1. Vigésimo segundo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (22)
Uma história de Amor,
em pleno conflito
Já era a segunda vez que desembarcava na província com um
camuflado novo. Sabia quase todos os pormenores, falava
algumas palavras em “crioulo”, embora não exercesse uma
conversação prolongada, sabia que não havia alojamento para
todos os militares, que no princípio iriam ter muitas
dificuldades, alguns iriam chorar, outros iriam revoltar-se, mas
depois tudo se arranjaria, e até, iriam gostar da província.
Era isto que esta personagem, baptizado com o nome de
“Gascidla”, dizia.
Era oriundo do Alentejo, mais propriamente de uma aldeia
próximo de Borba, tinha cumprido uma primeira comissão de
serviço militar na província da Guiné, dizia que era cifra,
depois com as modernices, chamavam-lhe operador cripto, esteve
estacionado no arquipélago dos Bijagós, onde só havia paz e bom
clima, não tinha nada a dizer da comida, falava com as
raparigas e passava quase todo o tempo a bronzear-se nas praias
quase desertas, e dizia:
- Eu tinha uma ilha e uma praia para onde só os locais iam,
portanto não havia estranhos, e para onde levava as minhas
namoradas.
Acabou a sua comissão de serviço e regressou à Metrópole,
como então se dizia. Regressa à sua aldeia, não quis mais pegar
em qualquer alfaia agrícola, andava por ali, fazia uns biscates
que não envolvessem muito esforço físico, era cliente assíduo do
café da aldeia, onde numa pequena esplanada, que havia em
frente, se sentava numa cadeira, debaixo de um enorme guarda
sol, com reclame a determinado refrigerante, cigarro na boca, a
chávena do café, um copo com água, o maço de cigarros e o
isqueiro em cima da mesa, cruzava a perna, às vezes em posição
provocativa, principalmente para pessoas do sexo feminino, e ele
sabia isso, e olhava as pessoas que passavam.
Já lá ia algum tempo e, vendo a cor bronzeada do seu corpo a
desaparecer, com algum desespero, começa a procurar emprego. Na
lavoura havia muito trabalho, mas o “Gascidla” dizia:
- Eu sei conduzir, embora não tenha carta de condução, sei
ler e escrever, não vou pegar numa enxada como antes, agora
quero um trabalho limpo, que me dê algum dinheiro.
Por fim arranja emprego na distribuição de garrafas de gás
“Gascidla”, que na época estava muito em voga, num agente que
havia na vila. Nunca ninguém chegou a saber, pois ele falava,
mas nunca dizia a verdade, qual o motivo que o levou a ir ao
quartel general de Évora e meter requerimento para regressar ao seu paraíso que era o arquipélago dos Bijagós, onde
tinha passado dois anos de felicidade. Alguns que eram oriundos
da área da sua aldeia diziam que foi motivado pelo contacto com
algumas clientes, que eram casadas, e não resistiam à cor do seu
bronzeado e que alguns maridos ciumentos, principalmente ciganos,
estavam prontos a matá-lo, com uma navalha, entre outras coisas.
Mas continuando com a história, o “Gascidla”, pois era assim
que ficou baptizado, apresenta-se um dia na unidade militar
onde se estava a formar o comando de que o Cifra fazia parte,
para juntos irem para a então província do ultramar, e muito
contente diz:
- Finalmente vou regressar ao lugar de onde nunca devia de
ter saído!
O Cifra, muito admirado, diz-lhe:
- Mas a guerra está lá à nossa espera, pois existe um
grande conflito, há um movimento organizado e armado que quer a
independência!
E ele respondia, com ar de quem sabe o que diz:
- Isso é encostado à fronteira, mas para onde nós vamos, e
onde eu meti requerimento para ir, é um paraíso, tu vais ver!
Desembarcados na província, passou por todas as agruras que o
Cifra passou. A princípio dizia que já sabia que era assim, mas
passado uns meses, maldizia a sua sorte e afirmava que tinha
sido enganado. Tinha dificuldade em comer, não executava o seu
trabalho com eficiência, pois trocava as palavras ao decifrar
uma mensagem e dizia que não tinha sido treinado para este
trabalho, que antigamente a cifra era mais simples. Também
dizia que lhe prometeram uma promoção na altura em que se
alistou de novo no exército, mas continuava primeiro cabo sendo
mais velho do que alguns sargentos e furriéis. Quando ia para a
aldeia, que existia próximo do aquartelamento, procurava falar o
seu crioulo, mas como era uma zona de etnia “Balanta”, as
raparigas não o compreendiam, andava revoltado.
O “Gascidla” fumava muito, comia pouco, só gostava de feijão
e grão de bico e os colegas sabendo isso, sempre lhe enchiam o
prato, quando a ementa era “rancho”, bebia alguma água, não
gostava de vinho, às vezes bebia uma cerveja, mas café negro,
era a sua bebida preferida. Pedia ao Cifra para lhe decifrar as
suas mensagens, pois era o Cifra que entrava de serviço a seguir
a ele e tinha sempre umas tantas mensagens já antigas para
decifrar, que depois entravam no comando com um substancial
atraso, o que levava o comando a questionar, caindo as culpas
no “Gascidla”, pois havia uma folha de entregas, com a hora do
seu recebimento, ele não se importava e respondia:
- Promovam-me, como me prometeram e mandem-me embora daqui.
O comando, fazia “vista grossa”, pois o trabalho, embora
atrasado, continuava, até que passado mais ou menos um ano,
o “Gascidla”, pede um mês de férias para ir gozar no arquipélago
dos Bijagós.
Aí possivelmente, encontrou uma das suas antigas namoradas,
convive com ela e no final das férias decide trazê-la para a
vila onde estava estacionado. Aluga um quarto na casa de uma
família Libanesa, onde a namorada fica instalada. A rapariga,
que era bastante bonita, de etnia “Bijagó”, tinha marcas na
pele do corpo, da tribo a que pertencia, com que os pais a
marcaram à nascença, diversos colares no pescoço, que com os
anos lhe fizeram prolongar esse mesmo pescoço, a sua roupa era
primitiva, andava descalça, com algumas argolas na parte
inferior das pernas, portanto não era bem vista em território
“Balanta”, e como não falava português, era muito difícil de se
fazer compreender, só mesmo com a ajuda do “Gascidla”, que a
acarinhava e fazia tudo para que a rapariga sentisse menos a
falta da sua família, da sua praia e do ambiente natural a que
estava acostumada. Entre outras coisas, o “Gascidla” levava
comida do aquartelamento para a sua companheira.
Para lhe ajudar a passar o tempo, com tiras de folha de
palmeira, bananeira, e de outras plantas, fazia cestos e outros
utensílios, alguns em miniaturas, que eram autênticas obras de
arte e também, sempre sobre a guarda e protecção do “Gascidla”,
pescava camarão com uma rede, encostada à ponte do rio, metida
na lama. Algum desse camarão, era vendido aos militares.
Quando questionado pelo Cifra, se era feliz no que estava a
fazer, ele dizia:
- Nunca fui tão feliz em toda a minha vida, ela é a mulher
com que sempre sonhei, ela é real, nada nela é falso, contenta-se
com aquilo que o mundo lhe deu, não tem ganância, não tem
inveja, adora o sol e quando se ri para mim, só eu existo no
seu pensamento. Sou feliz, Cifra, e vai ser ela que me vai dar
muitos filhos.
Pelo menos nas palavras, tinha toda a razão. O tempo foi
passando e quando faltavam dois meses para acabar a sua segunda
comissão, com a ajuda dessa família Libanesa e do comando a que
o Cifra pertencia, o “Gascidla” arranja trabalho numa sucursal
da companhia ultramarina, no arquipélago dos Bijagós e como
falava algum crioulo aí ficou a viver com a sua
companheira.
Isto demonstra que o amor pode sobreviver no meio de uma
guerra. O que se passou depois, com a continuação dessa mesma
guerra, o Cifra nunca soube, mas concerteza que devia de haver
algumas crianças Bijagós, a brincarem na tal praia a que só os
locais iam e que não precisavam do calor do sol para ficarem
com a pele do seu corpo bronzeada, pois já nasceram com essa
tonalidade.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 >
Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)