Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23769: Notas de leitura (1514): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2022:
Queridos amigos,
Aqui prossegue, em marcha um tanto lenta, a tentativa de sumarização do miolo da obra que o nosso confrade José Matos teve a gentileza de me enviar. Encetou-se este trabalho com o prólogo e estamos agora no contexto histórico da emergência do nacionalismo guineense, que conduzirá à luta armada iniciada em janeiro de 1963. Convém esclarecer que aqui e acolá introduzo um apontamento histórico da minha lavra, não para distorcer o que há de essencial no livro de Hurley e Matos mas para melhor contextualizar o leitor português. Dou simplesmente o exemplo de ter referido o nome de Fernão Gomes e o seu contrato com a Coroa para melhor se entender que era sua obrigação ir explorando para Sul, tudo fazia parte daquele desígnio a que se chama o Projeto Henriquino, ir descobrindo para Sul até encontrar caminho para o Oriente. Assim se perceberá, creio eu, como aquele ponto da costa ocidental africana tinha significado numa rede comercial, nem de longe nem de perto era uma colónia, a nossa presença estava marcada no litoral e na negociação com régulos com quem se fazia a compra e a venda. O texto parece-me rigoroso, é muito incisivo, trata-se de um volume que não chega a 100 páginas, os autores foram forçados a orientar-se pelo que lhe parece de mais essencial para mais adiante se compreender as atividades da Força Aérea Portuguesa na Guiné.
Um abraço do
Mário
O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2)
Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Na edição anterior procedeu-se a um sumário da introdução, vamos agora entrar no primeiro capítulo que se intitula “O Vento da Mudança”.
Recordam os autores a presença portuguesa nesta região da costa ocidental africana a partir de finais da primeira metade do século XV. Presença limitada a vários pontos de comércio; um rico comerciante, de nome Fernão Gomes, fez contrato com a Coroa, a sua principal obrigação era ir explorando para Sul, fê-lo com êxito; a rede comercial instituída atingia Cabo Verde, Arguim e São Jorge da Mina, prosperou o tráfico negreiro. O monarca português reivindicou a soberania e a exclusividade económica sobre a região, a partir de 1486 acrescentou ao seu título o de “Senhor da Guiné”. Prosseguiram as viagens no reinado do príncipe D. João (futuro D. João II), e depois de se ter chegado à zona do rio Congo, intensificaram-se as viagens até que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança; preparou-se, então, uma grande expedição para a primeira viagem marítima até o Oriente, o comandante era Vasco da Gama, o ano 1498. Dois anos depois, Pedro Álvares Cabral descobria o Brasil. Iniciava-se um período prodigioso de viagens e comércio. A concorrência estrangeira na costa ocidental era praticamente incontrolável, com a expansão para o Brasil e para o vice-reinado da Índia o comércio africano foi ficando reduzido a uma escala diminuta, durante o período filipino a presença portuguesa ainda ficou mais seriamente afetada por se passar a ter os mesmos adversários que a Espanha.
Com a independência do Brasil, Portugal voltou-se declaradamente para uma presença mais efetiva em África. No caso da colónia da Guiné, a nossa presença era ténue, o clima altamente agressivo, a resistência dos autóctones era ferocíssima. Com as obrigações impostas pela Conferência de Berlim, tiveram início campanhas para subjugar a resistência dos povos locais, considera-se que o território da colónia ficou efetivamente ocupado/pacificado em 1936, depois de uma campanha numa ilha dos Bijagós, que acatou finalmente a soberania portuguesa. E, de facto, começou uma organização administrativa pautada pela criação de infraestruturas, estabelecimento de Circunscrições, uma maior presença de funcionários do quadro da Administração Colonial, criação de bairros para os funcionários, aparecimento de instalações de saúde e poderá considerar-se que com a governação do Comandante Sarmento Rodrigues, que deu largo impulso ao conhecimento da Guiné, e até mesmo trazendo ao território cientistas reputados, a Guiné passou a ter uma posição no mapa, ganhou identidade e chegou ao conhecimento dos portugueses.
Com o aparecimento do Estado Novo, o Império Colonial Português ganhou uma nova moldura jurídica, que vai desde o Acto Colonial até à Concordada com a Santa Sé. O Acto Colonial era bem claro ao definir a função histórica de Portugal em possuir e colonizar domínios ultramarinos e civilizar as respetivas populações indígenas. Realizaram-se exposições, a começar pela Exposição Colonial do Porto até, em plena Segunda Guerra Mundial, a Exposição do Mundo Português, exaltava-se o passado heroico de Portugal e o imutável caráter imperial da nação portuguesa. Em 1960, aproveitando as comemorações do centenário da morte do Infante D. Henrique, falecido cinco séculos antes, voltava-se a uma narrativa nacional, no caso vertente que ia do Minho a Timor, era uma narrativa construída em torno de um país pluricontinental e plurirracial, tudo numa unidade exemplar.
Apercebendo-se dos ventos da mudança, a descolonização estava em curso desde o fim da Segunda Guerra Mundial e Salazar apercebeu-se que a independência da Índia em 1949 iria trazer severas tensões para a sua política externa. Abandonou-se o conceito imperial, deixou-se de falar em colónias, alterou-se a Constituição e apresentou-se ao mundo o ultramar português, as províncias ultramarinas apareciam como politicamente integradas no Estado português. Tanto no interior do regime como nos areópagos internacionais sabia-se que a mudança era puramente cosmética. Salazar não deixava de dizer claramente que o regime não podia sobreviver sem o seu território ultramarino, assim se iniciou uma intensa doutrinação sociopolítica, procurando uma catequização de que este ultramar era um direito adquirido, fazia parte das realizações históricas da Nação. Mas os investimentos no ultramar mantiveram-se no nível baixo, e em 1960 o chamado Portugal europeu caracterizava-se pelo seu maior nível de analfabetismo e o menor rendimento per capita na Europa Ocidental, com níveis altamente preocupantes na mortalidade infantil e nas doenças infetocontagiosas, abaixo de Portugal só a Albânia.
Os autores relatam os acontecimentos da Abrilada, a atividade oposicionista ao regime, o esmagador apoio que a ideia de império/ultramar obtinha junto do Oficialato português. Tanto assim foi que se deu uma rápida mobilização para procurar asfixiar a sublevação em Angola. Houve quem tivesse preconizado que o descontentamento nacionalista africano se iria exprimir em primeiro lugar na Guiné, tal não aconteceu, mas em 1961 o ideal independentista já seguia o seu curso, com apoios firmes na Guiné Conacri e no Senegal. A Guiné atraía poucos capitais, tinha algumas empresas de dimensão média, as suas exportações eram interessantes para o fabrico das oleaginosas e a cultura do arroz permitia que este alimento básico chegasse a Portugal, a Guiné dava sinais de autoabastecimento muito satisfatório no caso do arroz.
Segundo o censo de 1960, a Guiné tinha um pouco mais de meio milhão de habitantes, esmagadoramente era constituída pela população indígena, havia pequenas parcelas de população branca e sírio-libaneses. Apesar da sua insignificância no contexto imperial, o Estado Novo não abdicou de tratar a Guiné como uma província ultramarina, os sinais da descolonização eram por demais evidentes, os franceses já tinham sido expulsos da Indochina, as sublevações na Malásia, Quénia e Argélia não podiam ser iludidas, a Guiné Conacri torna-se independente em 1958, no ano anterior o Gana proclamara a sua independência e a sua política externa era completamente hostil ao espírito colonial, logo na África Subsariana. A questão angolana era prioritária para o Estado Novo, só a partir de 1962, e a um ritmo muito fraco é que Lisboa foi enviando para a Guiné mais efetivos militares.
Os autores dão conta do que foram as tentativas independentistas na Guiné nos anos 1950, referindo a crescente presença do partido dirigido por Amílcar Cabral, nascido na Guiné em 1924, tendo depois vivido em Cabo Verde e tirado o curso de engenheiro agrónomo em Lisboa, seguindo depois como Diretor de Serviços Agrícolas para a Guiné, onde restruturou a Granja do Pessubé e na companhia da mulher procedeu ao recenseamento agrícola, nomeadamente no ano de 1953. Segue-se uma apreciação do contexto internacional que pesou a favor do espírito independentista, o mapa africano alterou-se profundamente e isso deu força a que Cabral propusesse a criação de um partido, ficaria um núcleo ativo no interior da Guiné a preparar a subversão e a canalização de gente para Conacri, ele ficaria na capital com um outro núcleo diretivo, à frente de uma Escola-piloto e conduzindo a sensibilização da opinião pública internacional. Cabral soubera tirar partido das lições dos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, não havia condições para a subversão urbana, tinha que se ir por outro caminho.
O Governo de Salazar em 1930 junto dos próceres da ditadura nacional, Carmona é o Presidente da República, é o ano do Ato Colonial
Outra imagem do livro “O Santuário Perdido”, reproduz material propagandístico do PAI, a sigla antecessora do PAIGC
Amílcar Cabral a pousar com um grupo de guerrilheiros do PAIGC recentemente regressados de uma ação de formação na China. Nino Vieira está acocorado, é o segundo à esquerda.
(continua)
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Notas do editor:
Vd. poste de 28 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23768: Manuscrito(s) (Luís Graça) (214): a (ha)ver navios
Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade).
Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo, e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira
a (ha)ver navios
por luís graça
do alto do jardim das janelas verdes
enxergavas o tejo
e a sua desmedida desmemória,
e, sob o ecrã, branco de cal, da história,
os navios negreiros zarpando do cais
da rocha conde d’óbidos.
garbosos os soldados imperiais,
alinhados de popa à proa de lisboa,
em chumbo, derretidos.
e na margem esquerda do estuário
o cristo-rei no seu monstruário,
em louça de barcelos,
fingindo abraçar
os náufragos e os
cativos
dos reinos dos algarves e d'além-mar.
quebradas as cadeias do alto império
e os seus frágeis elos,
ai pobre de quem se deixava ficar
para trás,
sem honra nem glória nem epitáfio,
na vala comum do esquecimento dos quatro guês,
em gandembel, guidaje, guileje, gadamael.
remir os cativos, uma e outra vez,
era então obra de misericórdia,
a última missão, disse o capitão.
oxalá inshallah enxalé
bons ventos os trouxessem,
aos pobres dos vivos,
do campo da batalha de alcácer quibir,
a três mil e oitocentos quilómetros da guiné.
lembravas-te que eram de verde-escuro as
janelas
e rubra de sangue a bandeira
do último cruzeiro,
da última cruzada,
da última armada invencível.
via-se a espuma da autoestrada da globalização
a perder-se de vista na última encruzilhada,
no bugio de todos os azimutes.
perdeste a última carreira das índias,
fernando, menino, pessoa, de sua mãe,
quando nem navios havia já para (ha)ver
e subitamente o estuário do tejo
estava reduzido aos cais das colunas
e às lipitutianas dimensões da tua banheira
de criança.
brincavas, na inocência da tua segurança,
com navios de casca de noz,
foi quando veio o tsunami, a dor e o luto.
desististe então de rebobinar o filme da tua vida,
que, de fissura em fissura,
se podia contar,
sem cortes da censura,
num minuto.
lisboa, 28 set 2022 / lourinhã, 1 nov 2022
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Nota do editor:
Último poste da série > 8 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23244: Manuscrito(s) (Luís Graça) (213): Memória dos lugares: a rua da tua infância...
domingo, 6 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23767: Efemérides (375): Faria hoje 78 anos, se fosse vivo, o nosso querido "alfero Cabral", de seu nome completo Jorge Pedro Almeida Cabral (1944-2021)...
Fazendo votos para que o "alfero Cabral" ainda tenha forças, saúde, coragem, motivação e o tal "grãozinho de loucura" que dá pica à vida, para publicar o seu prometido 2º volume das "estórias cabralianas" (infelizmente o seu editor também adoeceu, entretanto), republicamos hoje, em dia de festa, um das "pérolas literárias" com que em tempos nos brindou (e que está no seu livro, é a estória nº 17) (...).
06.11.2022
{ Gritam e vociferam - "Abaixo a Lei! Fora o Direito! Morra o Professor!"
Tento intervir e, nada! O fogo alastra e ardem-me as barbas! Balbucio timidamente - Oh! Almas! O Direito também é uma ciência oculta! }
(iv) Ana Margarida Esteves Candeias
– Branquinho, eu era danado para as cúpulas ? – perguntei-lhe um dia destes, porque habitualmente me socorro da sua memória.
A esta questão, o Branquinho nem soube responder.
–Cúpulas ? Quais cúpulas?
Lá lhe relatei o encontro com o Belmiro, um rapaz dos Morteiros, que esteve connosco largos meses. Vinha com um cunhado e a certa altura afiançou-lhe:
–Aqui o Alferes era danado para as cúpulas!
Não percebi. Sorri e concordei:
– Pois era ! – mas a expressão não me saiu da cabeça.
Danado para as cúpulas? Matutei, matutei e penso que descobri.
Em Missirá, a mesa das refeições servia também de secretária, na qual escrevíamos as nossas cartas e aerogramas. No início até me pediam para escrever às namoradas. Mas depois da má experiência, documentada na estória “O Básico Apaixonado”, passei a funcionar como uma espécie de Ciberdúvidas [da Língua Portuguesa]:
– Meu Alferes, como se escreve isto? Meu Alferes como se escreve aquilo?
Ora, uma tarde o Belmiro perguntou-me:
– Meu Alferes, f…..é com u ou com o?
Não sei se seguiu o meu conselho. A carta era para o irmão e certamente o Belmiro gabava-se das suas proezas sexuais.
Mais de quarenta anos depois deve ter relembrado a palavra.
– Mas atenção, Belmiro, como a outra, esta também se escreve com um o.
Bem, aqui entre nós, o ou u não interessa mesmo nada. Até porque é bem melhor de fazer do que de escrever…
Jorge Cabral
Guiné 61/74 - P23766: Lembrete (43): É já no próximo dia 12 de Novembro que vai ser lançado o livro de poemas "Palavras que o vento (E)leva", da autoria do nosso camarada José Teixeira, no Centro Cultural de Leça do Balio, às 16h30, com apresentação do Dr. José Almeida da Silva
1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 5 de Novembro de 2022.
Meus bons amigos editores
Abusando da vossa bondade, pedia o favor de, se possível, colocarem esta lembrança no nosso blogue sobre o lançamento do meu livro de poesia.
Junto um poema que pode ser incorporado.
Fraterno abraço do
zé teixeira
O mundo em que vivemos
Gostava de saber quem sou,
Saber de onde venho,
Conhecer o caminho para onde vou.
Ser eu, ser livre…
E não sou,
Poder falar, gritar, chorar,
Sorrir, brincar…
Pensar…
Pensar e agir…
Agir em consciência, sem pressões ou constrangimentos,
Nem julgamentos.
Mas a minha vida parece um circo…
Apresento, represento, faço vénias, sorrisinhos
Aparento…
Aparento o que não quero, e não gosto de ser!
Sim. Sou um macaquinho de imitação,
– Para não cair no ridículo…
– Para que me deem atenção.
Tenho ideias,
Grandes ideias…
Talvez… pequenas, sábias, inconsistentes
Talvez incongruentes,
Concretas, porque não?!
São ideias, propostas, projetos, sonhos, opiniões
Fantasias, devaneios, aspirações…
Crivadas!...
Crivadas pelo medo da ambiência.
O crivo da sociedade critica, abafa, empurra…
Isola, manieta, exclui…
Destrói…
Em lume brando… lenta paciência.
Desde o nascimento me ensinaram que não vivo sozinho
Vivo com eles e para eles…
Vivo para o sistema!
Prá sociedade que me dá tudo e nada,
A sociedade que me condena
Se não faço o que ela me ordena
E não me deixa ser quem sou…
E de tão subtil que é,
Neste circo animado,
Conduze-me por caminhos que não os meus,
E eu sigo-a como um camelo amestrado.
José Teixeira
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Nota do editor
Último poste da série de 12 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23701: Lembrete (42): Amanhã, dia 13 de Outubro, pelas 17h00, apresentação do livro "Rua do Eclipse", de Mário Beja Santos, a levar a efeito no Salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de São Luís, em Lisboa
Guiné 61/74 - P23765: Dando a mão a palmatória (34): nas nossas cartas militares, na escala de 1/50.000, cada centímetro corresponde a 500 metros... (e não a 1 km)
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).
- quais as tabancas que existiam antes da guerra (e ver depois as que foram abandonadas ou destruídas);
- qual o número médio aproximado de moranças ou casas (cada ponto correspondendo em geral a uma morança);
- as tabancas temporárias e as abandonadas;
- as povoações "de tipo europeu" e as "indígenas" (e dentro destas, as "cerradas" e as com "arruamentos" definidos);
- conforme o tamanho maior ou menor da letra dos topónimos, distinguir as povoações "indígenas" com mais de 50 casas, as entre 50 e 10, e as menos de 10;
- o regulado a que pertenciam;
- as que eram sede de circunscrição (equivalente ao nosso concelho, caso de Bafatá) e as que eram sede de posto administrativo;
- as que, de categoria inferior a sede de circunscrição, tinham serviços de correio, telégrafo e telefone (caso de Bambadinca) e, nas fornteiras, serviços alfandegários;
- mas também localizar as bolanhas (arrozais de regadio), as lalas (capinzais) (de água doce e água salgada, com ou sem tufos de palmeiras), os mangais, as florestas-galeria, as savanas arbustivas, as terras incultas...
- os diferentes tipos de palmeiras e palmares: palmeira-de-tara (Phoenix reclinata); palmeira de dendém (ou azeite), conforme a sua densidade: massiços consideráveis ou não desbravados; palmares desbravados com culturas diversas;
- mas igualmente as "pontas" (ou hortas) (que em geral eram exploradas por cabo-verdianos e europeus, e que tinham o nome do dono ou fundador: Ponta do Inglês, Ponta João Dias)...
- e ainda calcular distâncias entre duas povoações, por estrada ou em linha recta; estimar a largura de um rio ou o comprimento de uma bolanha...
4 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23761: Voltamos a recuperar as antigas cartas da província portuguesa da Guiné, um dos recursos mais preciosos do nosso blogue - Parte IV: De Quinhamel a Xitole
sábado, 5 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23764: Os nossos seres, saberes e lazeres (537): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (75): Do Luso para o Bussaco (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Confesso que o que mais me interessava nesta viagem ao Bussaco era mostrar à neta aquele estranho intercâmbio entre a história, o prodígio do neomanuelino e a opulência do "deserto" dos Carmelitas Descalços, forcejaram, e foram bem-sucedidos com uma mata pontuada de capelas, ermidas e de via sacra, cuja importância foi reconhecida pela UNESCO, em 2006, como património. Preparei-me para esta itinerância lendo "Ama o precipício, viagem à Mata Nacional do Bussaco", por Susana Neves, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, uma história de botânica, um convento forrado de cortiça, um deserto de monges que era um verdadeiro paraíso de cervos, javalis, lebres e lobos por ali viviam livremente entre violetas, espargos, jasmins, narcisos, acantos e cardos, muita passarada saltando entre carvalhos, freixos, álamos, loureiros, plátanos, castanheiros e ciprestes. É uma viagem de eleição, não só pela exótica mistura de aromas de cedros e muitas outras árvores de montanha, como o Palace Hotel ali prantado, um dos espécimes icónicos do neomanuelino e lá ao fundo o Museu Militar do Bussaco. Como diz a autora, temos aqui uma eloquente conjugação de graça divina, natureza e arte.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (75):
Do Luso para o Bussaco
Mário Beja Santos
Está na hora de partir, aguardo que filha e neta se aprontem. Nunca perco a curiosidade de bisbilhotar os folhetos turísticos e a sua peculiar linguagem. Quanto ao Luso, diz-se que as origens da vila termal se perdem na noite dos tempos. “Idílico terreiro onde nasce e floresce a puríssima Água do Luso, apresenta-se como mágica antecâmera da esplendorosa Mata Nacional do Bussaco. Desde há quase duas centenas de anos, Luso é destino romântico de quem procurou cura, nas suas poderosas águas termais, especialmente no período romântico e durante todo o século XX por monarcas e pelas mais notáveis figuras da política e da cultura portuguesas”. E quanto ao próximo destino, o Bussaco: “Esta floresta mágica remonta ao século XVII, quando monges da Ordem dos Carmelitas Descalços aí se instalaram e se dedicaram à plantação de espécies vegetais do mundo inteiro, dando origem a uma das melhores coleções dendrológicas da Europa”. E destaca o conjunto patrimonial a visitar, o natural e construído. Sobe-se à Mata e entra-se no Convento de Santa Cruz do Bussaco. Os Carmelitas Descalços deram permissão em 1628 para aqui construir o seu “Deserto”. E no folheto informativo que me entregam consta que os frades, ao verem pela primeira vez esta paisagem, terão comentado: “Aqui é a vontade de Deus que se funde; murem este sítio, que tem ele o melhor deserto da Ordem. Porque se agora inculto, rude e tosco, é o que admiramos. Cultivado, será um paraíso terreal”. Em 1630, a maior parte do edifício do Convento estava finalizada. Estamos agora no atro do Convento, frente ao cruzeiro. Mais indicações do folheto, segundo o historiador Paulo Varela Gomes, o modelo arquitetónico deste Convento é a representação da cidade de Jerusalém, modelo seguido pelos Carmelitas na construção dos seus Desertos, sendo o Templo de Salomão o ponto nuclear desta paisagem do sagrado. É o ponto de partida para uma atmosfera onde pontificam ermidas, capelas, fontes arquitetónicas, a via sacra. Começa a viagem.
Lápide que recorda a presença do general Arthur Wellesley, futuro duque de Wellington, no Convento, ele será o vencedor da batalha do Bussaco, em 27 de setembro de 1810
É comovente toda esta construção com cortiça e pequenos elementos pétreos, os embrechados, uma construção que reflete a postura austera da comunidade segundo as constituições da Ordem, há revestimento de cortiça no nártex do Convento e nos mais diferentes espaços.
Percorre-se o vestíbulo, o corredor do Claustro, temos a capela Ecce homo, confirma-se que estamos perante uma construção simples em que mesmo as manifestações decorativas não dão qualquer margem à pompa ou sumptuosidade. Entra-se pela portaria de três arcos, e a olharmos essa simplicidade, iremos ver mais tarde que ela se prolongará na decoração das portas e da cerca, da via sacra, das capelas de devoção das ermidas.
Aqui ficam alguns detalhes deste Convento tão cativante, e tão bem tratado, está cheio de mística, procuro, em jeito de despedida pensar o que era o deserto dos Carmelitas Descalços da Província de S. Filipe de Portugal – assim se designava o ermitério do Bussaco, como eles aqui se prantaram a 500 m de altitude, e desataram a plantar árvores, devem ter sonhado com o Monte Carmelo nesta serra alcantilada e pluviosa, pois aqui se deu a batalha do Bussaco, Massena saiu daqui completamente desorientado e aqui ao lado temos uma joia do neomanuelino, o Palace Hotel. Vamos continuar a viagem.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 29 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23747: Os nossos seres, saberes e lazeres (536): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (74): Da Curia para o Luso (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P23763: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (2): amostra de mensagens recebidas entre setembro e dezembro de 2021
Formulário de Contacto do Blogger: disponível na coluna estática, do lado esquerdo do blogue.
Algumas destas mensagens são extremamente lacónicas, limitando-se a cumprimentar-nos, o que de qualquer modo nos sensibiliza, mas não vamos publicá-las aqui. Noutros casos, os autores procuram antigos camaradas... Outras há que são incompletas ou imprecisas, ou têm a ver com outros territórios que não a Guiné (Angola, Moçambique, Brasil, etc.).
Evitamos, em princípio, divulgar o endereço de email de cada um destes contactos, a menos que haja interesse para o próprio (nos casos, por exemplo, em que divulga um livro ou a realização de um encontro: ou procura informação que extravasa o âmbito do blogue, o qual, como é público e notório, é centrado nos antigos combatentes da guerra do ultramar / guerra colonial, que estiveram na Guiné, no período que vai entre 1961 e 1974).
Podemos fornecer o email a quem no-lo pedir, para respostas a pedidos ou futuros contactos. Lamentavelmente, só agora, por manifesta falta de tempo, nos foi possível, selecionar, organizar e listar estas mensagens. Omitimos as expressões protocolares (saudações, cimprimentos, etc.). A lista está organizada cronologicamente por data / hora.
29/12/2021, 11:37
Sou de 15 de setembro 1950, venho por este meio felicitar os obreiros deste blogue simplesmente formidável. Bravo!... Fiz tropa no BENG 447, Brá, de 1972 a
1974. Se puder ajudar em alguma coisa é de boa vontade na medida do possível sou reformado e vivo na Suíça. Americo Aflalo.
Caro Américo Aflalo: Muito obrigado pelo teu contacto via Formulário do Blogger. Se te quiseres juntar a nós e ser admitido na tertúlia para que possas ver publicadas as tuas memória e fotos, manda-nos um mail para luis.graca.prof@gmail.com ou carlos.vinhal@gmail.com, com indicação do teu nome, posto, especialidade, unidade em que foste integrado para a Guiné (ou rendição individual se for o caso), localidades onde estiveste e outras informações que julgues úteis para te conhecermos. Deverás enviar ainda uma foto actual e outra dos teus velhos tempos de Guiné e, se quiseres, uma pequena história. Ficamos na expectativa de novo contacto teu.
22/12/2021, 21:05
Queria enviar uma mensagem a todos os meus camaradas e amigos da CCAÇ 2548.
Um grande abraço a todos amigos do 1º pelotão que me acompaharam desde 1969 a 71.
José Dias de Sousa
21/12/2021, 23:14
Eu estive na Guiné de setembro 1971 a dezembro de 1973. Estive na zona de
Teixeira Pinto no destacamento de Batuca. BCAÇ 3863, CCAÇ 3461. Jorge Reis.
24/11/2021, 8:25
Há vidas que se esquecem, mas há recordaçºoes que perduram pro muito que se queiram esquecer. Guiné, CCAÇ 4942/72, 5 jan 73/ Out 74. Manuel João Sampaio Lima.
9/11/2021, 17:20
Mantanhas para todo o pessoal da Tabanca Grande. A propósito do fardamento, lembro-me de uma ocasião, já a minha gente tinha manga de tempo na terra sabi, ter pedido para Bissau a substituição dos mosquiteiros, que já pouco mais eram do que farrapos remendados vezes sem conta, e nos foi respondido num ríspido ofício dos serviços da administração que os ditos cujos tinham uma duração de não sei quantos anos e, portanto, os nossos ainda tinham que aguentar uns mesitos mais até poderem ser substituídos... Não houve outro
remédio, o nosso primeiro-sargento foi a Bissau comprar panos de mosquiteiro que o alfaiate mandinga de Buba transformou em mosquiteiros próprios mesmo... E. Esteves de Oliveira.
25/9/2021, 14:08
Boa tarde o meu pai fez parte dessa CCAÇ 797, na Guiné, comandada pelo Capitão Carlos Fabião, é o Manuel Marques Lamarosa, era atirador. João Manuel Marques.
19/09/2021, 12:12
Diamantino Paiva Leite, soldado condutor da CART 1526 que prestou serviço na Guine nos anos 1966 a 1968, a residir em França desde 1971. solicitou-me que soubesse algo dos seus antigos camaradas que com ele viveram esse tempo de luta na Guiné. A saúde não lhe permite aceder a estes meios. Em seu nome, o meu muito obrigado. Arlindo Moreira da Silva (ex-soldado cond, CCS / BCAÇ 1933, Guine 67/69).
8/9/2021,19:54
Com referência ao post do camarada António Abrantes, lembro-me da emboscada e da passagem da sua companhia por Buba, onde me encontrava na altura. A companhia que fez a escolta entre Aldeia Formosa e Fulacunda foi a CCaç 411, de Buba. A atribulada viagem da CCaç 423, que ficou conhecida como a "Volta à Guiné de Camioneta", deu pano para mangas sobretudo peo final, no fim de contas era a maneira mais lógica - por via marítima.
Eu António Lopes Pereira sou o ex-1º cabo da CCAÇ 3305 / BCAÇ 3832. Estive
em Mansoa, Braia e Infandre de 1970 a 1973, sou o nomero 701 da Tabanca Grande. António Lopes Pereira.
Recebo os e-mails da vossa Tabanca, quase desde o princípio. Jorge Paes da Cunha Freire.
18/08/2021, 19:16
Caros camaradas militares: anseio por voltar ao nosso convívio; para quando está previsto - se está - o próximo encontro? Francisco Vilas Boas.
16/8/2021, 17:38
Estive na Guiné de 68/70 na 16ª Companhia de Comandos da qual em 69 o Marcelino da Mata fez parte . Um abraço a todos quanto por la passaram. Sou de Coimbra. Luis Cunha
10/8/2021, 01:04
Boa noite! Alguém por aqui do BAA 3434, 191/73, "As Avezinhas - Venham
Comigo Os fortes" ? António Martins.
10/08/2021, 09:09
Os meus Bons Dias desde as «arábias». Faz hoje quarenta e nove anos (1972.08.10-2021.08.10) que vários elementos do contingente militar da CART 3494, a terceira unidade de quadrícula do BART 3873, tiveram de “mergulhar”, sem o desejarem, nas águas revoltas, escuras e lodosas do Rio Geba, na região do Xime/Bambadinca (Sector L1), onde, por efeito da falta de bom senso mesclado com alguma improvisação, perderam a vida três jovens milicianos, naquele que ficou gravado como o «Naufrágio do Geba».
Ao recuperar esta horrenda efeméride que a todos marcou, naturalmente mais aos que viveram e sobreviveram à experiência, quero prestar a minha sentida homenagem aos que pereceram naquele acidente náutico: ao José Maria da Silva Sousa, ao Manuel Salgado Antunes e ao Abraão Moreira Rosa.
(*) Último poste da série > 7 de agosto 2021 > Guiné 61/74 - P22439: Contactem-nos, há sempre alguém que pode ajudar ou simplesmente saber acolher (1): Mensagens recebidas entre 12 de julho e 6 de agosto de 2021
sexta-feira, 4 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2020:
Queridos amigos,
Filinto Barros deu o mote com o seu admirável Kikia "Matcho - O desalento do combatente", Flora Gomes encetava a sua carreira cineasta também reportando a injustiça de ficar esquecido enquanto combatente, vieram poetas como Toni Tcheka, depois impôs-se no firmamento literário Abdulai Silá, incompreensivelmente não editado em Portugal, na sua editora Ku Si Mon dá a mão a novos valores, outras estrelas de gerações recentes como Marinho de Pina e Amadu Dafé. São intelectuais que não estão presos ao passado, não trabalham com jargão propagandista, amassam o seu fermento numa cultura experimentada, possuem fechaduras próprias e entregam as chaves, sorridentes, aos leitores de todas as proveniências, produzem literatura luso-guineense para orgulho do seu terrunho, como dádiva sem qualquer débito à língua que trouxe o colonizador, são as trombetas do futuro, é uma geração que descobriu sem preconceitos que a sua pátria é rica em línguas nativas, tem um crioulo exuberante e um luso-guineense que os une ao mundo inteiro. É com a maior satisfação e com grande sentimento de fraternidade que os registo aqui, para blogue se enaltecer e os enaltecer.
Um abraço do
Mário
O vigor de uma expressão literária emergente: o luso-guineense (1)
Mário Beja Santos
Serve de pretexto para reflexão de uma nova geração de escritores que encontraram um modelo de comunicação o livro que rememora os 25 anos da Ku Si Mon Editora, uma iniciativa que tem por detrás o nome consagrado da literatura guineense, Adbulai Silá: "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo, Ku Si Mon Editora, 2019.
Esta nova geração de talentos literários usa como ferramenta de comunicação um português plástico, moldado com a riqueza dos vocábulos próprios inerentes à formação do escritor, seja da Guiné, de Moçambique ou do Brasil, torcem e retorcem a língua de Camões, de António Vieira e de Fernando Pessoa, imputam-lhe a fala do coração, o orgulho da cultura-mãe, polvilham tudo de ingredientes da literatura universal: o humor cáustico, a fábula, as ternuras de infância, a crítica política e social; manipulam a topografia, as crenças, o passado colonial, remexem nos sonhos de ver os filhos prosperar, denunciam os mercados da droga, estão atentos aos fenómenos do radicalismo religioso que começam a aproximar-se da África lusófona. E por aí adiante. O produto final, é essa África misteriosa assistir à entrada em cena de um processo literário que faz transbordar a língua portuguesa para um admirável mundo novo da escrita.
Neste livrinho de contos, admirável pelo apuro desta literatura emergente, temos uma clara demonstração de gente nova que está a dilatar todo o horizonte de uma das línguas mais faladas do mundo, como se pode ler na apresentação destes textos:
“Cá estão Zé Ntchabré e o seu séquito de crocodilos vindos das lamas do fundo do rio Mansoa, a noiba Nnani e o Capitão Tuga. De Paunca veio a intrépida Nni, carregada de mistérios, segredos e mezinhas anti-bala, e recém-chegados da Embaixada, um pai e um filho radiantes agitam dois livrinhos verdes trocados por um rebanho de vacas, radiantes porque com eles na mão vão já para a terra-branco colher dinheiro do chão. Para grande danação da Dona Saba, Isnaba não para de contar histórias de ratos, mas Marinho N’fanda e Rita Alexandra não ligam nenhuma, apaixonados como estão para além do tempo e da regulundadi. Depois de uma explosão, alguns diziam que tinham visto um espetro coberto por uma capa a correr na escuridão e uma menina que não queria descer da árvore das pitangas, e no meio disto tudo, Baltasar vagueava numa dócil liberdade com um bolo-rei na mão”.
A capa desta edição comemorativa é de Antão de Almeida-Garret (Katalá).
O primeiro conto intitula-se "A colheita" e é de Marinho de Pina, narra o filho que tinha um pai aberto à inveja, mas crédulo e inocente e com muitos sonhos em ponto de rebuçado, ambicionava ir para a terra-branco para colher dinheiro. Os sonhos têm obstáculos de premeio, era preciso passaporte, um crápula tudo fez para extorquir os réditos do pai, os passaportes ficaram por várias vacas, custaram muitas amarguras e no fim daquele sugadouro pai e filho chegam a Portugal, estão prontos para colher dinheiro, apanham táxi à saída do aeroporto, vão para Chelas Jota. O filho vai banzado com tanta construção, questiona-se que fazem aquelas pessoas a dormir debaixo das pontes, se há tanto dinheiro, porque não têm eles casas para dormir. O final do conto é uma preciosidade, remate brilhante para fábula, parábola, literatura da paródia que mais amarga não pode ser:
“Quando entrámos em Chelas, ouvimos barulhos que pareciam tiros. O taxista então parou o carro, disse-nos que tínhamos chegado, deixou-nos numa rua escura qualquer, depois de uma hora de viagem e depois de nos ter cobrado muito dinheiro (na altura eu não sabia que Chelas ficava perto do aeroporto e que o taxista nos tinha enganado). Ao subirmos a rua, vi então debaixo de um banco, no passeio, alguns maços de dinheiro espalhados e uma pessoa deitada na relva perto dos mesmos. Pensei então se calhar colhia-se mesmo dinheiro, porque não tinha sentido nenhum alguém estar deitado perto de tanto dinheiro e não se preocupar em colhê-lo. Se calhar devia estar já farto de colher. Apontei então os maços ao meu pai e fiz tenção de os ir colher, mas ele segurou-me e disse-me:
- Calma, acabámos de chegar. Vamos primeiro descansar, amanhã começamos a colher”.
O segundo conto chama-se "A Pitangueira da Vizinha", de Claudiany Pereira (a pitangueira é uma árvore de frutos adocicados). Fala-se de uma menina, “sete – já – quase – oito anos” que saltava para a pitanga da vizinha, senhora de seu nariz que não gostava daquelas travessuras. A dita senhora em Sexta-feira Santa teve forte briga com o marido, não era dia de carne e ele replicou que iria assar uma costela na churrasqueira, tudo para a vizinhança inteira ver, ela, iracunda, chama-lhe velho herege. “O vizinho, um homem respeitado na redondeza, era um senhor daqueles que a gente olhava e achava que já havia nascido velho. Ele mantinha a cara sempre fechada. Carrancuda mesmo. E gostava menos do que a vizinha de ver a miudagem correndo em volta do jardim. Uma vez, fiquei sabendo, o seu Urbano correu do pátio dele a bengaladas um bando de guris (crianças) que estavam – vejam só! – cobiçando as pitangas daquela árvore carregada de frutinhas”.
E a beleza vem no desfecho do conto, pitanga com muita ternura:
“Não é que o que tinha que acontecer um dia aconteceu, e foi, ainda, na Sexta-Feira-Santa! O marido decidido a comer um pecaminoso bife malpassado abriu a porta, inesperadamente, sem me dar chance, ao menos, de preparar uma boa desculpa, ou de fazer aquela cara de quem peca pela primeira vez e já está, de antemão, arrependida. Simplesmente ele abriu a porta e, pasmem! Deu de cara comigo, que não era invisível, bem defronte à porta da entrada lateral da casa, me lambuzando em pitangas enquanto ele resolvia um problema filosófico existencial sobre a representação sagrada entre mamíferos e peixes. Eu não era como os super-gémeos, nem podia me transformar em um fio d’água como os heróis faziam nos desenhos animados que eu assistia tevê. Eu era eu, sete – já – quase – oito anos, bem sentada na árvore a comer, assim como Eva, o fruto proibido. Foi nesse dia que aprendi que na Sexta-Feira-Santa as pessoas também podem exercitar o perdão. O seu Urbano, passada a surpresa, sacudiu a cabeça em desacordo, vestiu o chapéu cinzento de feltro e saiu pelo portão de ferro azul: mãos atrás das costas, cabeça baixa, passos firmes, sem me dar um fito sequer”.
(continua)
Nota do editor
Último poste da série de 31 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23751: Notas de leitura (1512): "O Negro Sem Alma", romance de Fausto Duarte, 1935 (2) (Mário Beja Santos)