreveu José Vegar, “Quis o acaso que nas ruas de Bissau alguém lhe indicasse o miúdo António Hussi, o mais jovem guerrilheiro de Ansumane Mané. O repórter deixou-se ficar junto dele, ouviu-lhe confidências e narrações dos episódios da guerra. Através dele, contou a batalha de Bissau e revelou ao leitor o desejo de um miúdo recuperar a sua bicicleta. Uma história única possibilitou uma reportagem de escrita avassaladora".

Pode descrever-se assim: António Hussi vivia na miséria absoluta mas tinha um tesouro, uma bicicleta pintada de lama, pedais amputados, celim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor; um dia, o menino foi obrigado a abandonar a sua bicicleta, as balas caiam do céu, a guerra civil veio com toda a força, a mãe partiu e levou a família, o pai ficou a combater, ao lado de Ansumane Mané; António Hussi não quis ficar em Nhacra, regressou a Bissau e pôs-se à procura do pai. A escrita de Jorge Araújo mistura o pungente com a candura, as ruas desertas, asfaltadas de cadáveres, casas abandonadas feridas de balas, almas penadas vestidas de medo; é numa atmosfera de demência e irracionalidade que por ali andam abutres em voo picado sobre corpos em decomposição, paisagem mais desoladora não há: famílias divididas, vidas destruídas, uma cidade inteira a sangrar de dor.

António Hussi a todos vai perguntando por onde anda o pai, dá-se o reencontro o pai está furioso, António não cede perante a pancadaria que levou do pai e este, resignado pela determinação do filho, cede-o ao campo de batalha, ele fica obrigado a fazer tudo como se fosse um homem grande. E Jorge Araújo escreve: “E ele fez. Transportou armas e munições para a linha da frente, fez de pombo-correio, foi ajudante cozinheiro. Não matou mas viu morrer. Passeou pelos horrores de uma guerra fratricida com a mesma inocência com que antes pedalava na sua bicicleta pelas ruas de Bissau”. António assiste à internacionalização da guerra, vê gente de outros países a morrerem ao lado dos homens fiéis de Nino Vieira. E em 6 de Maio de 1999, as forças de Ansumane Mané levam tudo de roldão, Nino Vieira refugiou-se na embaixada de Portugal. Segue-se uma descrição dantesca, naquela Bissau em chamas o Palácio Presidencial era vandalizado: “Assistiu ao saque e à ira da população. Subiu as escadas do velho edifício colonial, atravessou as portas imponentes, vagueou pelas enormes salas abandonadas, vasculhou destroços calcinados, distribuiu abraços pelos soldados vencedores, tropeçou em Kalashknikovs que adormeciam pelo chão”. António é tratado por todos por “comandante Hussi”. A guerra acabara, voltou à sua casa no bairro de Santa Luzia. O seu tesouro mais valioso estava são e salvo: “pintado de lama, pedais amputados, selim desengonçado, os raios das rodas a contorcerem-se de dor, a sua bicicleta estava suja e abandonada, mas era a sua bicicleta”.

O romance pega nesta trama, reconverte os factos e os feitos numa arquitetura onde cabe o mirífico e a possibilidade lendária. A família vive em Porto dos Batoquinhos, ali existe o Batuque Futebol Clube, eterno rival dos Saguessugas, o orgulho do Cais da Sombra. Em dia de futebol rebenta uma guerra, a Guerra do Balão. Entra em cena o brigadeiro Raio de Sol. O pai de Hussi, Abdelei, vestiu a farda militar e mandou a família para outro local. A bicicleta fica ali escondida, angustiado, Hussi parte ao lado de Dona Geca, a sua mãe, e dos irmãos, vão rumo à aldeia dos seus antepassados. Hussi ganha coragem e regressa a Bissau, a todos vai perguntando onde está Abdelei Sissé. É neste ponto que surgem as divergências entre o romance e a reportagem. Aquela Guerra do Balão parece estar empatada, entrara mesmo na rotina, com bombardeamentos à hora marcada, as mesmas conversas nos bunkers improvisados, os ataques à frente leste depois da frente norte, as pausas das tardes de sábado para se poderem beber os relatos da bola. O brigadeiro Raio de Sol tem como feroz opositor o comandante Trovão que acreditava que a guerra estava no fim. É desenhado como um déspota sanguinário, cercado por uma clique de bajuladores, e sobre ele o autor escreve: “O comandante Trovão era uma personagem gorda, tão pesada que o chão tremia com as suas passadas de elefante. O seu rosto era uma cascata em alvoroço, tanto era o suor que lhe escorria pela testa. Tinha um olhar de pitbull anestesiado, dentes pontiagudos, desalinhados, a pele mais gordurosa do que o óleo de palma. Os dedos eram pequenos e redondos. Talvez por isso usasse sempre luvas de boxe forradas de cetim vermelho e se recusasse cumprimentar os visitantes com um aperto de mão”.

A arquitetura da escrita vai resvalando para as considerações moralizadoras, este Trovão vive em perpétuo autoelogio, nunca suportou a traição da bela Ayassa, a menina dos seus olhos, que o trocou pelo brigadeiro Raio de Sol. Convocados os generais, o chefe do Estado Maior informa que estavam empatados, eles controlavam a cidade do asfalto, o inimigo a cidade de terra batida. Furioso, Trovão liquida-o com um tiro de pistola e exige ao major Katinga que lhe traga no dia seguinte o crânio do brigadeiro Raio de Sol. A história desenvolve-se à volta de profecias, era preciso apreender uma bicicleta mágica do filho de Abdelei Sissé, é este o ícone que protege os combatentes. Por portas e travessas, lá se arranjou uma bicicleta qualquer, decapitaram-lhe o selim, e serviram-na ao comandante Trovão sobre uma bandeja de prata. O déspota parece aliviado e volta a ditar mais uma ordem mirabolante: quem for apanhado a pensar numa bicicleta será imediatamente fuzilado. Hussi apercebe-se de que morrera uma bicicleta e logo se afligiu, podia ser a sua, patrulhou o local onde vivera, era tudo um amontoado de destroços. E o menino chorou desesperado pela perda do seu tesouro. Passaram-se os dias e o jovem Hussi descobriu que o inimigo não conseguia ganhar a guerra.

Chegara entretanto o momento da ofensiva final na linha da frente. Assiste ao descalabro dos derrotados em fuga, viu os mercenários estrangeiros a fugirem, viu livros a serem consumidos pelas chamas assassinas. Os vencedores chamavam ao menino herói. A guerra de Hussi não terminara com o fim dos combates, porque os seus pensamentos continuavam estrangulados pelo desaparecimento da bicicleta. E a história edificante termina como deve ser: Hussi recupera a sua bicicleta, ser vivo e objeto conversam, aliás tinham muito que falar, e tudo termina em absoluta concórdia, de acordo com as regras de qualquer história com moral: “Hussi limpou o retrovisor com o seu velho lenço amarelado, sacudiu o pó que asfixiava o cachecol do Barcelona, colocou a fitinha tricolor do outro lado do guiador, ajustou os pedais com a sola das sandálias. Quando se sentou no selim, sentiu-se outra vez dono do mundo. E os dois pedalaram para a eternidade”.

Lê-se a narrativa e é com desgosto que se fecha a última página. A mascote dos revoltosos da Guiné-Bissau é agora personagem com direito a uma eternidade, tal e tanto é o amor que vota à sua bicicleta.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P10427: Blogues da nossa blogosfera (55): Memórias de Bissum-Naga, no blogue de Quim Santos (CCAÇ 2781, 1970/72)











Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2465 (1969/70) > De cima para baixo: (i)  lavadeira, (i) ajudantes de cozinha descascando batas; (iii) crianças á espera das sobras do rancho; (iv) milícias; (v) tabanca, reordenada.

Fotos: Aníbal Magalhães (2009). Cortesia de Quim Santos







"Este Blog foca memórias sobre a guerra colonial, destina-se ao público em geral e aos ex-combatentes em particular", aos militares do BCAÇ 2927 e especificamente à CCAÇ 2781 /(Bissum, 1970/72)...

"Vamos recordar aquele período das nossas vidas passado na Guiné, em particula na zona de Bissau, Bissalanca, Cumeré, Bissorã e Bissum, onde estivemos destacados. Qim"..
.

Fonte: Guiné Bissau - Memórias, blogue de Quim Santos



 1. O Quim Santos - pseudónimo, Verdegaio - vive na Póvoa do Varzim, tem 12 blogues, está no Blogger desde 2007. O nosso grã-tabanqueiro Armando Pires já em tempos se tinha referido ao Quim Santos e a este blogue, tendo inclusive cedido uma série de fotos relativas à chegada dos "piras" do BCAÇ 2927 a Bissorã. E antes do Armando, já o Quim Santos tinha aparecido por aqui a informar-nos da existência do seu blogue e da sua estadia em Bissum, entre finais de 1970 e finais de 1972, como homem das transmissões da CCAÇ 2781.


Em resumo, já anteriormente estava assinalada a existência deste blogue, representando mais um ponte entre o nosso presente e o nosso passado. Metaforicamente falando, um blogue de um camarada nosso deve ser saudado como mais uma estrela no firmamento das nossas memórias. Mas, o que acontece à maior parte deles, é que têm uma vida curta, um trajeto meteórico pela blogosfera. Deixam de ser atualizados, em geral por falta de "matéria-prima" para alimentá-los...Ou então acabam por ser "destronados" pelo Facebook, hoje mais populae que os blogues...

É o que parece ter acontecido a este blogue do Quim Santos. Deixou de ser atualizado a partir de 25 de abril de 2011. Mas, no caso do Quim Santos, o problema pode ser outro: com doze blogues, mais o Facebook, o nosso camarada não tem mãos a medir... Em novembro de 2010 criou um grupo no Facebook sobre o BCAÇ 2927 (que já tem 228 membros): 

(...) Vamos tentar reunir aqui o maior número de combatentes nas ex-colónias, com saliência para a Guiné e em particular a malta do Batalhão de Caçadores 2927, que partiu em missão para a Guiné em Setembro de 1970 no Uíge e era constituído pelas companhias - CCS, 2780, 2781, 2782 e lá ainda com Caçadores 13.

Seria interessante a publicação das nossas vivências e memórias ilustradas com documentos fotos e tudo o mais relacionado com esta campanha na Guiné Bissau, que apesar de ter acontecido nos anos 70, está ainda bem presente nos ex-combatentes que a integraram.

Amigos, interessados nesta temática e ainda familiares dos ex-combatentes serão bem recebidos aqui com os seus depoimentos e tudo o mais que acharem por bem publicar. 

O meu blogue sobre as minhas memórias ao serviço da Companhia de Caçadores 2781 que se fixou em BISSUM NAGA após passagem por Bissau, Cumeré e Bissorã, pode ser visitado aqui. www.guine-bissum.blogspot.com, Abraço a todos os ex-combatentes. Pinto (TRMS da CCaç 2781). (...)


3. Entretanto do blogue sobre a CCAÇ 2781 e sobre Bissum, tomamos a liberdade de selecionar, editar e reproduzir algumas fotos, com a devida vénia. Está também na altura de convidar o nosso camarada Quim Santos para integrar a Tabanca Grande. Sabemso que ele segue o nosso blogue. LG.




Guiné > Região do Oio > Bissum-Naga > CCAÇ 2465 (1969/70) > A velha GMC, "aquela máquina"!...



Foto: Aníbal Magalhães (2009). Cortesia de Quim Santos.


4. PS - Em comentário a este poste, há a seguinte informação, oportunísssima, do nosso grã-tabanqueiro Aníbal Magalhães, ex-alf mil CCaç 2465/BCaç 2861 [, foto à esquerda]:


"Amigo Luís Graça: Quero esclarecer que as fotos apresentadas no P10427 foram tiradas no tempo da CCaç. 2465/B.Caç.2861 (Bissum-Naga, 1969/70).

 "De maneira nenhuma quero reprovar a apresentação destas fotos, até por contrário. Dizem respeito a todos nós, principalmente aos amigos que passaram por Bissum-Naga em várias épocas.

"Um abraço, Aníbal Magalhães, CCaç 2465".



Resposta do editor:

Camarada Magalhães: O seu a seu dono!... Este é um dos nossos princípios sagrados: respeitar os "direitos de autor". Já corrigi o poste. Os créditos fotográficos são, portanto, teus. Fico-te grato pela generosidade e franqueza. No blogue do Quim Santos, é difícil de apurar de quem são os créditos fotográficos. Foram estas as fotos que me sensibilizaram mais, que eu editei e procurei valorizar, fazendo-as chegar a um público mais vasto do que aquele que acede ao blogue do Quim. Tomo boa nota da tua informação, segundo a qual estiveste em Bissum-Naga, de 14/05/1969 a 14/12/1970. 

 Já agora, vou mais longe e peço-te que comentes estas fotos, que são de excelente qualidade. Se bem recordo, a maioria da população civil era de etnia balanta. 

Um alfa bravo, extensivo a todos os camaradas que passaram por Bissum-Naga. LG
_____________


Nota do editor:

Último poste da série > 16 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10392: Blogues da nossa blogosfera (54): A Página do nosso camarada Carlos Silva "Guerra na Guiné 63/74" atingiu o milhão de visitas

Guiné 63/74 - P10426: Passatempos de verão (16): Viva Portugal (Felismina Costa)

1. Em mensagem do dia 21 de Setembro, a nossa amiga Felismina Costa, enviou-nos este poema escrito, "Viva Portugal", acompanhado de um anexo em MP3 com a voz de Fernando Reis Costa a declamá-lo.
Esta mensagem foi difundida pela tertúlia, mas fica aqui acessível a todos os nossos leitores.

Viva Carlos, muito boa-noite! 
A minha intervenção no blogue tem sido curta ultimamente, para não cansar os nossos leitores e amigos. Todos os dias dou um saltinho ao blogue, para ver as notícias, mas não tenho tido iniciativa que ache de interesse para os homens preocupados com a situação actual, do nosso rectângulo formoso e lindo. 

Um amigo, gravou o meu poema "Viva Portugal" e envio a gravação para quem quiser ouvir, ou só para si, Carlos: faça como quiser. 
É a minha forma de manifestar! 

Um abraço fraterno, que estendo a todos os tertulianos e amigos do nosso blogue 
Felismina


Com a devida vénia a Felismina Costa e Fernando Reis Costa
____________

Nota de CV.

Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10421: Passatempos de verão (15): Os Soldados Desconhecidos; A Chama da Pátria e O Cristo das Trincheiras (José Martins)

domingo, 23 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)


Parassuicídio(s), em noite de São Bartolomeu 

por Luis Graça


Acho que adoraria
O silêncio mecânico das ventoinhas
Nas casas de passe,
No tempo em que havia casas de passe
E os pais levavam os rapazes às meninas
Para se fazerem homens.

Em contrapartida, sempre detestei
As flores de plástico e as cruzes de guerra de latão
Nos cemitérios, no talhão dos combatentes
De todas as guerras travadas e perdidas
Nos lugares mais quentes
Da memória.

Se me permitem,
Também não suporto as revistas cor de rosa
Nos consultórios dos psis,
Mesmo se lá colocadas com a intenção piedosa
De servirem de placebo ansíolítico
Para quem espera e desespera nas salas de espera
Sem saber que vai morrer.

Huguenote, católico, judeu,
Anabatista, luterano, ateu,
Muçulmano xiita ou sunita,
Xintoísta, hindu, budista,
Animista,
Voyeurista…
Afinal a vida é,
Irremediavelmente, dizem,
Uma merda,
Um pesadelo climatizado,
Uma encenação,
Um jogo de roleta russa,
Uma bomba de relógio ao retardador.

Sou poeta a
gnóstico, apostólico, romano, 
Mas confesso que tenho medo
Da ameaça de tempestade tropical
No final do verão da vida,
Entre dois equinócios.
Nada mais natural que o medo,
Nada mais humano que o medo do medo.
Fight or flight, luta ou foge, camarada,
Sabendo que nem sempre podes fugir,
Nem sempre podes lutar.

Setembro é um bom mês para se morrer, 

Na frente de todas as batalhas.
Poupem-me o outono,
Dispensem-me do inverno,
Não me falem do natal
Nem me desejem bom ano novo.
E a primavera, por favor,
Outra vez, não!
Quem disse que a vida renasce
Todos os anos pela primavera,
Só pode ter interesse no negócio...

Sou tolerante, ecuménico e laico, 

Sobretudo heterodoxo,
Sou capaz de ouvir e saber ouvir,

Com paciência e compaixão,
As lendas e narrativas contadas pelos mais velhos.
Haverá um dia em que matarão
Todos os mais velhos,
Como em Esparta.
Será o dia da amnésia final,
Tal como o massacre da noite de São Bartolomeu,
Em França, em 1572,
Que foi celebrada com gáudio pela corte portuguesa 
De el-rei dom Sebastião.
In nomine Dei.
Em nome de Deus. 


A velhice é uma heresia.
Todos os velhos são huguenotes.
Todos os velhos custam um pipa de massa
Ao serviço nacional de saúde
E à segurança social
E ao banco alimentar contra a fome
E ao miserável estado a que chegámos.


Por mim, não peço muito:
Uma mesa, com toalha de linha,
Num estreito promontório, sobre o mar,
Um prato de sardinhas douradas
Com pimentos vermelhos,
Um copo de tinto,
Um café e um Lourinhac.
Ah!, e o último cigarro do condenado à morte!

Seria o dia perfeito, (e)terno.
Sem o ruído dos comboios,
Nos seus carris metálicos,
Enquanto os soldados partem para a guerra,
E os navios embarcam
Velhos obuses encapuçados.
A maior noite de ternura
É quando o soldado se despede da mulher amada
E parte para ir morrer na frente da batalha.
Sou sensível aos detalhes,
Como qualquer miseur-en-scène.
Não havia mulheres nas trincheiras do meu tempo
E tinham fechado as últimas casas de passe.

Nunca saberei se o sexo é 

Uma pulsão da vida ou da morte. 
Quem disse Make love, not war
É porque nunca fez (nem poderia fazer)
Amor e guerra ao mesmo tempo. 
As duas artes são disjuntivas.

Candoz, 23/24 de agosto, noite de São Bartolomeu
_____________


Nota do editor:


Úlltimo poste da série > 23 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)


1.  Poema do novo membro da Tabanca Grande  Ricardo [Marques de ] Almeida [, foto à esquerda,], que em 8 de agosto de 2012 se apresentou nestes termos 


Boa tarde,  camarada Luis graça.

Antes de mais, começo por me apresentar, como ex- 1.º cabo nº 08922568 da CCAÇ 
2548 / BCAÇ 2879, do 3º pelotão, comandado pelo alferes João Rebelo e dentre os demais furrieis destaco o furruiel Godinho, ,  o fotografo-dia,que registava as nossas imagens.

Camarada desde o nascimento do nosso blogue que tento entrar sem o conseguir até agora, mas adiante.

Acuso a mensagem que me enviaste dando-me conta de alguns pormenores como o destacado nela, a segurança montada pela tua companhia no regresso da 2548 para Bissau á espera de embarque para Portugal.

Por minha infelicidade, não fiz essa viagem de despedida visto a minha guerra ter antes terminada.  Ou melhor, travei outr, a talvez esta mais violenta que a primeira a que nos estamos a referir pois, foi travada noutras frentes de hospital, em hospital (Caramulo incluído), devido a  tuberculose pulmonar que poderia ser a minha última batalha, deixando-me esta agarrado para sempre, à ADFA - Associação dos Deficientes cdas forças Armadas, meu refúgio e minha segunda casa (...) 

Viseu em 8/8/12
Ricardo Marques de Almeida

[ ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71]




2. Mensagem inserida na nossa página do Facebook, em 21 do corrente:


Em mensagens anteriores via e-mail apresentei-me à Tabanca Grande como sendo o ex-1º cabo nº  089225/68,  respondendo pelo nome de Ricardo Marques de Almeida,  da CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879 que passou pela Guiné nos anos de 1969 a 1971,  sendo este batalhão comandado pelo malogrado tenente coronel Manuel Agostinho Ferreira. 

Apresentei-me com várias fotos e um poema que ainda estarão  em vossa posse á espera de serem publicadas.  Também (vide história do BCAÇ 2879) estou postado no blogue de Carlos Silva sobre a guerra da Guiné. (...)


3. .Poema publicado em 18 de setembro, na nossa página do Facebook >Tabanca Grande 


Deram-me uma arma e disseram-me
estima-a bem, porque vai ser tua mulher
e tua amante!

E
de agora em diante,
haja o que houver,
só ela te pode valer
em momentos de aflição.

E
ganhar-lhe-ás afeição,
porque só ela te pode safar,
em situações menos boas
ela serve para matar.

E
defenderes teus camaradas
ao fazerem emboscadas
naquelas matas escuras,
sofrendo a humilhação
de andar á caça de vidas,
muitas delas por lá interrompidas,

E
outras por lá ficarão
para sempre esquecidas,
enterradas sem caixão.

E
seu pai sem o saber
E
de coração apertado
pensa nada acontecer
ao seu filho tão amado!


Mas eis que chega o carteiro
com a noticia inesperada,
ele salta do pardieiro
onde então se encontrava...

E
estranhando o aerograma
porque era de forma diferente~,
lhe entrega o telegrama
com o faz a tanta gente!

O EXÉRCITO PORTUGUÊS
VEM DIZER-LHE QUE SEU FILHO
AGORA MARCHOU DE VEZ,
VAI CAMINHAR NOUTRO TRILHO.

na sua nova morada
uma árvore é plantada,
de seu gosto o seringueiro
para assinalar que ali
E
a quem passar por aqui
verá Portugal inteiro.


Mas outra árvore nasceu
E
como a outra cresceu
na campa daquele soldado
que foi preciso ele morrer
para Portugal o ver
como cidadão inteiro!

E
de mãos dadas caminham
em perfeita solidez,
numa amizade eterna,
o soldado português
E
o preto guerrilheiro...
vir de tão longe morrer
na pátria de outro ser
E
obrigado a combater
os filhos de outro povo,
sem que razão mais houvesse
p'ra que isso acontecesse.

LIBERDADE, INDEPENDÊNCIA
PÃO, EDUCAÇÃO
SAÚDE, CIÊNCIA

NASCEU EM PORTUGAL
MAMOU LEITE PORTUGUÊS
HOJE É UM SEM ABRIGO EM PORTUGAL
HOJE É UM INDIGENTE PORTUGUÊS

e
hoje
e
hoje
e
hoje.

escrito no ponche de protecção
nas matas de Lamel,

setembro de 1969.
Marques de Almeida

__________________

Nota do editor:

Último poste da série > 18 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10401: Blogpoesia (299): Memória da guerra (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P10423: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (40): Poemas da juventude (III): Natureza louca (Bissau, 1985)


_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 13 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10377: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (39): Poemas da juventude (II): Também eu gritei......

sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 11 de Setembro de 2012:

Meus caros amigos,
Esta é a segunda parte da minha análise ao livro "O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999)" de Guilherme Zeverino*.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2/2)

Retomando as teses de Guilherme Zeverino, para quem conhece a Guiné-Bissau, é quase uma verdade lapaliciana o dizer-se que a introdução do multipartidarismo não veio resolver, antes avivar os problemas internos no seio do PAIGC, gerando uma situação politicamente insustentável, mas, que, em nosso entender, “Nino” Vieira e a sua clique pensavam frivolamente poder controlar. Bom seria que o autor tivesse dedicado algum espaço às eternas lutas entre personalidades e facções, bem como, à permanente dança de cadeiras no seio do antigo partido do Poder. Regista e é digno de nota que nas demais formações partidárias locais, apenas com duas excepções, a liderança coube a dissidentes do PAIGC.

Não sabemos até que ponto o multipartidarismo veio reforçar a sociedade civil bissau-guineense. Para além de uma certa secundarização do PAIGC – perdeu o estatuto de partido único - houve de facto uma saudável abertura aos media, às ONG’s, à igreja e, hoje, dada a virtual inexistência no país de meios de comunicação social de massas independentes, à Internet e aos blogues. Todavia, o Poder continuou – e continua - a estar nas mãos dos militares, cabendo-lhes sempre a última palavra. Digamos que estamos perante uma porta entreaberta que se pode fechar a qualquer momento.

No que concerne a interdependência entre a crise no PAIGC e a crise nas Forças Armadas, devemos assinalar que, efectivamente, essa correlação existe. Mais. O Partido no seu último Congresso (o VI, nas vésperas do conflito), optando por uma estapafúrdia e absurda política de avestruz, não abordou as questões mais candentes das Forças Armadas ou o problema “escaldante” de Casamansa, nem sequer aflorou o tema dos veteranos de guerra. Os militares verificaram, assim, que a solução dos seus problemas devia ser resolvida por eles próprios, à semelhança aliás do que “Nino” Vieira fizera em 1980. Se a interdependência entre as duas crises parecia ser patente, não obstante, a resolução dos problemas seria estritamente militar e não tinha nada que ver com as questiúnculas internas do PAIGC. É aqui que se separam as águas. Há quem queira ver no levantamento de 7 de Junho de 1998, uma questão interna partidária com expressão castrense, a inversa assume, a meu ver, foros de maior verosimilhança. O fulcro do problema estava em “Nino”, o grande régulo – Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Presidente do PAIGC – e, bem entendido, no seu “núcleo duro”. Em suma, e para não nos perdemos noutras considerações, a interdependência entre as duas crises existe, mas não foi a causa principal do confronto (foi tão-somente uma das causas, porque outras houve de dimensão semelhante). Logo, a questão tem de ser relativizada.

Desconhecemos em que medida a rivalidade cultural Portugal-França e as respectivas políticas de cooperação terão levado a posicionamentos divergentes na crise bissau-guineense. Estes factores contribuíram, seguramente, para o reforço dessas posições, mas não as engendraram Todavia, os dados essenciais do problema eram, a nosso ver, do foro estritamente político: para Paris, tratava-se de um motim contra a autoridade legítima estabelecida – ou seja, uma rebelião contra um presidente eleito - , logo tinha de ser debelado e, ao longo do tempo, esta posição não oscilou; para Lisboa, partindo inicialmente do mesmo pressuposto, assumiu, de seguida, uma “política essencialmente realista”, como refere Zeverino (vd. p. 87), tendo em conta a situação no terreno, a problemática dos refugiados e a mediação entre as partes em conflito e, há que sublinhá-lo com toda a frontalidade, aproximando-se das posições rebeldes, até porque o regime “ninista”, apesar da democraticidade aparente, era, sob múltiplos aspectos, condenável. Logo, oscilou. Consequentemente, os factores apontados por Zeverino contribuem apenas para alicerçar opções e posições políticas de fundo pré-existentes ou em fase de formação.

A adesão precipitada da Guiné-Bissau ao franco CFA, sem medidas de acompanhamento macro-económicas, foi, como releva Zeverino, nefasta. A má gestão, a inépcia, o sobre-endividamento, o sufoco financeiro, a manifesta incapacidade para debelar a pobreza endémica do país, o ciclo impiedoso do sub-desenvolvimento sem solução de saída, que caracterizaram os governos de Saturnino Costa e de Carlos Correia (deste em menor medida), faziam igualmente parte da receita para o desastre e contribuíram com a sua quota-parte para o levantamento militar. A problemática económico-financeira é, porém, tratada com alguma ligeireza. A nosso ver, merecia maior atenção por parte do autor. Por outro lado, não se pode meter no mesmo saco as adesões à zona franco e à Francofonia, bem como, as pressões externas dos países limítrofes francófonos, ou seja no capítulo das causas económicas (ou económico-financeiras) do levantamento. A adopção do franco CFA insere-se claramente nesta esfera, a francofonia no âmbito politico-cultural, as pressões externas no contexto das relações externas. Misturar alhos com bugalhos induz-nos em erros e confusões desnecessárias.

Estamos inteiramente de acordo que a intervenção militar estrangeira, do Senegal e da Guiné-Conakry, suscitou uma espontânea e muito viva reacção nacionalista por parte da população da Guiné-Bissau. Trata-se, sem sombra para quaisquer dúvidas, de uma questão sócio-política de primeira grandeza e que marcou de forma perene a guerra civil naquele país africano. Todavia, no âmbito social outras questões de grande relevância deveriam ter sido abordadas, pois constituíam problemas estruturais que estão na raiz do levantamento militar e que continuam, ainda hoje, por resolver. Referimo-nos às clivagens entre as velhas e novas gerações de militares (os que fizeram a “luta” e os que não lutaram porque eram ainda crianças ou nem sequer eram nascidos), aos veteranos de guerra, abandonados e votados à marginalização social; e last but not least ao problema étnico, que o autor, de todo em todo, não aborda (sabendo-se, por exemplo, que o grosso dos contingentes das fileiras das Forças Armadas é constituído pela etnia balanta – cerca de 2/3 – um grupo relegado a um estatuto subalterno na sociedade e que “Nino” Vieira, na fase final da guerra, em desespero de causa foi recrutar jovens papeis e bijagós, os “aguentas” , como guarda pretoriana do regime). Aliás, retomando o tema da fissura entre velhas e novas gerações entendemos que se trata de um problema sociológico de fundo e que não se circunscreve apenas ao âmbito castrense, pois afecta horizontalmente toda a sociedade bissau-guineense. Ora, tudo ponderado, para uma obra com pretensões académicas, estas omissões no capítulo social são graves. Finalmente, o autor não aborda e devia ter abordado como causas próximas do conflito as razões de ordem pessoal que levaram Ansumane Mané a revoltar-se contra o seu amigo de sempre e companheiro de luta “Nino” Vieira. E esta questão não é despicienda, como se sabe.

Como tese de dissertação possui alguns méritos, mas com a devida vénia, em nossa opinião, fica aquém das naturais expectativas que se depositam num projecto desta natureza. Mister é reconhecer, porém, que foi escrita e apresentada escassos 4 anos após os acontecimentos, portanto, de certo modo, ainda “a quente.” De qualquer forma apresenta alguns factos marcantes do período em causa e algumas pistas interessantes que permitem interpretar a história recente da Guiné-Bissau.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste anterior de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10421: Passatempos de verão (15): Os Soldados Desconhecidos; A Chama da Pátria e O Cristo das Trincheiras (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 13 de Setembros de 2012:

Boa noite, senhores editores
Tenho um texto "na gaveta" que, mesmo polémico vai avançar.
Há muito tempo que o tinha em mente, mas apareceram na pesquisa a referência a documentos dos anos 60 que quero consultar. Como não os encontrei, ao procura-los, pedi auxilio e estou a aguardar uma indicação, para ser mais preciso na exposição do mesmo.
Entretanto, para ilustrar o texto referido, ao procurar imagens para o ilustrar surgiu um relato que, além do texto, valia pelas imagens, imagens essas do inicio dos anos 20 do século passado. Como disponho de elementos sobre o/os factos, deitei mãos à obra, e por isso terminei há pouco um texto sobre "Os Soldados Desconhecidos", a "Chama da Pátria" e o "Cristo das Trincheiras".
Nada tem a ver com a Guiné nem com a Guerra Colonial. Apenas a diferença. O que revelo neste texto, vai de 1920 a 1858, ou seja 38 anos, tantos como tem a nossa democracia.
Diferenças? Muitas.

Um abraço
José Martins


OS SOLDADOS DESCONHECIDOS 
A CHAMA DA PÁTRIA 
O CRISTO DAS TRINCHEIRAS

O mundo conheceu, entre 28 de Julho de 1914 e 11 de Novembro de 1918, uma guerra que, a pouco e pouco, envolveu quase todos os países de mundo, ficando conhecida como a Grande Guerra, ou a Guerra das Guerras porque se julgava que, depois de tamanha catástrofe, não mais haveria guerras.

Para tal, foi assinado o Tratado de Versalles, em 28 de Junho de 1919, que impunha à Alemanha, pelas nações vencedoras mas principalmente a Inglaterra e a França, sanções politicas, económicas e militares. O tratado foi ratificado pela Liga das Nações em 10 de Janeiro de 1920. No final do conflito, seriam contadas cerca de 19 milhões de mortes, entre as partes em confronto e contando militares e civis. Passada a euforia da vitória, celebrada com desfiles para que as tropas pudessem ser ovacionadas, havia que honrar os que tinham tombado em combate.

Em França, Francis Simon e Maurice Maunoury, “repescam” a ideia de François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans, Príncipe de Joinville, (Neuilly-sur-Seine, 14 de Agosto de 1818 - Paris, 17 de Junho de 1900), de trasladar o corpo de um soldado não identificado na Guerra franco-prussiana de 1870/1871. Assim, a França inumou, no Arco do Triunfo (11 de Novembro de 1920), o seu Soldado Desconhecido.

No ano seguinte, ano de 1921, foi a vez da Itália, Portugal, Bélgica e Estados Unidos da América e no ano de 1922, a Grécia, Checoslováquia, Jugoslávia e a Polónia.

O féretro do soldado tombado em França, transportado por soldados de infantaria 

Na 41ª Sessão da Câmara dos Deputados, realizada em 18 de Março de 1920, o Governo decide fazer trasladar dois corpos de soldados portugueses, um da Flandres e outro de Moçambique. Os Soldados Desconhecidos seriam inumados na Sala do Capítulo, no Mosteiro da Batalha, e as cerimónias teriam início no dia 9 de Abril de 1921, devendo esse dia ser considerado feriado nacional.

Nesse mesmo mês, Março de 1920, o Governo deu instruções ao seu adido militar em Paris, para iniciar o processo de trasladação do corpo de um militar, não identificado, para Portugal. O corpo foi exumado do cemitério na Flandres e transportado para o Havre, ficando em câmara ardente no quartel do Regimento Francês nº 129. Daí foi transportado, no navio de transporte “Porto”, para Portugal sendo, a partir do Cabo da Roca até ao cais de Santos, escoltado pelo Contratorpedeiro “Guadiana”, onde desembarcou a 6 de Abril de 1921.

O féretro do soldado tombado em Moçambique, transportado por marinheiros

No cais de Santos estava postada uma força para prestar Honras Militares ao féretro, que era transportado por seis soldados de infantaria, para o Arsenal da Marinha, sendo depositado na Casa da Balança. Das honras militares prestadas, constaram o hino da “Maria da Fonte”, executado pela Banda da Marinha, enquanto os navios de guerra fundeados no Tejo, fizeram uma salva de vinte e um tiros.

Na cerimónia estavam presentes: o Presidente da República António José de Almeida, o Ministro da Guerra Álvaro de Castro, além de outros representantes do Governo e do Parlamento. A Igreja estava representada por D. José do Patrocínio Dias, Bispo de Beja e Chefe do Corpo de Capelães do CEP.

Entretanto, a bordo do navio de transporte inglês “Briton”, da Union Castle Mail, já se encontrava em viagem, desde a África Oriental Portuguesa (Moçambique), a urna contendo os restos mortais do “Soldado Desconhecido” tombado em combate perante os alemães, nos combates que nunca foram objecto de declaração de guerra, por parte daquele país.

O navio foi, na parte final da viagem, sobrevoado por um hidroavião até ao cais da Pontinha, na ilha da Madeira, onde é desembarcado o esquife com os restos mortais cerca das 20 horas do dia 30 de Março de 1921.

No dia seguinte, ainda na Madeira, pela uma hora da tarde, o féretro foi conduzido em cortejo no qual se incorporaram as autoridades civis e militares, o corpo consular, alguns oficiais ingleses, representantes das diferentes escolas e agremiações, contingentes das forças militares da guarnição do Funchal, desde o Posto de Desinfecção Marítima, onde tinha sido recolhido após o desembarque, até aos Paços do Concelho, onde ficou em câmara ardente até ao dia 3 de Abril, data em que foi embarcado no cruzador “Republica” para ser conduzido até Lisboa, onde chegou no dia 6 de Abril de 1921 para ser conduzido para a Casa da Balança, onde se encontrava o corpo do militar tombado em França.

As autoridades que estiveram na recepção ao corpo do militar vindo de França, também estiveram presentes à recepção do soldado vindo de África.

Para as cerimónias de inumação dos Soldados Desconhecidos, e que se iriam desenrolar em Lisboa, Leiria e Batalha, diversos países fizeram-se representar pelas seguintes entidades oficiais e representações militares:
• Marechal Joffre, da França, e o cruzador francês “Jeanne d’Arc”;
• Marechal Diaz, da Grã-Bretanha, e o cruzador inglês “Cleópatra”;
• Contra-almirante Hughes e o cruzador USS “Olympia”:
• General Smith Dorien, Governador de Gibraltar
• Almirante Pedro Zofia, de Espanha, e o cruzador D. Afonso XIII”.

No dia 7 de Abril, as urnas contendo os restos mortais dos "Soldados Desconhecidos", foram transportados em armão militar desde a Casa da Balança, nas instalações da Marinha, até ao Palácio do Congresso, hoje Assembleia da Republica, seguindo pela Rua do Arsenal, Rua do Ouro, Rossio, Avenida da Liberdade, Rua Alexandre Herculano, Praça do Brasil (actualmente Largo do Rato), Rua de São Bento e Largo das Cortes. O Presidente da República e as entidades oficiais estrangeiras, assistiram à passagem do cortejo das janelas da Estação do Rossio.

O cortejo transportando os corpos dos Soldados Desconhecidos. 

Integraram-se no cortejo a representação da Câmara Municipal de Lisboa, as Bandeiras de todos os regimentos do país com a respectiva escolta, as Universidades, Corporações de Bombeiros, contingentes militares estrangeiros, soldados da Infantaria Portuguesa, Guarda Nacional Republicana, Escuteiros e mulheres cujos filhas foram dados como desaparecidos na guerra. Ao chegarem ao palácio, foram as urnas colocadas em câmara ardente, veladas pelas forças de Terra e do Mar, em permanência, até serem transportadas para o local de repouso final: a Sala do Capítulo do Mosteiro Santa Maria da Vitória, na Batalha.

A Câmara dos Deputados realizou uma sessão de homenagem aos Soldados Desconhecidos, no dia 8 de Abril de 1921.

Quiseram os governantes deste país que, três anos após o “desastre de La Lys” fosse um dia de glorificação para os Combatentes que lutaram e tombaram na Grande Guerra em África a na Flandres, a que o povo aderiu. Afinal estavam a glorificar os seus filhos, os seus rapazes que, deixando tudo, partiram ao para a guerra, tendo tombado por lá ou regressado com mazelas no corpo e na alma.

Porque “Homenagear as cinzas desses Heróis Anónimos, é homenagear as relíquias da Raça lusa, é homenagear os seus irmãos, que, feita a guerra e despidas as fardas de gloriosos combatentes, se espalharam pelas províncias de Portugal, depondo as armas e empunhando o arado, para continuarem as suas vidas tão anónimos e desconhecidos como aqueles que ali dormem…” [texto parcial da homenagem prestada pela 5ª Divisão de Coimbra, no 6º aniversário da Batalha de La Lys – separata do “Correio de Coimbra” – 1924].

As urnas em câmara ardente do Palácio do Congresso

Os esquifes que continham os restos mortais dos Soldados Desconhecidos foram transportados para a Basílica da Estrela, para a cerimónia solene das exéquias fúnebres, que seria celebrada pelo Cónego Anaquim, o Arcebispo de Évora D. Manuel Mendes da Conceição Santos teve a seu cargo a homilia, sendo a absolvição proferida pelo Bispo de Beja D. José do Patrocínio Dias que, Cónego da Sé da Guarda em 1915, se ofereceu para voluntariamente servir no CEP na assistência aos soldados portugueses em França, tendo sido nomeado Capelão Chefe. À cerimónia, preparada pelo Bispo de Beja e o Ministro da Guerra Álvaro Xavier de Castro - para serem dignas dos soldados tombados em combate - assistiram o Chefe de Estado, as delegações estrangeiras da Itália, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Espanha, e altas dignidade civis e militares.

Finda a cerimónia, o cortejo saiu da Basílica descendo a Calçada da Estrela, Avenida Presidente Wilson (actual D. Carlos I), 24 de Julho, Cais do Sodré, Rua do Arsenal, Rua Augusta, em direcção à estação do Rossio, onde aguardava um comboio especial para transportar o féretro sob escolta de honra, e as demais entidades para estação de Leiria, estando as ruas ladeadas pelo povo em sentida homenagem aos Heróis da Pátria.

O Cardeal-patriarca de Lisboa D. António Mendes Belo, o Presidente da República Dr. António José de Almeida, e o presidente do Ministério Dr. Bernardino Luís Machado Guimarães, seguiam a pé, nas ruas de Lisboa, os dois ataúdes que continham os restos dos Soldados Desconhecidos.

Junto à estação do Rossio, que junto à fachada tinham sido colocados sacos de areia e morteiros, simulando uma trincheira, as urnas foram recebidas pelas autoridades portuguesas e delegações estrangeiras, postadas em continência.

Vagão onde foram transportadas as urnas. 

Para transportar o féretro na sua viagem para Leiria e daqui para a Batalha, foram organizados três comboios.

Os ataúdes foram, a partir de Leiria, escoltadas pelas bandeiras dos regimentos de todo o país e das legações estrangeiras, assim como por uma força militar em Guarda de Honra.

No espaço frente ao Mosteiro da Batalha, que ia ser transformado em Panteão da Pátria, duas filas de militares armados continham a multidão que se comprimia num último adeus aos seus Soldados Desconhecidos.

À passagem do féretro, seguido pelas bandeiras, os militares apresentaram armas numa eterna homenagem e num adeus derradeiro, enquanto as bocas de fogo davam salvas de artilharia.

A partir desse momento, “o Túmulo do Soldado Desconhecido no Mosteiro da Batalha passou a ter sempre uma guarda de honra e uma vela acesa como sinal do respeito perene pelos que caíram no cumprimento do dever”.

* * *

Quem segue de perto o dia a dia deste país, decerto que se vai apercebendo que, apesar dos mesmos factos nunca se repetirem, o que é certo é que a história, as várias histórias deste centenário povo acontecem, senão com certos laivos de igualdade, pelo menos com muitas parecenças.

Depois de pensada e executada a trasladação dos corpos de militares tombados no Campo da Honra em África e na Flandres, depois das cerimónias a que foram atribuídas o maior brilhantismo possível, passaram ao “esquecimento”. A distância da Batalha ao centro do poder instalado em Lisboa, a “Capital do Império”, era mais que suficiente para o esquecimento: o que tinha sido considerado o Templo da Pátria, o Panteão dos Heróis, estava ao abandono.

Um dos armões onde foram transportadas as urnas, de Leiria para a Batalha.

Esta situação era constatada, não só por quem visitava aquele templo erguido por voto de D. João I aquando da batalha de Aljubarrota, mas sobretudo por delegações estrangeiras, que lá se dirigiam, para honrar os restos mortais dos Soldados Desconhecidos de Portugal.

Nesse sentido, em 24 de Maio de 1922 [data não confirmada], o Parlamento dá conhecimento do facto ao Ministro da Guerra General António Xavier Correia Barreto do estado de abandono, pelos poderes públicos, em que encontra o Panteão dos Soldados Desconhecidos, na Batalha, a Sala do Capítulo, assim como a vergonha que representava para o país e para o Exército. Para obviar esta situação vexatória para o país, foi votado “uma verba suficiente para completar de forma condigna a homenagem aos Soldados Desconhecidos, que são o símbolo da heroicidade da raça lusitana nos campos da Europa, África, no ar e no mar, durante a Grande Guerra”.

* * *

Pela pena do jornalista Gabriel Boissy surge, em 1923, a ideia de colocar junto da tumba onde repousam os “Soldados Desconhecidos”, uma “Chama da Memória” que, uma vez acesa, permaneceria assim, perpetuando uma luz, por maior que fosse a escuridão, uma luz dizíamos, que sinalizasse o local onde jaziam os Soldados cujos corpos não identificados, representavam o sacrifício dum povo. Ainda persistia a ideia de que o mundo tinha assistido, na época de 1914/1918. à Guerra das Guerras, ou seja, a última.

Pura ilusão, sabemos hoje, e de que maneira! Assim, dando corpo à ideia da colocação de um lampadário junto dos restos mortais destes Heróis, a 5ª Divisão do Exército, sediada em Coimbra, tomou à sua responsabilidade levar a efeito esta concretização, recaindo sobre o Mestre António Augusto Gonçalves, escultor, elaborou o projecto, cuja entrega dos desenhos fez ao Presidente da Comissão da “Chama da Pátria” , em carta datada de 1 de Abril de 1961, de que se transcreve a explicação das figuras que a compõem: “Devo esclarecer que as três figuras representam combatentes, sintetizando os acontecimentos de três épocas das mais gloriosas dos feitos portugueses: 
• Fundação da nacionalidade – D. Afonso Henriques (Século XII). 
• Consolidação definitiva da nacionalidade na península e a sua dilatação pelas conquistas ultramarinas – D. João I (Século XV). 
• Confirmação dos seus destinos na revivescência das suas energias históricas na “Grande Guerra” da actualidade [Século XX].”

A execução da obra foi entregue a Lourenço Chaves de Almeida, 1º Sargento Serralheiro do Regimento de Infantaria nº 23 (Coimbra) e discípulo do autor do projecto, que enaltece no texto que escreveu e acompanhou a entrega da obra, dizendo: “Preito da Minha Gratidão ao meu Querido Mestre António Augusto Gonçalves, que depois de Meu Pai, foi quem completou a minha personalidade artística!”

Ultimo e definitivo projecto da Lampadário “Chama da Pátria” tal como se encontra no Mosteiro da Batalha velando os restos simbólicos dos Heróis portugueses na Grande Guerra.

O 1º Sargento Serralheiro Lourenço Chaves de Almeida era condecorado com a Cruz de S. Tiago da Espada – grau Cavaleiro, medalha da Vitória do CEP e medalha de Comportamento Exemplar.

A escultura, em ferro forjado, foi iniciada em 20 de Abril de 1921 e concluída em 29 de Junho de 1922, tendo sido dispendidas cerca de 4.800 horas de trabalho.

A sessão de entrega do lampadário para ser colocado junto da Campa Rasa dos “Soldados Desconhecidos”, foi efectuada em 9 de Abril de 1922, pelas 15 horas, na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha.

Foi o Ministro da Guerra, Tenente-coronel Américo Olavo Correia de Azevedo, que acendeu a “Chama da Pátria”, a ser alimentada por genuíno azeite português.

No já extinto jornal diário o “Século”, o jornalista Mário Campos escrevia, na edição do dia 9 de Abril de 1924, na página 5 na sua crónica “A jornada gloriosa do 9 de Abril”: "(...) Precisamente no momento do silêncio, o Sr. Ministro da Guerra, o Sr. Américo Olavo, acenderá, na Batalha, junto do túmulo dos Soldados Desconhecidos o «Lampadário da Pátria», devendo fazer uso da palavra nessa impressionante celebração, o general Sr. Simas Machado, comandante da 5ª Divisão militar, os representantes oficiais das Ligas de Combatentes e da Comissão de Padrões e, por último, o Sr. Ministro da Guerra".

* * *

O simbolismo da Sala do Capítulo, não estava completo. Havia “algo” que, durante a permanência das nossas tropas no seu sector defensivo, os protegia e amparava na sua dura missão na guerra e em terra estrangeira.

Dominando a paisagem entre as localidades de Lacouture e Neuve-Chapelle, pregado no seu madeiro e sujeito à chuva e ao vento que se fazia sentir, estava uma imagem de Cristo que, para os nossos avoengos camaradas de armas, representava a ligação à Terra-Mãe, a ligação à Família que, lá longe, se ajoelhava perante uma imagem semelhante, para por eles orar.

Foi sobre esse cenário de “calma e devoção” que, em 9 de Abril de 1918, o exército alemão fez cair a sua tempestade de metralha e morte, fazendo revolver a terra e incendiando-a. Neuve-Chapelle quase desapareceu do mapa, reduzida a escombros.

No terreno tombaram, no Campo da Honra, cerca de 7.500 portugueses da 2ª Divisão do CEP, agonizantes ou já mortos.

De pé no local, apenas o “Cristo Crucificado”, apesar de mutilado: os estilhaços tinham-lhe decepado as pernas e um braço e uma bala, “a lança dos tempos modernos” tinha-lhe trespassado o peito.

Para os portugueses era, e ainda é, o “Cristo das Trincheiras”.

O “Cristo das Trincheiras” derrubado da cruz.

As tropas retiraram ou foram retiradas, mas a imagem manteve-se no seu lugar em permanente vigília, na mesma forma e local em que estivera ma Batalha do Lys, durante mais quarenta anos.

Imagem de grande significado quer para os soldados do CEP quer para a generalidade do povo português, que já ouvia da boca dos combatentes o sucedido e, por esses relatos, já conhecia esse Cristo, o que acabou por ser solicitado, pelo governo de então, a sua vinda para Portugal.

A Imagem chegou a Lisboa, por via aérea, em 4 de Abril de 1958, por sinal na Sexta-feira Santa, acompanhada por uma delegação de combatentes portugueses, que tinham fixado residência em França, e por uma delegação de deputados franceses, chefiada pelo Coronel Louis Christians.

Apoteoticamente recebida pela população, foi transportada para a Capela da Escola do Exército (actual Academia Militar) nos Paços da Rainha, onde esteve à veneração até ao dia 8 desse mês de Abril, altura em que foi transportada numa viatura militar para o Mosteiro da Batalha, sem qualquer cerimónia especial. Ao chegar à Batalha, foi conduzida para o refeitório do mosteiro, onde ficou exposta.

No dia 9 de Abril de 1958, no 40º aniversário da Batalha do Lys, começaram a chegar ao Mosteiro da Batalha, pelas 11 horas, as entidades que estariam presentes na cerimónia, entre as quais o embaixador de Portugal em França e da França em Portugal, os Adidos Militares da França, Bélgica e Estados Unidos, altas patentes militares portuguesas do Exército, Marinha e Força Aérea (criada em 1 de Julho de 1952), autoridades civis, militares e religiosas.

O “Cristo das Trincheiras” reposto na cruz, à cabeceira dos “Soldados Desconhecidos”. 

Pelo meio-dia chegou ao local o Ministro da Defesa Nacional, Coronel Fernando dos Santos Costa, acompanhado do Coronel francês Louis Christians, aos quais foram prestadas Honras Militares por um batalhão do Regimento de Infantaria nº 7, de Leiria, que tinha participado no CEP com uma força a nível de batalhão.

O andor que transportou o “Cristo das Trincheiras” entre o refeitório e a Sala do Capitulo do Mosteiro de Santa Maria da Vitoria, foi levado em ombros pelos representantes da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, sendo a imagem de Cristo colocada à cabeceira da campa rasa, cuja lápide, inicialmente colocada paralelamente à parede lateral e virada para a porta, tinha sido mudada para a posição perpendicular à mesma.

Findas as intervenções militares e religiosas, o representante francês condecorou os Soldados Desconhecidos, colocando, sobre a laje tumular, duas Cruzes de Guerra.

A fanfarra do Regimento de Infantaria nº 19, de Chaves, executou os toques de ordenança, enquanto uma bateria do Regimento de Artilharia Ligeira nº 4, de Leiria, executava uma salva de 19 tiros.

Medalha da Cruz de Guerra, francesa

Desde a sua inumação na Batalha, os Soldados Desconhecidos têm sido alvo de diversas cerimónias, quer de forças militares quer de outros organizações, lembrando os combatentes que tombaram em defesa da Pátria. É normal haver referências ao “Soldado Desconhecido”, talvez por na lápide que cobre a sepultura, ter a seguinte inscrição:

PORTUGAL, 
ETERNO NOS MARES, 
NOS CONTINENTES E NAS RAÇAS 
AO SEU 
SOLDADO DESCONHECIDO 
MORTO 
PELA PÁTRIA
 _ 

GRANDE GUERRA 
1914-1918

Na realidade são dois soldados e, em nosso entender não são “desconhecidos”.
Esses militares, e todos os outros, tiveram pai e mãe, tiveram irmãos, avós e outros familiares e, possivelmente, muitos já tinham filhos. Portanto não são desconhecidos. Apenas não foram identificados e, por conseguinte, mantêm-se incógnitos, como tantos outros a quem, a História, se esqueceu de registar o Nome.

Fotos: © www.momentosdehistoria.com

José Marcelino Martins
josesmmartins@sapo.pt
13 de Setembro de 2012
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10417: Passatempos de verão (14): Composição fotográfica CCAÇ 2317 - Pioneiro de Gandembel (Joaquim Gomes Soares)