quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10602: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (7): 8.º episódio: Uma emboscada perigosa

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 29 de Outubro de 2012:

Camarada Carlos Vinhal:
Obrigado pelas modificações e acrescentos que tens (isto do tu é mesmo difícil) vindo a fazer às minhas pretensiosas escrevinhadelas, e tal tem-me vindo a fazer aprender um pouco mais de português, e até estou de novo a consultar a Gramática elementar. Por vezes os dois pontos aqui e não além, alteram completamente a coisa. Obrigado e continua por favor.
Aí vai o 8.º episódio, pois que apesar dos poucos leitores mas dada a vossa disponibilidade, hei-de continuar até que os temas de acabem.

Abraços
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

8.º episódio - Uma emboscada perigosa

Mas nem tudo foi menos feliz e "tocaram-me" as lotarias várias vezes, como naquela em que, indo nós (a minha secção) a fazer um patrulhamento pelo circuito pedonal e até aos "carreiros" (a 3Km do quartel, estrada para Mansabá) local onde os mariolas costumavam "semear" minas, porque sabiam - hoje creio nisso - mas quem lhes dizia não sei, senão escarrapachava aqui, porque sabiam, repito, quando por ali iriam passar os reabastecimentos.

Saliquinhedim (K3) > Dia de ir buscar água a Farim, que se vê do lado de lá do rio. > A minha Secção. Em baixo: o 44, Gomes e Domingues; De pé: Mamadú, Samba, Soares, Kinta, Fernando Nascimento e eu.
Foto © e legenda de Veríssimo Ferreira

Pois aconteceu, que fomos emboscados, apesar de que e como era costume, a progressão estivesse a ser feita bem e como mandam as regras. De lá, vieram uns tiritos para cá... e de cá também nada meigos fomos.
É que não gostávamos mesmo... mesmo... que nos interrompessem enquanto trabalhávamos. Organizámo-nos depois em triângulo e avançámos mato dentro, e estávamos-lhes com uma sede !!!

Ficaram cientes que contra nós dez, a coisa piava mais fino. A certa altura porém, caíram-me umas folhas de embondeiro na cabeça (um tronco passou ao lado), desmanchando-me o penteado à James Dean, com risco do lado direito e tudo. Irritei-me tá visto, porque não gosto que me atirem coisas à cachimónia e olhei para cima.

Entretanto mandei parar a festa, mas do outro lado, não me ouviram decerto e as folhas continuaram a cair.

- Estes gajos são recrutas, não respondam - disse.

Rastejando, mato adentro lá debandaram gemendo. A minha teoria confirmou-se, pois que a cara dos "filhos duma mulher menos séria" estava desenhada no solo e enquanto isso fogueteavam para o ar, dando assim início à destruição da floresta, poiso de tanto macacóide e de alguns jagudis, ali a viver. Operação terminada, correra bem, continuámos...

Troço Bironque - K3, da estrada Mansabá - Farim, alcatroado no tempo da CART 2732 (1970/72)
Foto © e legenda de Carlos Vinhal

Às tantas segredam-me:

- Ali à frente, devem estar à nossa espera, vi passar uns gajos e são mais de vinte...

Estudada a nova situação, pensámos como resolver o conflito iminente... avançámos com redobrados cuidados e no sentido de os envolvermos numa teia donde não saíssem.

Após quase uma hora para percorrer 300 metros, portanto tal aproximação estava a ser enquadrada como nas mais vitoriosas tácticas militares, antes usadas, eis senão quando, estabeleço finalmente, contacto visual e sim eram realmente mais de vinte. Eram mais do dobro do que nós, mas para combatentes experimentados e conhecedores do terreno, a coisa estava destinada a ser "canja", e dali não sairiam impunes.

Último olhar que a neblina dissipava-se e vi que estavam desarmados. E porra... eram gorilas. Daqueles bem grandes. Também me viram... continuaram a comer...

E nós?

Retirámos tristes pelo falhanço do que esperávamos ter sido "manga de chocolate", mas com o sentimento do dever cumprido.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10590: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (6): 7.º episódio: O quotidiano no K3

Guiné 63/74 - P10601: Parabéns a você (488): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10585: Parabéns a você (487): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10600: Vídeos da guerra (11): Sete anos no bacalhau em alternativa aos dois anos no ultramar: o filme A Outra Guerra (Portugal, 2010, 48')




"A outra guerra", filme documentário, realizado por Elsa Sertório e Ansgar Schäfer, em 2010. Trailer inserido no You Tube pela distribuidora, Kintop.

Vídeo (1' 09''): Alojado em You Tuve > KintopPT (2011) (Reproduzido aqui com a devida vénia)

"Uma viagem no Crioula recordando as fainas do bacalhau em plena guerra colonial. Nas décadas de sessenta e setenta, em plena guerra colonial, os jovens portugueses podiam 'oferecer-se' para a pesca do bacalhau para escapar à guerra colonial.  Através de uma viagem, hoje, a bordo do último lugre português da pesca do bacalhau – o Creoula –, três antigos pescadores da grande faina contam as razões das suas escolhas. Recordam as campanhas de seis intermináveis meses nas águas geladas dos bancos da Terra Nova e as duras condições de vida e de trabalho da sua juventude" (Sinopse: RTP 2).

Estreia: DocLisboa 2010. Estreia Televisiva: RTP2 (2011).

Ficha Técnica
Título Original: A Outra Guerra
Realização e Produção: Elsa Sertório e Ansgar Schäfer
Ano: 2010
Betacam Digital, PAL, 48 minutos
Emissão: RTP2 - 2011-01-23
Distribuição: Kinop.

Já aqui falámos deste filme que teve a sua estreia no Doclisboa2010. Passou igualmente na RTP2, e julgo que neste momento está disponível em DVD. Aqui fica, entretanto, uma iota da sua produtora e distribuidora, a Kinop, para quem se interessa pela apaixonante história da pesca do bacalhau e pela sua relação, em 1960/70,  com a guerra colonial. Sete anos no bacalhau equivaliam a 2 de Guiné, Angola ou Moçambique.

2. Nota da produção e realização do filme:

Partir para a guerra ou partir para a pesca do bacalhau? Já quase ninguém recorda que os jovens portugueses tinham nesta alternativa uma possibilidade de escapar aos perigos de um conflito militar em três frentes.

Os pescadores bacalhoeiros estavam sujeitos a condições especiais, particularmente duras, a uma disciplina muito semelhante à militar. Quando iniciámos este projecto, fascinava-nos, em particular, o dilema imposto pelo regime de os homens terem que escolher entre a guerra colonial e a pesca do bacalhau.

Iniciámos o trabalho de pesquisa convencidos de que muitos jovens do interior teriam escolhido partir para a pesca do bacalhau, por ela ter a vantagem sobre a guerra colonial de ser um trabalho remunerado e de gozar da auréola romântica e heróica construída pelo regime. À medida que nos envolvíamos na pesquisa de documentos e de testemunhos, fomos descobrindo que a pesca não tinha esse poder de atracção senão para aqueles que já estavam familiarizados com o mar. Terá sido porque o recrutamento se fazia apenas nos centros piscatórios? Terá sido porque aqueles que iam para a guerra colonial já sabiam que o que os esperava nos bancos do Norte era algo parecido com uma guerra? A nossa ideia de partida começava a ser abalada, o que fazia crescer ainda mais a motivação para fazer deste filme uma oportunidade de investigação «ao vivo». Pelos relatos que tínhamos ouvido sobre a pesca nos bancos da Terra Nova, parecia-nos tratar-se efectivamente da escolha entre duas guerras.

«Sem a guerra, não teria havido pesca do bacalhau», diz-nos um dos antigos pescadores do filme. Com efeito, nos anos 50, a PIDE andava pelas praias, a recrutar à força pescadores para os bancos da Terra Nova. Mas, quando rebenta a guerra colonial, e perante a escolha que lhes é imposta pelo regime, são os próprios pescadores que passam a procurar ser contratados nos bacalhoeiros para «fugir à guerra».

Neste documentário, tomamos como marcos o início dos anos 60 e o final dos anos 70. É um período de mudanças importantes na política portuguesa da pesca do bacalhau, que coincide com o início e o fim da guerra colonial em África e com um dos grandes fluxos de emigração também relacionado com a guerra e as suas consequências económicas e políticas: por um lado, a pauperização de largas camadas da população; por outro, uma deserção numerosa. Esse período irá prolongar-se até meados dos anos 70 com a queda do regime, em Abril de 1974, e o desmantelamento da frota bacalhoeira. Damos, no nosso trabalho, um especial valor aos contributos orais dos protagonistas, com toda a carga de subjectividade que eles trazem consigo. A história não se faz apenas a partir dos arquivos. É indispensável que no reviver desta parte da história portuguesa participem os actores directos que trabalharam a bordo dos navios bacalhoeiros e que felizmente ainda se encontram entre nós, hoje, para nos poderem transmitir as suas memórias.

(Fonte: Kintop > Filmes > A outra guerra > Nota de intenções) (Reproduzido com a devida vénia)





Cortesia do blogue de António Balau, Nazaré, imagens com palavras > Alguns dos homens da Nazaré "que foram ao bacalhau" (poste de 10/6/2009).  Legenda do autor: "Dos registos constam 912 pescadores da Nazaré, na Pesca do Bacalhau. No Centro Cultural da Nazaré, poderá visitar a Caixa da Memória, onde estão as fotos de alguns pescadores da Nazaré. Esta exposição pretende ser um tributo aos homens que foram ao Bacalhau. Fotos: "Portugal no Mar-Homens que foram ao Bacalhau", coor. Álvaro Garrido, 2008"

3. Depoimento de um antigo pescador do bacalhau, Jaime Pontes, publicado em 3/12/201, no blogue Caxinas a Freguesia:

"A Outra Guerra, será que o título condiz ? Eu estou de acordo e com certeza muitos dos que passaram por essa vida , também não discordarão, até porque ainda estão vivos muitos dos que passaram por essas vivências e,  como eu, sabem que era assim mesmo, não havia alternativa, ou guerra colonial ou pesca do bacalhau.

"Claro que quem vivia da pesca preferia ir para o bacalhau,  sempre se ganhava algum e tinha mais possibilidades de escapar com vida ,então entre as duas guerras se escolhia a menos má, eram tempos difíceis esses! Cada vez que os pescadores se juntavam para pedir melhores condições, logo o Sr. Tenreiro,  então Coordenador do Grémio do Bacalhau, o tal Paizinho dos pobres,  enviava a polícia DGS,  antiga PIDE,  para calar os pescadores e eu tenho dados concretos,  como uma vez estive quase para ser preso e mandado para o Ultramar , o que quer dizer frente da Batalha e com certeza mais alguns que nunca estivemos de acordo com as condições de então sobre o pouco que se ganhava.

Nessa altura havia duas propostas em cima da mesa para discutir com o Sr. Alves,  Inspector da PIDE/DGS do Porto, o Sr. Inspector da Pide pediu 3 pescadores que estivessem presos à tropa - era esse o nome para quem ainda não tivesse dado as 7 viagens que era de lei livrar a tropa, Então como se negaram os mais novos a ir a presença do Sr Alves,  comigo vieram dois dos mais velhos,  já livres,  o Tio Abraão do Coca,  já falecido, e o Zeca Varandas,e discutimos essas duas propostas para as novas viagens do bacalhau, coisa que o Sr. Alves nunca nos deixava fazer, era falar, o homem realmente era feroz,  diria mesmo escolhido para amedrontar,  mas fomos firmes e por dois dias discutimos,embora ele sempre dizia que os mais novos iam para o Ultramar,  o que quer dizer Guerra,  e os mais velhos presos. Isto era de mais, por aí se via que ele já nem sabia como nos virar. Passados uns 10 dias lá conseguimos a mísera vitória, que era mais 5 coroas como se dizia nessa altura em gíria por quintal de bacalhau e passar a Páscoa com as famílias e então a partir daí irmos com Deus para o bacalhau. Felizmente conseguimos isso, mas não sem haver uma luta feroz com o Sr. Tenreiro e a PIDE,  isso tenho eu gravado na minha Memória ...As minhas vivências do Bacalhau, de  1963 a 1969 !!!"
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10128: Vídeos da guerra (10): Vida e obra dos Viriatos - CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69) (Parte II) (Henrique Cardoso)

Guiné 63/74 - P10599: (In)citações (43): Recordando coisas da Guiné (Manuel Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviada no dia 28 de Outubro de 2012 à caixa de correio do nosso Blogue:

Prezado camarada Carlos Vinhal,
Venho correspondendo ao teu incitamento de recordar coisas de Guiné...

Aproveito para partir mantenhas e responder ao Henrique Cerqueira, ao Mário Fitas e ao António Rosinha, que a minha prosa lhes mereceu atenção (P10554).

O capitão João Bacar Jaló começou a carreira militar nos Caçadores Nativos, em Bissau e Bolama. Dou a mão à palmatória: não comandava a CCaç 13, mas da Companhia de Milícias 13, de Catió, aquando dos eventos em Cufar. Fui recorrente nesse erro de simpatia.

Meto a minha colherada na desavença de natureza cronológica do NAVEG e do Mário Fitas e aproveito para espraiar memórias da Guiné.

A Operação Razia, do assalto final à mata de Cufar Nalu, ocorreu em Maio; a CCav 703 veio de Bissau para Catió, para a integrar. Nos referidos dias de Abril, andávamos com Os Fantasmas e outra malta, pela região de Buba e Incassol; o tabanqueiro e camarada comando João Parreira foi um dos feridos perto de mim, pelos estilhaços da bazucada turra que abriu as hostilidades, naquela sinistra madrugada de 20 de Abril de 1965.

Da Operação Razia fomos directos para a Fortaleza da Amura, sofremos a redução do período de descanso e voamos nos Dakota, para Nova Lamego (Gabu), de emergência, porque turras e companhia de boinas vermelhas, militares da República da Guiné, andavam por aquela imensa savana, pobre de arborização a meter-se com a tropa, a queimar tabancas, a roubar gados e a matar populações fulas. Uns andaram por Canquelifá, outros por Pirada, outros por Madina do Boé; a mim calhou-me a defesa e segurança à fatídica jangada do Cheche.

Em vésperas da rendição da nomadização em Cufar fixei a notícia da rádio de Argel, pela voz do Manuel Alegre, que Cabral convocara a imprensa internacional para dar a conhecer ao Mundo a iniciativa de limpar a Frente Leste de tugas, aniquilando-os ou empurrando-os, implacavelmente, pelo seu novo e poderoso armamento e lembro-me, como se fosse hoje, de ter premeditado o afundamento da jangada, em contingência, confiado na guarnição e no canhão sem recuo 10.7, instalado num jipe americano Willis, que o comando afectara à minha missão. A força que nos rendeu disparou-o contra um grupo inimigo, abateu dois, impecavelmente fardados, armados com duas “pachanga “ para eles e “costureirinhas” para nós (as pistolas-metralhadoras PPSH), despojaram-nos dos quicos, cintos, sapatilhas de ténis e de uma catana nova, decorada com as cores da bandeira bissau-guineense, que comprei ao novo dono pagando-lhe uma cerveja e uma lata de conservas de anchova, no estabelecimento de um libanês, na rua principal de Nova Lamego, que exibia a tabuleta publicitária da venda de “Bebida gelado”. Foi-me confiscada na mala do carro, na noite de 28 de Setembro de 1974, na barricada montada antes da ponte de Vila do Conde, enquadrada por um marinheiro, jovem e barbudo, que se borrifou para a minha justificação de a fazer circular comigo, como talismã, a indiciar-me “reaccionário da maioria silenciosa”.

A CCav 703 assumiu o sector de Buruntuma em 25 de Maio de 1965, salvo erro ou omissão, a render o Pelotão comandado pelo alferes Vinhas (CCaç 509 ou da CCaç Nativos 3?). Além fronteira via-se a testa duma força de blindados da República da Guiné, salvo erro Panhard´s, com os seus esguios canhões apontados à tabanca. O capitão Lacerda fez o reconhecimento e cuidamos de aprontar um potente fornilho, no eixo da aproximação, ribeirinho ao pequeno rio Piai, que se nos interpunha, um molho de granadas de morteiro e de bazuca, os detonadores conectados a um extenso fio condutor, ligado ao dínamo-explosor, que ficou no posto de comando. Constava que ele havia feito explodir uma ponte, à guarda do pelotão de Cavalaria mecanizada e do seu comando, decidido a opor-se ao avanço de uma força de blindados indianos, na sua agressão ao Estado Português da Índia, havia 4 anos. Caiu prisioneiro e teria sido sujeito de maus tratos extra, por tal valentia. Vivemos mais uma das incontáveis noites de insónia e de prevenção extrema, particularmente aos bazuqueiros, municiadores e remuniciadores, as reservas de granadas à livre disposição, que cobrimos com os panos de tenda individuais.

Nessa noite, a Natureza brindou-nos com o início da época das chuvas, diluvianas e trovejantes, relâmpagos prolongados, o céu em fogo e a dardejar raios e coriscos. Não obstante as propriedades de tanto metal de armas e munições a expor-se à sua atracção, dispersas quanto nós, Santa Bárbara terá orientado um deles a penetrar pelo cabo condutor eléctrico e a viajar directo aos detonadores do fornilho, que se consumiu, numa explosão medonha; o chão tremeu e, por momentos, ficou mais fogo que o fogo do céu. Amanhecemos pela enésima vez ensopados até à medula dos ossos e a tiritar, mais do desconforto que do medo, inseparável companheiro, esgotados pelo cansaço endémico e pela tensão e angústias das vigílias que precedem os combates; e logo nos sentimos mais soltos, ante a gratificante visão de uma enorme cratera, capaz de engolir mais que um dos blindados ameaçadores e pelo desaparecimento destes, sem nos dar combate. O reconhecimento coube à secção e ao furriel Simas que os topou recolhidos no quartel estrangeiro de Kandica, situado a cerca de 1,5 km de Buruntuma e de nós.

A informação posterior encheu-nos o ego. Ao ter conhecimento da vinda para Buruntuma da “cavalaria” de Bissau, o comando guineano da região mandou aqueles blindados para a fronteira, com missão dissuasiva. A fama dos novos vizinhos, a fazer a sua apresentação com a dantesca explosão duma “arma secreta” fê-los dar meia-volta. Tal cavalaria referia-se ao BCAv 705, apodado de Cavaleiros Marinhos e a esteira da sua fama vinha das constantes intervenções pelo Sul e pelo Norte e a economia das suas baixas. Sem embargo os bons comandantes das subunidades, companhias 702, 703 e 704, que a vinda do major Ricardo Durão, para segundo-comandante, veio potenciar, considerávamo-nos soldados afortunados, com mais sorte que valentia, eficientes como pilha-galinhas, pouco dados à lamechas e propensos à maroteira. Começamos a operar no Leste em interacção com a CCaç 727, destacada em Canquelifá e Ponte Caium, comandada pelo capitão madeirense Evónio Vasconcelos; a sua malta era muito fixe, tinha menos tempo de serviço, mas contava 16 mortos em combate. Dir-se-ia que cada tiro cada baixa.

Incluí a equipa da Soares da Costa que, em 1982, negociou o estaleiro e o património mecânico da Tecnil, na estrada de Santa Luzia. Diligenciamos pela contratação de alguns dos seus quadros, já transferidos para Angola. Seria o António Rosinha? Na ocasião, o engº Ramiro Sobral presenteou-nos com garrafas de vinho do Porto, de sua produção no Douro. Num espaço fronteiro a esse estaleiro jaziam as estátuas derrubadas em Bissau, escondidas pelo capim. Paguei 50 contos pela do navegador Nuno Tristão e obtive o respectivo BRE (Boletim de Registo da Exportação), destinando-a ao meu jardim, em memória patriótica. Começara o seu embalamento e apareceu um jovem, apresentou-se como Secretário de Estado da Cultura e anulou a transacção, a incumbência do ex-ministro, o angolano Mário de Andrade, ex-MPLA, alegando que as estátuas pertenciam ao património histórico da Guiné-Bissau. O memorial ao descobridor da Guiné continuou estendido no capim e os meus 50 contos reverteram para os cofres (?) do novel Estado.

O comandante Alpoim Calvão passou por situação idêntica, recentemente. Comprou a estátua do presidente americano Ulisses Grant, derrubada em Bolama, o negócio acabou anulado, mas a ele calhou-lhe ficar arguido de tentativa de contrabando. Que a nossa memória enferruje, mas devagar...

Manuel Lomba
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10203: (In)citações (42): Bombeiro ou Militar, há que optar (José Martins)

Guiné 63/74 - P10598: Agenda cultural (228): O livro "O Outro Lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique", de Manuel Francisco de Oliveira Ramos, foi apresentado em Torres Novas no passado dia 28 de Outubro de 2012 (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2012:

Camarigo Carlos Vinhal
Ontem tive o prazer de assistir ao lançamento de um livro - "O outro lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique".
Entendi por bem fazer uma pequena noticia do evento, noticia esta que anexo. Apesar da noticia se referir a Moçambique e não à Guiné de que trata mais especialmente o nosso bloque, mesmo assim resolvi enviar-te a mesma com o fim de ser publicada se assim o entenderes que é possivel e que a mesma merece ser publicada.
Fica à tua consideração.

Um abraço
Carlos Pinheiro


“O outro lado da Guerra Colonial – Cantina Oliveira, Moçambique” 

Mais um livro sobre a guerra colonial, “O outro lado da Guerra Colonial – Cantina Oliveira, Moçambique”, foi apresentado hoje, 28 de Outubro de 2012, no anfiteatro da Taberna do Aspirante em Lapas - Torres Novas perante uma plateia agradável e interessada na obra.

É seu autor Manuel Francisco de Oliveira Ramos que foi Furriel Miliciano de Operações Especiais (Rangers), na 2.ª Companhia de Caçadores do Batalhão de Caçadores 4810 - Tete -Moçambique 1972-1974 e actualmente é Presidente da Junta de Freguesia de Lapas, localidade onde foi feita a apresentação da obra.

A obra foi editada pelo Núcleo de Torres Novas da Liga dos Combatentes e contou com o apoio da Câmara Municipal de Torres Novas na normalização, revisão e editing, coordenação e grafismo da mesma e ainda com a colaboração de vários camaradas de armas do autor e foi prefaciada pelo Presidente da Liga dos Combatentes Tenente General Chito Rodrigues.

Começou por usar da palavra o Comandante da Companhia a que pertenceu o autor do livro, o Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes, o autor, o Vice-presidente da Câmara e a terminar o Presidente da Liga dos Combatentes.

Todos foram unânimes em elogiar o autor e a obra, tendo o Presidente da Liga tecido ainda algumas considerações acerca do dia de hoje, o Dia do Exército comemorado nas Calda Rainha, e feito a apologia do autor tendo também proferido algumas palavras sobre a guerra propriamente dita e ainda pela forma interessada como a Liga apoia este tipo de iniciativas visto que, na sua opinião, é o conjunto de livros sobre a guerra que um dia irá permitir que se faça a verdadeira história desse período conturbado. Nesse sentido e porque todos os contributos são importantes, deixou bem claro que a Liga já apoiou várias edições de livros e está preparada e interessada em continuar a apoiar futuras edições.

Mesa de honra. Da direita para a esquerda: O Comandante da 2.ª Companhia do BACÇ 4810; o autor; o Tenente General Chito Rodrigues, Presidente da Liga dos Combatentes; Dr. Pedro Ferreira, Vice-presidente da Câmara Municipal de Torres Novas; o Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes em Torres Novas e o orador, no uso da palavra, como representante da Junta de Freguesia de Lapas 

Encerrada a sessão, seguiu-se a habitual sessão de autógrafos do autor aos inúmeros livros que muitos dos seus amigos se prontificaram a adquirir.

Seguiu-se um beberete de confraternização entre os presentes.

Nota finalA Taberna do Aspirante é um edifício da Junta de Freguesia que foi recuperado e é composto por um anfiteatro onde se desenvolvem com alguma frequência manifestações culturais de vária índole, possui também um pequeno bar e outras instalações de apoio e mantém o nome original da taberna que foi tem tempos idos.

Carlos Pinheiro 28.10.12
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10595: Agenda cultural (227): Lançamento do livro "Goa - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas, dia 16 de Novembro de 2012, pelas 18h30 na Casa de Goa, em Lisboa (Maria Teresa Almeida)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco


1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há algumas referências à "pobreza" e à miséria" em que viviam as populações guineenses, nomeadamente  no chão manjaco... AGA tinha chegado à Guiné, há pouco tempo, tinha vivido em países ricos como a Alemanha... O contraste é duro, aos seus olhos, mesmo cotejando as duas pobrezas, a nossa e a deles...  Aqui se reproduz essa parte do Diário do AGA, com a devida vénia... (LG):


(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 27 de Junho de 1972

Fui dar uma volta pela terra e já ouvi uma enormidade de coisas sobre o lugar para onde me atiraram os acasos da sorte e da pouca fortuna.

Teixeira Pinto ou Canchungo é a quarta ou quinta maior povoação da Guiné, tem uma larga avenida central quase com um quilómetro e casas razoáveis estendendo-se para ambos os lados. Ao fundo situa-se a praça Dr. Oliveira Salazar. Isto é airoso e parece sossegado. À volta da avenida, para norte, ficam as tabancas ou moranças, centenas e centenas de casas pobres da população predominantemente de etnia manjaca, uma das muitas existentes neste território. Estamos no Chão Manjaco, a terra destes negros. Os miúdos pretos são uma ternura que dói. A carapinha, os olhos muito escuros, nus e sujos, as barrigas grandes, subalimentados, mas por dentro são iguais aos meninos loiros e morenos da nossa Europa. O mundo à sua volta é que os faz diferentes! (...).

(...) Canchungo, 5 de Julho de 1972 

Não é tempo de inventar coisa nenhuma, são horas de tudo descobrir.  Não posso falar, escrever sobre a guerra se não a conhecer, se não a viver até dilacerar o sentir, não posso falar deste povo, deste solo queimado se desconheço os negros e os brancos, a terra que pisamos.

Hoje, a primeira saída. Fui até ao Bachile, um aquartelamento uns quinze quilómetros a norte, na estrada para o Cacheu, junto às florestas que dão acesso ao Balanguerez e à Caboiana, zonas libertadas pelo PAIGC. Dois jipes, no da dianteira, um capitão e dois cabos armados, no meu, três homens desarmados. Fui à confiança, esta zona é controlada pelas nossas tropas, não há perigo. As populações da região, de etnia manjaca, parecem estar do nosso lado e os guerrilheiros vivem ainda longe, não atacam, não costumam atacar.

O que vi? Logo à saída de Canchungo, tabancas paupérrimas cobertas de colmo, negros indolentes, lixeiras, vacas esqueléticas, cabras, porcos passeando pela estrada. A savana africana, terras pobres para se cultivar o que quer que seja. O jipe do capitão atropelou um porco e seguiu em frente.  (...)

(...) Canchungo, 11 de Julho de 1972 

Faz amanhã um mês que estive de serviço como adjunto do oficial de dia no quartel do Depósito Geral de Adidos, na calçada da Ajuda, em Lisboa. Há quanto tempo isso foi! 

Precisava de comer um bom bacalhau ou um borrego assado, um cozido, um esplendoroso bife em qualquer parte do nosso Portugal mimoso. Parece que saí daí há três anos e ainda não tenho três semanas de Guiné.

Hoje dei comigo a pensar na grande Europa por onde já derramei algum suor durante um dos meus vinte e cinco anos de vida. Quero atravessar outra vez o velho continente, saltitar de país para país, falta-me conhecer Londres, Viena, Budapeste, Florença, Roma, sei lá, tanta coisa! Há-de acontecer. A esperança é uma menina com olhos de todas as cores.

De tarde, resolvi sair e dar uma grande volta a pé, sozinho pelas ruelas e tabancas de Canchungo, Guiné, África. Tanta pobreza! Só o que os alemães gastam para alimentar principescamente os seus cães de estimação - o que tanta admiração me causou quando dos dezanove para os vinte anos ancorei a minha vida em Hamburgo, no norte da Alemanha, - só esses marcos, moeda forte alemã, davam para alimentar milhões de crianças desta África pobre.

Mas isto não é assim tão simples. Os problemas do continente africano são muito complexos e é aqui que têm de ser resolvidos. Está quase tudo por fazer. Como passar de uma sociedade primitiva e agrária para estádios de desenvolvimento mais decentes? Há ventos que sopram quer do leste, quer do ocidente e ajudam quem? Essa ajuda é mesmo “ajuda”? Aqui na Guiné a agricultura é um desastre e funciona como a única fonte de subsistência e riqueza. Eles têm as bolanhas, os arrozais, mas são tão difíceis de cultivar! Hoje, nas tabancas vi os negros a comer. Fazem uma bola de arroz e metem-na na boca com a mão. Não têm facas nem garfos, fiquei impressionado. 


(...) Canchungo, 3 de Agosto de 1972 

Estou rico. No meu quarto tenho agora uma cadeira com encosto de lona, outra de pau e uma mesa quadrada sobre a qual escrevo. A Companhia 122 de pára-quedistas seguiu ontem para Bissau a fim de reforçar a segurança da capital nestes dias “tenebrosos” que se aproximam, com as comemorações do aniversário do PAIGC. Fui incumbido da difícil tarefa de guardar as chaves dos quartos dos alferes pára-quedistas, companheiros de degredo nas terras da Guiné. Vai daí, fui-lhes buscar duas cadeiras e uma mesa que tanto jeito fazem no meu quarto. Os páras regressam daqui a doze dias e então devolverei a mobília, ficarei de novo pobre.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > Meninos (manjacos) a caminho da escola, em transporte militar.


Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados




Canchungo, 4 de Agosto de 1972 

Ontem a brincar com a minha pobreza, hoje a sentir a pobreza a sério, brutal, dilacerante. Como se já não bastasse a guerra!... 

É uma fatalidade nascer na Guiné, a terra é avara, o clima é mau, as populações também sofrem com o calor e as doenças.

Esta manhã Canchungo foi assolada por um pequeno tufão que passou sobre uma extremidade da vila e arrasou vinte tabancas, as casas de adobe e colmo das famílias negras. Meti-me no jipe e fui ver o que se podia fazer.

Um espectáculo impressionante. Os telhados das casas de palha ou de zinco voaram e despedaçaram-se, estilhaçados. Algumas tabancas ruíram completamente arrastando as pobres mobílias, os tarecos e as gentes. Felizmente não morreu ninguém, só três feridos graves que foram hoje evacuados para Bissau.

O que me arrepiou foi a atitude dos negros. Os homens tentavam salvar os restos dos haveres, as mulheres choravam, um choro feito de berros, de esponjar na lama, de gestos como eu nunca tinha visto. O corpo encarna a dor total, é o máximo da expressividade possível. Ao olhar para aquela miséria toda e para os negros transfigurados em desgraça, lembrei-me do que será a destruição de uma aldeia aqui perto, nesta mesma Guiné, pela guerra, pelo napalm, pelo fogo. São coisas que escapam à nossa compreensão. Só quem as vive pode entender.

Isto do tufão e miséria está mal escrito. É tudo muito pior do que as palavras possam dizer. Eu ainda sou “periquito” nesta guerra. Vi pouco, continuo a tentar entender. (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10025: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (18): A ponte Alferes Nunes, a CCAÇ 16, o Bachile, a 38ª CCmds, o Canchungo, o cor pára Rafael Durão, o futebol, a violência, a morte...

Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco, que anda na Escola Superior Náutica Infante D. Henrique.


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > O nosso comum amigo, meu e do Zé António, e nossoo grã-tabanqueiro Jorge Picado, depois de termos trocado dois dedos de conversa... Outro amigo que encontrei nesse dia, foi o João Vizinho, outro ilhavense ilustre com casa na Costa Nova. Médico do trabalho, meu velho amigo e companheiro das lutas da saúde ocupacional. Também vi nesse dia, à tarde, lá para os lados da Bruxa, o José Manuel Bastos Cachim, que foi nosso camarada no BENG, no CTIG, em 1966/68.

O Jorge lá foi ter com a neta...da! Gostei de o ver, em boa forma!


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Os  antigos palheiros (cabanas de madeira onde os pescadores tradicionalmente guardavam as redes e os demais apetrechos de pesca), agira transformados em restaurantes e bares... ou inspirando a arquitectura das casas de veraneio. Um regalo para a vista. Um postal turístico. Um verdadeiro ex-líbris desta famosa estância de veraneio que pertence ao concelho de Ílhavo, terra de marinheiros, pescadores, tripulantes da marinha mercante...


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Uma das muitas belas janelas das casa de praia...


Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor I.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


 Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor II


Vagis > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor III.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


Ilhavo > Gafanha da Encarnação Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012  > Um barco moliceiro, com o seu belo perfil fenício,  agora modificado para o transporte turístico de passageiros... Ao fundo, a Costa Nova, vista do outro lado da ria...


Ilhavo > Galhanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > 21 de agosto de 2012  > A praia da Barra vista da zona portuária


Ilhavo > Gadafanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > Cais acostável, junto ao largo da Bruxa >  21 de agosto de 2012  > Jovem em posição acrobática de mergulho para a água... Ao fundo, a Costa Nova


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa, misto de tasca, café, bar, cervejaria e esplanada...


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa.... onde ao fim da tarde se vai beber uma bebida agradável, tipo sangria, feita de cerveja e vinho branco, acompanhada com os populares tremoços, azeitonas e amendoins... desfrutando a ria, as embarcações, o pôr do sol e dando dois dedos de amena conversa com os amigos... Gostamos de lá ir, o Zé António e eu mais as nossas caras metades (e os nossos filhos, quando nos podem e querem acompanhar).

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


1. No verão, em agosto, no nosso querido mês de agosto (que ninguém nos há-de roubar!),  eu gosto sempre, quando a caminho do norte, de passar pela Costa Nova e  gozar um dia  da minha existência na companhia da minha Alice e dos nossos amigos Zé António e Matilde Henriques, ele arquitecto, ilhavense, e ela, socióloga, lisboeta. Somos amigos, e velhos amigos, desde há mais de trinta anos. Eles moram habitualmente em Oeiras, Miraflores. Têm casa de verão na Costa Nova.

De seu nome completo José António Boia Paradela,  é também conhecido no Facebook onde tem uma página com o seu nome literário, Ábio de Láparo.. (Confesso que não sou muito "facebook...eiro", não acompanhando a sua página com a atenção que ele me merece; temos priviligeado, em contrapartida, o convívio, de prefreência à mesa...).

Na Costa Nova ele tem muitos amigos, alguns da infância e da adolescência como  o  Comandante Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar" da Terra Nova, e notável memorialista dos tempos heróicos da pesca do bacalhau: dois dos seus livros já aqui foram objeto de recensão crítica no nosso blogue, há uns anos atrás......

O Zé António, como bom ilhavense, é, também ele, filho e neto de gente do mar, tendo passado, aos 16 anos, pela pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra da Guiné... Uma experiência, duríssima, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - a pensar nos amigos -  a que deu o belíssimo título Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, e que eu tive a honra e o prazer de prefaciar.

O que o meu/nosso querido Zé António escreveu em 2007, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssimo e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados....

Como eu escrevi no prefácio, não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista ou pessimista... No final, Irineu - um dos personagens da narrativa e, seguramente, um alter ego do autor - (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, um ilhavense, mesmo quando deixa a sua ilha, em busca de mundo, de mais mundo,  nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Passados cinco anos, o nosso Àbio [Boia]  de Lápara [Paradela], chegou muito naturalmente ao quilómetro 75 da sua autoestrada da vida..."Três quartos de século", comentou ele há dias, quando fomos ao encerramento do Doclisboa2012... Comentou ele, com uma ponta de orgulho, um outra de ternura, e uma terceira de desencanto... "Três quartos de século" é obra e vida, e  merecem ser comemorados, foi a minha resposta. Comemorar o nosso aniversário, todos os anos, "faz bem à saúde"... E eu sei que o Zé António gosta de se rodear da família e dos amigos nesse dia...

Estou, por isso,  seguro que ele vai gostar de ler estas palavrinhas que  hoje lhe escrevo, em dia de aniversário, e que vou publicar num sítio inesperado para ele e para os meus amigos e camaradas da Guiné. Mas este blogue não lhe é estranho, ele aparece aqui, mais do que um vez, não com um marcador próprio (a que não tem direito) mas através da referência "pesca de bacalhau"...

Ativo, como sempre, não tão superativo e produtivo como gostaria de continuar a ser   (,que a crise afeta e muito os gabinetes de arquitetura e planeamento, mas também a sua saúde aconselha já alguma moderação...), o Zé António, apesar de reformado (face à Segurança Social), continua a tocar o barco, o seu barco, e agora até a navegar por  mares nunca dantes navegados...

É homem de muitas paixões, para além da arquitectura e o planeamento urbanístico (de que foi um dos pioneiros entre nós),: o desenho, a música, a fotografia, a escrita, a multimédia.. Espero que ele tenha muita saúde e longa vida para poder mostrar os seus outros talentos, para além dos da esfera profissional.... Pessoalmente tenho-me deslumbrado e emocionado com as suas  criações em multimédia, algumas das quais já têm sido apresentados ao público, na Costa Nova...


Zé António:

Podia chamar-te, com justiça e propriedade, "meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada"... A ter um irmão, rapaz, que não tenho, podia ser alguém como tu, com quem a  gente aprende, com prazer, e convive, com naturalidade, por que és  uma pessoa culta, bem formada, com valores, vivida, afável, agradável, bem disposta, e não menos importante, humilde, que assume as suas origens, que é  amigo do seu amigo, alguém que  sabe também ouvir...

"Camarada" seria mais forçado: na realidade não fizeste a guerra (colonial), embora tenhas andado na "guerra dio bacalhau", servvindo outros senhores, lá pelos idos anos de 50 (1953?)... Algum camarada meu, militar, mais ortodoxo, poderia achar abusivo sentar-te aqui ao pé de mim, ao pé de nós, à sombra do mágico, secular e fraterno poilão da nossa Tabanca Grande.

Meu camarada é o Jorge Picado, mais eu sei que não vais ficar com ciúmes, meu amigo, meu irmão mais velho... De qualquer modo, tirando o Jorge Picado, quem é que dos ilhavenses foi parar à guerra colonial ? Claro, a malta da marinha de guerra, muitos dos teus amigos,  que  vocês só podiam ser duas ou três coisas na vida: pescadores, marinheiros, tripulantes da marinha mercante...

Não tenho aqui à mão o livro que me ofereceste, com uma bela dedicatória tua, e que está profusamente ilustrado, com sugestivas fotos do antigamente da vida da Costa Nova do Prado  (, imagem da capa acima)... Creio que o autor é o engº Senos Fonseca, cunhado ao que julgo do nosso Jorge Picado.  Com as inevitáveis limitações de tempo e de saber, quis apenas homenagear-te e associar-me à celebração dos teus bem vividos e bem merecidos  75 anos.

A Costa Nova, onde passo um dia por ano, é apenas um pretexto, e uma forma habilidosa de te pôr aqui na montra deste blogue que já não é meu... Por umas horas, que seja, tu mereces,  meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada de outras guerras... Mereces pelo que viveste, mereces pelo que ainda vais viver, mereceres pelo muito que tens dado a todos nós, da família aos amigos, dos clientes ao país...

Um xicoração apertado do Luís (+ Alice + Joana + João). Que tenhas um resto de dia feliz, com a tua Matilde e os teus "marinheiros" Marco e Jorge... Haveremos depois de beber um copo... à saúde, à  vida, à felicidade, à amizade, á fraternidade!... E para que nenhum  f.. da p... tenha um dia a lata ou a ousadia de troikar as nossas amizades, cumplicidades, memórias e afetos.

PS - Tomo a liberdade de reproduzir aqui o prefácio que escrevi, com muita ternura, para o teu livrinho, há cinco anos atrás.

2. Prefácio ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). Ábio de Lápara é o o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ilhavo, onde nasceu em 1937. Arquiteto, é o sócio-gerente da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda.

É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio da Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo:
- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
- We are born to loose everything, everytime and nothing at all.
- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
- Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…

O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; a Avó materna, a mãe Rosa… Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: O Mestre Zé, marinheiro; o Manuel da América; o Sacerdote Manuel, cego; o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias; o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhado pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, o entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:

- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!


[Fonte: Luís Graça > Blogpoesia > 23 de novembro de 2007 >  (Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos]

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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10580: Memória dos lugares (193): O inferno de São Domingos, em março de 1972, ao tempo da CCAV 3365 / BCAV 3846, Os Quixotes (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)

Guiné 63/74 - P10595: Agenda cultural (227): Lançamento do livro "Goa - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas, dia 16 de Novembro de 2012, pelas 18h30 na Casa de Goa, em Lisboa (Maria Teresa Almeida)

1. Mensagem da nossa amiga Maria Teresa Almeida, da Liga dos Combatentes, com data de 29 de Outubro de 2012, com pedido de publicação do convite para a apresentação do livro "GOA - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas:

Bom Dia Querido Combatente Sr. Carlos Vinhal
Espero que se encontre bem.
É mais um livro, que peço o favor de divulgar no Blog, um Livro de muito interesse, relativo à Invasão da Índia.

Junto envio o convite do Livro "GOA O PREÇO DA IDENTIDADE – INVASÃO 50 ANOS DEPOIS".

O Autor, é natural de Goa, é Combatente do Ultramar, em Angola, e condecorado com uma Cruz de Guerra.

Grata por mais este favor, envio o meu abraço, de imensa gratidão e estima
Maria Teresa Almeida


C O N V I T E

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10581: Agenda cultural (226): A banda musical portuguesa Melech Mechaya no 20º Festival Sete Sóis Sete Luas: seis concertos em quatro ilhas de Cabo Verde, 6-11 de novembro de 2012 (João Graça)

Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

1. Vigésimo segundo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (22)

Uma história de Amor, em pleno conflito

Já era a segunda vez que desembarcava na província com um camuflado novo. Sabia quase todos os pormenores, falava algumas palavras em “crioulo”, embora não exercesse uma conversação prolongada, sabia que não havia alojamento para todos os militares, que no princípio iriam ter muitas dificuldades, alguns iriam chorar, outros iriam revoltar-se, mas depois tudo se arranjaria, e até, iriam gostar da província. Era isto que esta personagem, baptizado com o nome de “Gascidla”, dizia.

Era oriundo do Alentejo, mais propriamente de uma aldeia próximo de Borba, tinha cumprido uma primeira comissão de serviço militar na província da Guiné, dizia que era cifra, depois com as modernices, chamavam-lhe operador cripto, esteve estacionado no arquipélago dos Bijagós, onde só havia paz e bom clima, não tinha nada a dizer da comida, falava com as raparigas e passava quase todo o tempo a bronzear-se nas praias quase desertas, e dizia:
- Eu tinha uma ilha e uma praia para onde só os locais iam, portanto não havia estranhos, e para onde levava as minhas namoradas.

Acabou a sua comissão de serviço e regressou à Metrópole, como então se dizia. Regressa à sua aldeia, não quis mais pegar em qualquer alfaia agrícola, andava por ali, fazia uns biscates que não envolvessem muito esforço físico, era cliente assíduo do café da aldeia, onde numa pequena esplanada, que havia em frente, se sentava numa cadeira, debaixo de um enorme guarda sol, com reclame a determinado refrigerante, cigarro na boca, a chávena do café, um copo com água, o maço de cigarros e o isqueiro em cima da mesa, cruzava a perna, às vezes em posição provocativa, principalmente para pessoas do sexo feminino, e ele sabia isso, e olhava as pessoas que passavam.

Já lá ia algum tempo e, vendo a cor bronzeada do seu corpo a desaparecer, com algum desespero, começa a procurar emprego. Na lavoura havia muito trabalho, mas o “Gascidla” dizia:
- Eu sei conduzir, embora não tenha carta de condução, sei ler e escrever, não vou pegar numa enxada como antes, agora quero um trabalho limpo, que me dê algum dinheiro.

Por fim arranja emprego na distribuição de garrafas de gás “Gascidla”, que na época estava muito em voga, num agente que havia na vila. Nunca ninguém chegou a saber, pois ele falava, mas nunca dizia a verdade, qual o motivo que o levou a ir ao quartel general de Évora e meter requerimento para regressar ao seu paraíso que era o arquipélago dos Bijagós, onde tinha passado dois anos de felicidade. Alguns que eram oriundos da área da sua aldeia diziam que foi motivado pelo contacto com algumas clientes, que eram casadas, e não resistiam à cor do seu bronzeado e que alguns maridos ciumentos, principalmente ciganos, estavam prontos a matá-lo, com uma navalha, entre outras coisas. Mas continuando com a história, o “Gascidla”, pois era assim que ficou baptizado, apresenta-se um dia na unidade militar onde se estava a formar o comando de que o Cifra fazia parte, para juntos irem para a então província do ultramar, e muito contente diz:
- Finalmente vou regressar ao lugar de onde nunca devia de ter saído!

O Cifra, muito admirado, diz-lhe:
- Mas a guerra está lá à nossa espera, pois existe um grande conflito, há um movimento organizado e armado que quer a independência!

E ele respondia, com ar de quem sabe o que diz:
- Isso é encostado à fronteira, mas para onde nós vamos, e onde eu meti requerimento para ir, é um paraíso, tu vais ver!

Desembarcados na província, passou por todas as agruras que o Cifra passou. A princípio dizia que já sabia que era assim, mas passado uns meses, maldizia a sua sorte e afirmava que tinha sido enganado. Tinha dificuldade em comer, não executava o seu trabalho com eficiência, pois trocava as palavras ao decifrar uma mensagem e dizia que não tinha sido treinado para este trabalho, que antigamente a cifra era mais simples. Também dizia que lhe prometeram uma promoção na altura em que se alistou de novo no exército, mas continuava primeiro cabo sendo mais velho do que alguns sargentos e furriéis. Quando ia para a aldeia, que existia próximo do aquartelamento, procurava falar o seu crioulo, mas como era uma zona de etnia “Balanta”, as raparigas não o compreendiam, andava revoltado.

O “Gascidla” fumava muito, comia pouco, só gostava de feijão e grão de bico e os colegas sabendo isso, sempre lhe enchiam o prato, quando a ementa era “rancho”, bebia alguma água, não gostava de vinho, às vezes bebia uma cerveja, mas café negro, era a sua bebida preferida. Pedia ao Cifra para lhe decifrar as suas mensagens, pois era o Cifra que entrava de serviço a seguir a ele e tinha sempre umas tantas mensagens já antigas para decifrar, que depois entravam no comando com um substancial atraso, o que levava o comando a questionar, caindo as culpas no “Gascidla”, pois havia uma folha de entregas, com a hora do seu recebimento, ele não se importava e respondia:
- Promovam-me, como me prometeram e mandem-me embora daqui.

O comando, fazia “vista grossa”, pois o trabalho, embora atrasado, continuava, até que passado mais ou menos um ano, o “Gascidla”, pede um mês de férias para ir gozar no arquipélago dos Bijagós.

Aí possivelmente, encontrou uma das suas antigas namoradas, convive com ela e no final das férias decide trazê-la para a vila onde estava estacionado. Aluga um quarto na casa de uma família Libanesa, onde a namorada fica instalada. A rapariga, que era bastante bonita, de etnia “Bijagó”, tinha marcas na pele do corpo, da tribo a que pertencia, com que os pais a marcaram à nascença, diversos colares no pescoço, que com os anos lhe fizeram prolongar esse mesmo pescoço, a sua roupa era primitiva, andava descalça, com algumas argolas na parte inferior das pernas, portanto não era bem vista em território “Balanta”, e como não falava português, era muito difícil de se fazer compreender, só mesmo com a ajuda do “Gascidla”, que a acarinhava e fazia tudo para que a rapariga sentisse menos a falta da sua família, da sua praia e do ambiente natural a que estava acostumada. Entre outras coisas, o “Gascidla” levava comida do aquartelamento para a sua companheira.

Para lhe ajudar a passar o tempo, com tiras de folha de palmeira, bananeira, e de outras plantas, fazia cestos e outros utensílios, alguns em miniaturas, que eram autênticas obras de arte e também, sempre sobre a guarda e protecção do “Gascidla”, pescava camarão com uma rede, encostada à ponte do rio, metida na lama. Algum desse camarão, era vendido aos militares. Quando questionado pelo Cifra, se era feliz no que estava a fazer, ele dizia:
- Nunca fui tão feliz em toda a minha vida, ela é a mulher com que sempre sonhei, ela é real, nada nela é falso, contenta-se com aquilo que o mundo lhe deu, não tem ganância, não tem inveja, adora o sol e quando se ri para mim, só eu existo no seu pensamento. Sou feliz, Cifra, e vai ser ela que me vai dar muitos filhos.

Pelo menos nas palavras, tinha toda a razão. O tempo foi passando e quando faltavam dois meses para acabar a sua segunda comissão, com a ajuda dessa família Libanesa e do comando a que o Cifra pertencia, o “Gascidla” arranja trabalho numa sucursal da companhia ultramarina, no arquipélago dos Bijagós e como falava algum crioulo aí ficou a viver com a sua companheira.

Isto demonstra que o amor pode sobreviver no meio de uma guerra. O que se passou depois, com a continuação dessa mesma guerra, o Cifra nunca soube, mas concerteza que devia de haver algumas crianças Bijagós, a brincarem na tal praia a que só os locais iam e que não precisavam do calor do sol para ficarem com a pele do seu corpo bronzeada, pois já nasceram com essa tonalidade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10593: Blogpoesia (310); Enquanto ouvir um piano a tocar Schubert ou Beethoven... (J. L. Mendes Gomes, Steglitz, Berlim, Alemanha)

Dois poemas, sem título, da autoria do nosso camarada J. L. Mendes Gomes, acabados de publicar na sua página do Facebook, e reproduzidos aqui com a devida vénia.

Recorde-se que o J. L. Mendes Gomes foi alf mil na CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), e depois da tropa jurista na Caixa Geral de Depósitos, hoje reformado.

Para ele, a viver na Alemanha [, Steglitz, Berlim,] com os seus queridos netos, aqui vai um abraço de apreço, camaradagem, e amizade e esperança, dos editores e demais grã-tabanqueiros:


1. Enquanto ouvir um piano 
A tocar a serenata de Schubert,
Ou o lago dos cisnes,
Não me vou deitar
Nem deixar de viver.

Mesmo que venha a tristeza
E me afogue,
Hei-de sobreviver,

Agarrado às notas do piano,
Mesmo calado e afogado….

Hei-de voar, mesmo perdido,
Noite e dia,
Até encontrar alguém
Que também ande perdido como eu.


Ambos daremos as mãos,
Perdidos,
Algum caminho havemos de encontrar.
Até que nossas forças se apaguem…


Steglitz, 28 de Outubro de 2012
10h24m
Ouvindo Beethoven- Mondschein sonate










2. Tomara eu poder saltar um século à frente,
Com este meu tempo conturbado,
Que faz no planeta Terra!…

Ir pelo universo fora
Encontrar um cantinho,
- Podia ser um oásis - ,
Onde só coubesse
A paz e a concórdia…
Onde, nunca se tivesse ouvido falar de guerra
E a justiç a e a fé,
Num Deus uno e universal,
Fosse a bandeira da Terra inteira.

Não houvessem hospitais,
Presídios civis ou militares,
Nem campos relvados
Para toda a ordem de futebóis...

Tudo fosse
Praia, campo
E mar azul…

Só houvesse a combustão do sol,
Oculta e limpa,
Para fazer girar tudo,
Em vez do alcatrão e
Do petróleo pestilento
Que tornou a Terra irrespirável...

Não queria mais Têvês nem aviões.
Só queria as asas
E a propulsão
Do nosso coração imenso,
Que comanda cada um,

Para voar feliz
Pelo mundo todo
E firmamento.

Infelizmente..
É só um sonho!...


Steglitz, 29 de Outubro de 2012
8h8m
Joaquim Luís M. Mendes Gomes
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10591: Blogpoesia (309): Francisco Santos, o poeta popular da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Outubro de 2012:

Olá Carlos,
Hoje envio-te outro pedaço da história da CCaç 2679, uma ocasião de grande felicidade para mim.
É uma estória sobre esses engenhos traiçoeiros, que constituem verdadeiros riscos. Daqueles que dois camaradas, embora em circunstâncias muito diferentes, já aqui deram muitos testemunhos de fazer arrepiar; e a quem dedico o presente texto. Refiro-me ao António Matos e ao Luís Faria.
Para o Foxtrot, um excelente grupo de combate, vai a minha admiração e apreço.

Para ti e para o Tabancal envio um grande abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (55)

A mina do acaso
Pauleiro, o feeling do combatente

A época seca já durava há muito, corria lenta e escaldante, às vezes sentia-se uma brisa quente do deserto. Nós entráramos no segundo ano de permanência e de hábitos em relação ao clima e ao relevo. As reservas físicas compensavam as assaduras do sol, mas os cantis eram indispensáveis nas bagagens individuais. Naquele dia saímos cedo para uma coluna a Copá.

Tratava-se de uma acção vulgar, apesar de termos a "obrigação" de picar um pouco mais além do que meio caminho. A picada arenosa, levantava uma escassa e fina poeira à nossa passagem, por meio de uma vegetação de capim amarelado e seco, e algumas árvores de pequeno e médio porte, umas vezes espaçadas, outras em definhada mata, marginavam a "estrada" durante quase todo o percurso. O chão evidenciava uma vegetação rala, quase limpo sob as copas das árvores. Agradava-me o calor matinal.

A coluna alongava-se pelos vagares da caminhada. e acompanhava as ligeiras curvas que desviavam a picada de árvores mais volumosas, que não apaziguavam os calores de cada um, porque, naquela região, a luz solar incidia na vertical. Caminhei durante algum tempo, mas depois de iniciar uma conversa com o condutor da Mercedes que seguia após os picadores, decidi subir e sentar-me a seu lado. Distraía-me do que estava a fazer, e o ramerrão daquelas viagens dava "confiança" para descurar. Mas não vou contar-vos nada que se possa imputar a uma distração, além de que outros cumpriam as suas funções, e eu não tinha lugar certo no dispositivo, andava por onde achava que devia andar.

Picadores em acção. Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.

A velocidade da deslocação seria de uns cinco/seis quilómetros por hora, conforme as pernas permitiam e a determinação do momento. Não se ouvia mais do que o suave ruído dos motores, uma ou outra pica bater em solo mais rijo, um ou outro chamamento das aves. De súbito, ligeiramente à frente e a partir da orla da mata, ouviu-se com estrondo. Há minas!

As reacções eram as que tínhamos treinado e intuído. Não havendo tiros, cada um dos que seguiam na frente aguardava no lugar pela minha aproximação, que de pica, e lentamente, descobria caminhos da saída. Depois de uma olhada pelas bermas, verificou-se que não havia cordões detonantes. A mata apresentava-se serena, não havia turras emboscados. O Pauleiro permanecia no local de onde soltara o brado. Aproximei-me: - Por que é que há minas? Respondeu-me apontando para uma porção de terra seca, que eu achei que seria o resto de algum pequeno baga-baga. Mas o Pauleiro estava determinado de que se tratava de terra removida da picada. Mexi na terra quase solta e a dúvida estava instalada.

Andei em frente da Mercedes a avaliar a situação. Depois pedi aos picadores para picarem densamente e com toda a atenção desde a viatura. Eles fizeram-no sem resultados. No entanto, dei-me conta de que havia um espaço entre a roda e o extremo do pára-choques onde as picas não iam. Pedi ao condutor para engatar a marcha-atrás, mantendo a direcção, e que movimentasse a viatura cerca de um metro. Sem alteração da trajectória, não aconteceu nada. Voltei a pedir aos picadores para usarem as picas desde as rodas a cobrir aquela zona onde nada víramos. Agachei-me a olhar atentamente para o trabalho que desenvolviam. A um dos picadores pedi para recomeçar, porque andara depressa em relação aos outros e tinha-me distraído. Reiniciou-se a operação. O resto do pessoal estava disposto ao longo da estrada e fazia segurança. Ouvia-se o silêncio, apenas quebrado pelo picar o chão.

Ao bater de uma das picas, fiquei com a sensação de se ter projectado um pedacinho de madeira. Alto, fiz sinal. Não via qualquer pedaço de madeira, mas sabia de onde o imaginava ter partido. Saquei da faca e actuei. As primeiras tentativas revelaram um solo duríssimo, mas, de repente, novo indicio de madeira. Mais uns movimentos de remoção e a mina estava identificada, talvez a escassos quinze centímetros da roda da Mercedes sobre a qual eu seguia sentado. Com a faca fiz uma avaliação do terreno envolvente e não havia outros engenhos. Os picadores foram avaliar a situação em redor da viatura e até à terceira.

Eu esgravatava no solo, pedi ajuda a alguém para remover a terra de um lado, enquanto eu o fazia do outro, mas os progressos eram lentos, pois o chão afigurava-se rijo, rijo demais para um terreno argiloso. No entanto, a tampa do caixote já estava a descoberto. A transpiração escorria e os olhos acusavam o salitre com grande incómodo. Quase me esfarrapei para cavar até à dobra inferior do caixote. Talvez uma hora depois, limpei as zonas envolventes, o braço direito a acusar o esforço, e a mina apresentava-se esplendorosa e exercia o magnetismo de atracção. Apesar de cansado, apesar da ajuda, estava tranquilo do que devia a fazer.

Nunca me tinha acontecido uma tarefa tão difícil. Os turras estavam a evoluir na técnica, e fora um milagre que o Pauleiro se tivesse deslocado da picada para uma mijinha, tivesse olhado para a terra removida e suspeitado do que vira. Era um militar com faro e com muitas provas dadas de excelentes capacidades. Concluí que ao colocarem a mina terão feito uma massa de argila e água, que depois serviu para a cobrir. Em seguida cobriram-na com uma camada de areia fina, e depois o sol e o calor completaram a intenção de dissimulação. Aquela devia estar armadilhada, a avaliar pelos cuidados, desconfiei.

Uma equipa de minas e armadilhas neutralizando uma mina AC. 
Foto: © Carlos Vinhal (2012). Direitos reservados.

Pronto, só faltava retirar a mina. Mandei a todos que se afastassem e deitassem no terreno, quando fiz um laço em torno do caixote, pelas faces laterais. e puxei, puxei com força por mais duas ou três vezes, movimentando-a. Do meu conhecimento só havia um disparador por descompressão - o célebre rato, que funcionava subitamente quando era aliviado do peso. Aproximei-me do buraco levantei a corda, e pedi para a puxarem pela extremidade, o que conferia novo ângulo de movimentação. A mina deslocou-se sem que dali viessem indesejáveis barulhos. Não estava armadilhada.

Foi um dia de muita sorte para mim, seguramente dos mais afortunados. Aquele engenho tinha sido astutamente instalado, com recurso a nova técnica, que consistia no recurso à lama que cose ao sol e fica como cimento, mas o grupo de combate, mais uma vez conseguiu dar a resposta adequada. Prosseguimos viajem e imaginava a decepção do artista que colocou o minão. Seguia a pé junto dos picadores, mas aquela era uma mina solitária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)