terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24672: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV: Um estranho sonho em Gandembel: "apanhado" pelo PAIG

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita ao antigo aquartelamento português, por parte dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau,l 1-7 de março de 2008) > 1 de março de 2008 > Restos do aquartelamento português, abandonado em 28 de janeiro de 1969, e posteriormente ocupado e dinamitado pelo PAIGC (facto a confirmar: também há outra versão, a de que o quartel, construído de raíz,  foi destruído pela FAP, o que seria mais verosímil)...  A importância estratégica de Gandembel / Balana em pleno corredor de Guiledje (bem como a sua heróica defesa, ao longo de nove meses, pela CCAÇ 2317 e outras forças portugueses, incluindo o BCP 12), não foi esquecida, apesar da posterior mediatização de Guileje...(*)

Foto (e legenda)  © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Aamadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (**).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC".


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV:

  Um estranho sonho em Gandembel (pp. 252-256)

 

Três dias depois de chegarmos do Boé, saímos de Quebo e fomos largados na tabanca abandonada de Gandembel, com a missão de nos emboscarmos na zona durante duas noites.

As minhas condições físicas não eram muito boas.

Três meses atrás, no Cupelom, em Bissau, quando estava a jogar o loto, a dinheiro, com vários companheiros, todos graduados, alguém gritou que vinha aí a polícia militar.

Arrancámos a correr do local, cada um para o seu lado, eu bati com o dedo grande do pé num pilar e o dedo estalou. Andei cerca de um mês a fazer fisioterapia no Hospital Militar em Bissau, mas mesmo depois dos tratamentos, quando calçava a bota, o dedo inchava e eu tinha dificuldade em andar. Durante algum tempo, entrei em Brá com uma bota num pé e um chinelo no outro.

Quando regressei dos três dias em Madina do Boé, descalcei a bota em Quebo e o dedo estava todo inchado. O descanso de três dias, que nos deram, não chegou para ficar bom e fui para Gandembel com uma bota e um chinelo.

Na primeira noite que dormi em Gandembel, adormeci quase de madrugada e sonhei um sonho idêntico, com poucas diferenças, ao que o Capitão João Bacar Jaló tinha sonhado em Jufá, quando foi morto. O sonho era este que vou contar... 

Vi-me com o meu guarda-costas a entrar numa tabanca, toda cercada de troncos de árvores. Começámos a revistar as casas e a perguntar quem tinha arma. Já à saída, pelo outro lado da tabanca, vi na última casa um homem sentado na cama, com uma arma, uma Mauser, encostada ao lado. Atingiu-o mortalmente com dois tiros e mandei o soldado apanhar a arma.

Quando estava a sair da casa,  vi um caminho com pegadas, muito utilizado. Entrei por ele até um pé de limão , com os ramos até ao chão, que não deixavam ver para mais longe. Fui até ao limoeiro e apareceu-me outro velhote, o mesmo com quem eu tinha sonhado há mais de dois meses.

Nesse sonho de há dois meses atrás, eu tinha visto esse velhote, à porta do quartel de Brá, a vender umas calças bonitas, riscadas , que na altura custavam 425 escudos e ele estava a vendê-las por 200. Achando o preço barato, escolhi dois pares e pedi-lhe que as guardasse e as trouxesse no dia seguinte, porque naquele dia não tinha dinheiro comigo. Ele respondeu para eu as levar e que no dia seguinte entregasse o dinheiro ao Cicri Marques Vieira, que era seu sobrinho. Recusei ficar com as calças, e voltei a dizer-lhe que,  se mas quisesse vender,  voltasse no dia seguinte, que eu comprava-as.

Estava neste ponto do sonho do homem das calças, quando acordei às 06h30, que era a hora do costume da gente se levantar. Nessa manhã, por volta das 11h00, apanhei uma viatura até à praça de Bissau e dirigi-me a um estabelecimento, onde comprei sete metros de fazenda bonita, riscada, que dei de esmola a um homem com aspecto de necessitado.

Voltando a Gandembel, ao sonho. Então, quando estava a sair da tabanca, vi o tal pé de limão no meio do carreiro e com muitos ramos pousados no chão, que impediam ver para além. Quando cheguei junto do limoeiro~, vi o velhote, o tal das calças, com que me tinha cruzado no sonho de há dois meses atrás.

Agarrei-lhe na mão e perguntei-lhe onde ia. Que ia para a casa dele.

Moras nesta tabanca?

Sim respondeu.

Tens arma?

Cá, só uma pessoa tem arma, que é o dono dessa casa ali à entrada.

A pessoa a quem o velhote se referia,  era o que, em sonho, eu tinha morto.

Perguntei se os combatentes vinham à tabanca e se hoje já tinham vindo.

Eu saí muito cedo. Por este caminho não vieram, agora não sei se tomaram outro caminho.

Tem dois caminhos? Onde é o outro ? perguntei.

Disse-lhe para me acompanhar, contornámos um local, onde estava caída, talvez há muitos anos, uma grande árvore, com um tronco grosso. Não havia espaço para passarmos os dois e fui à frente, para passar o tronco. Do outro lado, estava uma força de jovens do PAIGC, todos fardados e equipados com todo o tipo de armas. Eu quis fugir mas o velhote não me deixou, agarrou-me por trás e entregou-me ao PAIGC.

O comandante deles deu ordem para me amarrarem. Logo apareceu alguém com uma corda nova e amarraram-me os dois braços nas costas. Pedi para não me amarrarem, tinha o dedo grande do pé estalado, estava inchado e que não podia fugir. Trazia calçado uma bota num pé e um chinelo no outro.

 Criminosos! Até com pés partidos são voluntários para ir para a guerra! gritou o comandante.

 Não é assim, não! Nós somos obrigados, não somos voluntários! respondi.

Mandou tirarem-me a corda. Vindo não sei de onde,  surgiu um jipe que parou e o chefe mandou-me embarcar. Entrei no jipe, este pôs-se em andamento e reparei, então, que ia um europeu e que o condutor era mulato. Quando demorei os olhos no branco,  ele disse-me que, se eu me comportasse bem, talvez viesse a trabalhar com o PAIGC e com ele, que também tinha ido aprisionado.

 Onde foste preso ? perguntei eu no meu sonho.

Em Cutia respondeu.

- Cutia? Eu ouvi contar uma história de um soldado europeu, que tinha desertado com a Mauser de um milícia, em Cutia.

 Sim, fui eu, mas não desertei. Eu sempre que ia à fonte buscar água,  ouvia galinhas de mato a levantarem e, um dia, resolvi pegar na Mauser de um milícia. A Mauser é mais certeira, e fui sozinho tentar caçar alguma. Só que o PAIGC estava emboscado, à espera das mulheres dos milícias, que também iam a essa fonte buscar água, para as capturarem. E foi nessa altura que me apanharam. Se eu tivesse a intenção de fugir, não ia com a Mauser, levava a minha G-3, que talvez fosse melhor recebido.

No caminho chegámos a uma tabanca. O jipe parou, o soldado europeu saiu e, quando eu me preparava para sair também, o condutor fez-me sinal com a mão para aguardar. O mulato mascava qualquer coisa, talvez noz de cola. Tirou da boca a baba que estava a mascar e cuspiu-a no meu dedo inchado e com os dedos espalhou aquela baba em cima da unha do meu dedo estalado. Quando acabou de massajar, o soldado branco que estava ao lado disse-me:

 Calma, todas as pessoas que vêm para aqui, como detidos, têm que fazer isso.

Mandou-me acompanhá-lo a uma casa grande, que estava à nossa direita, com as portas fechadas e com buracos nas paredes e vi lá dentro gente com roupa branca vestida.

Aqui é a prisão dos civis e ali, naquela casa pequena, é a dos militares, estão lá alguns.

Deve fazer muito calor lá dentro observei.

É por isso que a porta tem buracos para entrar ar.

Meteu a chave na porta, abriu-a e, nesse momento, acordei.

Acordei admirado com o sonho e a pensar nele. Tirei um pedaço de cola que guardava debaixo do cantil, mastiguei-o e cuspi no meu dedo. Um soldado que estava ali perto, veio para ao pé de mim e perguntou se isso era para todos ou se era só para mim. Que era só para mim, que era um sonho que eu tivera.

Que sonho?

Esse soldado era filho de um padre muçulmano, de Bissau, e contei-lhe tudo. Ele disse que, se fosse ele, se fingia de doente para ser evacuado. Não vale a pena, respondi. Que no meu sonho tinha sido amarrado e desamarrado. Que tinha sido preso por balantas mas quem me escoltara fora um soldado branco e que o condutor era mulato. E que quando chegámos à prisão, o branco abriu a porta e nesse instante acordei. Por isso, não tinha nada a recear.

Foi desta forma que eu interpretei o sonho. O facto de ter o pé inchado, que era uma coisa real, salvou-me no sonho, que foi quando o comandante do PAIGC me mandou desatar.

As coisas reais, as que se passaram mesmo, foi o acidente com o meu dedo, o soldado europeu que desapareceu em Cutia e que vim a encontrar quando regressámos de Conackry.

Passámos a segunda noite em Gandembel e na manhã do terceiro dia recebemos ordem para nos prepararmos para partir para Guileje. Fomos a pé e chegámos a Guileje, por volta das 16h00.

Estivemos lá três dias à espera de alguma ordem, que nunca mais chegava. No quarto dia arrancámos para Gadamael Porto, com a indicação de apanharmos o barco de regresso a Bissau. Tudo correu conforme o previsto e embarcámos, rumo a Cacine. Estavam lá os páras, que foram nossos companheiros de viagem para Bissau.

(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)

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(**) Último poste da série > 9 der setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972

Guiné 61/74 - P24671: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XII: Cutia: capinadores, missa, coluna para Mansoa, Berliets

Foto nº 1A


 Foto nº 1


Foto nº 2

Foto nº 2A

Foto nº 3


Foto nº 4A


Foto nº 4A


Foto nº 5


Foto nº 5A

Foto nº 6


Foto nº 6A

Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) >  Cutia > C. Outubro de 1969

Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). 

Anexa-se a penúltima parte da série de fotos sobre Cutia, destacamento e a tabanca que ficava a meio caminho entre Mansoa e Mansabá. (*)

Na altura, havia em Cutia um Pelotão da CCAÇ 2589 / BCAÇ 2855 (Mansoa, 1969/71) e ainda o Pel Caç Nat 61 (ou Pel Caç Nat 57) e ainda um Esquadrão do Pel Mort 2004. A AM Daimler que se vê na foto nº 6, deveria pertencer ao Pel Rec Daimler 2048 (que tinha dois esquadrões em Mansoa) (parece estar equipada com uma metralhadora Madsen), rendido depois pelo Pel Rec Daimler 2208.

A organização e a seleção das fotos são feitas pelo seu amigo e nosso camarada, o médico Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa), tendo passado depois pela Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971).

O José Torres Neves é missionário da Consolata, ainda no ativo. Deve estar com 87 anos (!). Vive num país africano de língua oficial portuguesa. Esteve no CTIG, como capelão de 7/5/1969 a 3/3/1971. Estamos-lhe muito gratos pela sua generosa partilha.

As fotos (de um álbum com cerca de 200 imagens) estão a ser enviadas, não por ordem cronológica, mas por localidade, aquartelamentos ou destacamentos do sector de Mansoa.
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de julho de  2023 > Guiné 61/74 - P24513: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XI: Cutia, imagens diversas do quotidiano da tabanca e destacamento

Guiné 61/74 - P24670: Parabéns a você (2206): José Emídio Marques, ex-1.º Cabo Aux. Enfermeiro da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73 (Jumbembém, Farim e Canjambari, 1974)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24652: Parabéns a você (2205): Manuel José Ribeiro Agostinho, ex-Soldado Radiotelegrafista da CCS/QG/CTIG (Bissau, 1968/70)

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24669: Notas de leitura (1617): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (3) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Não hesito em classificar este trabalho como incontornável para o estudo do que tem sido a tentativa de democratização na Guiné-Bissau. Álvaro Nóbrega prima pelo rigor e a independência de juízos, dá-nos um quadro minucioso do funcionamento do Estado e dos avanços e recuos democráticos, é muito cuidadoso a avaliar as questões étnicas e as ligações à terra, disseca a elite política da Guiné-Bissau, o papel político dos militares, a questão fulcral do semipresidencialismo que acaba sempre em presidencialismo, a personalização na vida partidária, a permanente atmosfera de intimidação onde não faltam os espancamentos e até as ameaças veladas. Espera-se que o investigador, que nos dá uma visão em ecrã gigante do que se passou na Guiné entre 1998 e 2008 continue os seus trabalhos, reconhecidamente de grande qualidade.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (3)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau (2003)", e na sequência desse primoroso trabalho produziu Guiné-Bissau: "Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

Faz todo o sentido tratar de forma linear o presidencialismo e a personalização do poder. O chefe de Estado africano, de um modo geral, é tentado pela autoridade absoluta, não distingue a independência das instituições, assenta o seu poder em redes de relações pessoais, é um tutor paternal, gere um sistema de recompensas e de punições. Mesmo quando é eleito em eleições vincadamente democráticas é visto como um patriarca, não se vê obrigado em manter os poderes separados, e daí o sem número de dificuldades na coexistência entre presidentes e primeiros-ministros mesmos nos sistemas semipresidenciais. Como já se fez referência, no início do novo Estado da Guiné-Bissau pretendeu-se desvalorizar o papel das autoridades tradicionais e mostrou-se como o tempo se encarregou de tornar os representantes do PAIGC perfeitamente inócuos ao nível da vida das tabancas. E a legitimidade desses régulos foi retomada, até porque há um vazio no Estado na generalidade dos povoados. Não nos esqueçamos que esta obra foi editada em 2015, é só um aviso prévio para se entender o valor da narrativa.

Álvaro Nóbrega recorda os oito presidentes que até então exerceram funções na Guiné-Bissau: Luís Cabral, deposto em 1980, Bacai Sanhá, em 1999, Henrique Pereira Rosa e Raimundo Pereira foram presidentes interinos. Até 2009, apenas dois tinham sido democraticamente eleitos: João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá. Estes dois últimos, se bem que separados pelas gerações e pelo percurso da vida, tinham afinidades no que respeita ao seu carisma pessoal e ao modo personalizado como exercera o poder. Nunca se conformaram ao papel moderador e arbitral constitucionalmente definido, muito fizeram para submeter todas as esferas do poder, ingeriram-se mesmo na vida partidária. Não se resignaram a viver em sistema semipresidencialista, contrapuseram a sua versão do presidencialismo. E aqui vem a necessidade de refletir sobre a legitimidade, tão difícil de resolver num país tão seccionado, étnica e culturalmente. Nino Vieira procurava jogar com o seu passado militar e o mito de grande guerreiro; Kumba não tinha pergaminhos guerreiros, pretendeu valer-se dos seus dotes intelectuais, falava várias línguas, evitava os seus pensamentos alegadamente filosóficos, com um certo espetáculo converteu-se ao Islamismo. Foi sempre patente a difícil coexistência entre presidentes e primeiros-ministros, rapidamente os primeiros invadiam o campo dos segundos. O autor refere entrevistas havidas com políticos guineenses sobre as vantagens deste sistema semipresidencial, face ao mostruário existente há sérias dúvidas do que é mais eficaz, o presidencialismo ou o semipresidencialismo.

Inicialmente o PAIGC apresentava-se como um partido de unidade, com a vida multipartidária surgiram problemas aparentemente adormecidos como as linhagens e os sistemas de clã. E o autor recorda que há dois partidos antigos, o PAIGC e a FLING, a RGB nasceu no exílio como o movimento de resistência ao PAIGC, na contagem que o autor fez em 2008 o número dos partidos ultrapassava os 30, o chefe é o elemento primário, é ele que agrega à sua volta os seus seguidores pessoais. Daí a conceção rigidamente hierárquica do poder, o que se pode traduzir em que um Presidente da República ponha e disponha da nomeação do Primeiro-Ministro ao arrepio das instituições e dos resultados eleitorais ou temendo o primeiro a visibilidade do segundo. Exemplos não faltam como o autor transcreve: No PRS, devido a um clima de suspeição, o seu congresso de 2002 decorreu com as portas cerradas por correntes e cadeados, para que ninguém saísse e ninguém entrasse. À vista de todos há partidos que se lançam no confronto interno, caso do RGB.

Recorda igualmente a exoneração de Carlos Gomes por Nino, as rivalidades no PRS entre os Balantas, partido em que se trabalhou para depor o presidente Kumba Yalá. E Álvaro Nóbrega dá mais exemplos. Há vários temas complexos em cima da mesa, desde a ausência de diferenciação dos programas partidários, as diferenças ideológicas mínimas, a inexistência de discussões sobre as políticas públicas, enfim, quer-se deter o poder como uma volúpia, um sistema de prémios e punições, pelo que se passa rapidamente de euforia ao pleno descontentamento. E há que ter em conta que se analisa um dos países mais pobres do mundo, os cargos do Estado são vistos como a solução para os problemas financeiros de cada um. E quando se é forçado a abandonar o poder há mesmo recusas em perder regalias, que podem ser casas ou carros, Kumba Ialá foi acusado de ter vendido o Bissau Hotel, na Líbia, pouco antes de ser deposto, por dois milhões de dólares.

E Álvaro Nóbrega dirige agora o olhar para uma matéria que lhe é muito cara, a luta pelo poder, como ele observa:
“A luta decorre em múltiplas instâncias. Joga-se na presidência, no governo, no parlamento, nos quartéis, nos tribunais, na própria sociedade civil e ainda numa outra que não é deste mundo cuja influência não se menospreza porque é respeitada a sua ação. A cosmologia africana contempla um mundo povoado por entidades sobrenaturais e pelos espíritos dos antepassados, em que os vivos constituem uma minoria perante a imensidão de mortos que os observam (…) Na política, como nas mais diversas áreas da vivência africana, a magia tem um papel central. A classe política culturalmente ambivalente tende a levar muito a sério as questões do poder dos espíritos. A magia joga um papel importante na política e na luta pelo poder”.

E são elencados alguns exemplos. O tema da justiça e dos direitos humanos é de tratamento obrigatório, há que ter em conta os relatórios da Liga Guineense de Direitos Humanos para perceber que a Guiné é um país de detenções arbitrárias, espancamento de jornalistas, tentativas de assassinato, a intimidação está sempre presente. A sociedade civil é observada, é pequena, o que é para lastimar dado que ela é considerada um dos principais pré-requisitos da democracia e o autor faz um diagnóstico:
“A maioria das associações não tem sustentabilidade para sobreviver fora do quadro dos financiamentos internacionais. Consequentemente, o que determina a sua ação não é o fim social que estabeleceram, mas a disponibilidade de fundos, o que faz com que seja um tipo de associativismo que não existe sem um fluxo continuado de financiamento internacional”.

Álvaro Nóbrega irá ainda fazer referência à liberdade de expressão e de imprensa e à africanização do voto.

Conclui o seu importante estudo relembrando o baixo grau de comprometimento político das elites com a democracia, um Estado com falta de soberania, os exacerbamentos étnicos, a personalização do poder, a colagem dos militares ao poder, e algo mais que acaba de se ver neste texto. A sua investigação termina quando se encetava a eleição do José Maria Vaz, o único Presidente da República que começou e concluiu o seu mandato em conformidade com o ato eleitoral. Nóbrega dirá no final que parecia estar reunido um conjunto de condições favoráveis para a estabilização e desenvolvimento, os doadores tinham voltado. Mas não cabe neste trabalho as novas disfuncionalidades enquanto Estado e democracia.

Oxalá Álvaro Nóbrega continue a trabalhar sobre a difícil democratização da Guiné-Bissau, tal o apuro e o rigor que ele põe nas suas investigações.


Kumba Yalá
O general António Indjai, líder dos militares no golpe de estado de 2012
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Nota do editor

Último poste da série de > 15 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24653: Notas de leitura (1616): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (2) (Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24668: Recortes de Imprensa (133): Jornal "Voz da Guiné" (3): Reprodução da 3.ª página do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

1. Continuação da publicação da transcrição das páginas do jornal Voz da Guiné de 7 de Setembro de 1974, enviada pelo nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), em 13 de Setembro de 2023:

Bom dia camarada Carlos Vinhal
Conforme previsto no meu último mail, envio em anexo as primeiras 4 folhas do Voz da Guiné, devidamente transcritas para Word. Sobre este trabalho tenho a referir o seguinte:
1 – Corrigi várias gralhas/palavras, mas respeitei a pontuação dos autores embora me pareça existirem várias vírgulas “fora dos eixos”;
2 – Existem vários textos que nada têm a ver com a Guiné pelo que entendo ser lógico que, a partir da página 5 se transcreva apenas aqueles textos que, directamente ou indirectamente, digam respeito à Guiné-Bissau (se achares que, para o blogue, interessam todos, diz p.f., que agirei em conformidade);
3 – As folhas em Word já têm encimado o título do jornal, em jpeg (fácil de transpor para o blogger).

[...]
Saúde da boa.
Abraço
Abílio Magro


(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24666: Recortes de Imprensa (132): Jornal "Voz da Guiné" (2): Reprodução da 2.ª página do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

Guiné 61/74 - P24667: Manuscrito(s) (Luís Graça) (231): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte II: o carrasco, Adriano de José de Carvalho e Melo, fundador e administrador do Marco de Canaveses


José do Telhado (1818-1875)... (A partir de uma foto da época)



Capa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862).



1. Zé do Telhado (Penafiel, 1818-Malanje, Angola, 1875) já nada diz hoje à geração atual dos nossos filhos e netos. Mas é capaz de dizer a alguns de nós (sobretudo os nascidos e/ou criados no Norte, ou pelo menos Entre Douro e Minho) e sobretudo à geração dos nossos pais, que vieram ao mundo nas décadas de 1910 e 1920. (*)


O meu sogro, José Carneiro, por exemplo, nascido em 1911, e natural da região do Vale do Tâmega, do concelho de Marco de Canaveses, falava-me ainda, em meados dos anos 70, vinte anos antes de morrer, da lenda do Zé do Telhado, que “roubava aos ricos para dar aos pobres”. E essa lenda transmitiu-a aos filhos.

Acontece que este verão pus-me a ler a autobiografia romanceada do Camilo Castelo Branco, as “Memórias do Cárcere”, em dois volumes, na 8ª edição, 1966. E por aí cheguei ao retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico,  que ele traçou do seu companheiro de infortúnio (mas também "guarda-costas"), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto.

No prefácio à 2ª edição (Porto, 1864), Camilo conta-nos que esta obra foi escrita em 40 dias, e nela reuniu mais de 3 dezenas de “historietas”, centradas no submundo do crime da época, ali bem representado na cadeia da Relação do Porto. Mais de 30 páginas (cap. XXVI, pp. 84-107) são dedicadas ao Zé do Telhado. 

Camilo, acusado de adultério, na iminência de ser preso, e por conselho de amigos, saiu do Porto, andando “fugido à justiça” cerca de 6 meses, escondendo-se aqui e acolá em casa de familiares, admiradores e amigos: primeiro um mês, nas águas furtadas da casa do amigo portuense Custódio José Vieira, e depois três meses na Quinta do Ermo, em Fafe, do mais tarde tristemente célebre José Cardoso Vieira de Castro (1837-1872), condenado por homícidio da sua jovem esposa brasileira, e desterrado para Angola, um crime passional que deu brado na época, em Portugal e no Brasil.

No seu estilo inconfundível, Camilo descreve a partida da “diligência” para a Régua nestes termos sarcásticos:

(…) “Me embarquei na ‘diligência’ que partia, mais duvidosa do seu destino, para a Régua, do que a nau de Cristóvão Colombo para o novo mundo” (CCB, 1966, pág.14).

Cansado da “clandestinidade”, Camilo acaba por entrar na prisão em 1 de outubro de 1860. O
 Zé do Telhado já lá estava, nessa altura. Viria a ser condenado, por sentença transitada em julgado, no Tribunal Judicial do Marco de Canavases, a pena de desterro em África, em 27 de abril de 1861… Tinha sido preso em 31 de março de 1859 quando tentava fugir para o Brasil, ficando então  detido nos calabouços da Relação.

Já agora, e como curiosidade, o Camilo nunca explicita, talvez por pudor, hipocrisia social ou mero calculismo (ele vivia exclusivamente da escrita, foi o primeir0 escritor português a 'profissionalizar-se"), a razão da sua detenção durante um ano, e muito menos menciona o nome da sua companheira, Ana Plácido (que era casada, contra a sua vontade, com um  comerciante rico, o "brasileiro" Pinheiro Alves, e que estava igualmente detida, por adultério, na ala feminina).

No sítio do Museu Judiciário do Tribunal da Relação do Porto, pode  saber-se algo mais sobre este homem,  Zé do Telhado, que entrou para a história não tanto como militar e guerrilheiro, condecorado com o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada (por ter salvo a vida do general Sá da Bandeira, em 1846, na revolta da Maria da Fonte, a que se seguiu a guerra da Patuleia) mas sobretudo pela sua alcunha, a sua fama, as suas façanhas em data p
osterior, como “bandido social” ou “bandido-herói”, que acabaria por morrer desterrado em Angola.


O Processo (1859-1861)

(…) Chefe de uma quadrilha de salteadores, Zé do Telhado deve a sua fama lendária de roubar aos ricos para dar aos pobres – uma espécie de Robin dos Bosques português. O escritor Camilo Castelo Branco presta-lhe homenagem nas “Memórias do Cárcere” (com quem esteve preso na Cadeia da Relação do Porto e de quem se tornou amigo).

Foi preso em 1859, julgado no Tribunal Judicial de Marco de Canavezes (julgamento iniciado a 25 de abril de 1859) e condenado a degredo na costa ocidental de África para toda a vida. Embora a pena tenha sido comutada posteriormente para 15 anos de degredo, Zé do Telhado acabaria por falecer em Angola.(…)


E mais se pode ler no sítio do referido museu virtual:

Processo de Querela contra o réu José Teixeira da Silva (Zé do Telhado):

(…) Libelo acusatório por diversos crimes cometidos com violência: tentativa de roubo; tentativa de roubo com princípio de execução, com arrombamento; roubo com homicídio; roubo com espancamento e ferimentos. E ainda autoria e chefia de associação de malfeitores e tentativa de evasão do reino sem passaporte e com violação dos Regulamentos Policiais. É condenado a trabalhos públicos por toda a vida no Ultramar e ao pagamento das custas.

O processo iniciou-se em 30 de Maio de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado por sentença do juiz António Pereira Ferraz, de 27 de Abril de 1861, na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pela Relação do Porto, substituindo apenas a expressão “costa ocidental de África”, por “Ultramar”.

Por acórdão da mesma Relação de 11 de Agosto de 1865,  foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, a contar desde a data do Decreto de 28 de Setembro de 1863.(…)


O réu acabou por ser condenado por “diversos crimes [cometidos] com violência”, comprovados em tribunal, e absolvido de outros:

  • tentativa de roubo, com começo de execução, em casa de António Fabrício Lopes Monteiro, de Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião [em 27 de novembro de 1952];
  • homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Dª Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião [erro: trata-se de Marco de Canaveses], e roubo na casa da referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objetos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, não sabendo ao certo quanto era, porque o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar [crimes estes ocorridos em 8 de janeiro de 1852];
  • roubo [cometido em março de 1859] em casa do Padre Albino José Teixeira [em Sequeiros, freguesia de] Unhão, comarca de Felgueiras, no valor de um conto e quatro centos mil reis em dinheiro e ainda objetos de prata e outro;
  • outro homicídio na pessoa de um correligionário [o “Avarento”], ferido num confronto com as autoridades [na Eira dos Mouros, serra de Montedeiras, em 22 de maio de 1852, e levado para uma estalagem, na freguesia de Santa Catarina, concelho de Felgueiras, o Zé do Telhado lhe deu um tiro de misericórida];
  • para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino [para o Brasil] sem passaporte e com violação dos regulamentos policiais.

(...) “A sua qualidade de chefe é que o tornou responsável pelo homicídio do Carrapatelo, pois o autor material foi um capanga que abateu o criado quando este tentou reagir, num momento em que o caudilho ainda nem entrara na residência. “ (…).

Foi brilhante a sua defesa, para mais a título gracioso, pelo advogado portuense, Marcelino de Matos, amigo e defensor do Camilo. 


Contexto histórico, político e militar:

Continuando a citar a mesma fonte:

(…) "A ação do Zé do Telhado, alcunha de José Teixeira da Silva, integra-se no fenómeno organizativo de grupos de assaltantes que tem a sua génese, de formação espontânea, durante as invasões francesas.

"Perante a total falta de reação do exército português à entrada dos napoleónicos, grupos de populares procuram quebrar a total impunidade dos invasores. Esses grupos, meras milícias populares, entretanto com experiência guerrilheira acumulada, foram aproveitados na guerra civil liberal por forças políticas e militares em campo: os “corcundas” (absolutistas) e os “malhados” (liberais).

"Terminada a guerra, ficou o gosto e o proveito da guerrilha por conta própria: é o João Brandão, é o Remexido, é o Zé do Telhado. Este atingira, ao serviço liberal, a glória, com a atribuição da Torre e Espada. Finda a guerra pretendeu um emprego no Depósito do Tabaco, no Porto. Não conseguiu.

Usava evoluída assinatura, com o último apelido abreviado (S.a), curioso indício de cultura acima da vulgaridade.” (…)



Marco de Canaveses, concelho criado em 1852

O Marco de Canaveses foi elevado a concelho, em 1852, por ação, direta ou indireta de dois homens, contemporâneas e vizinhos, o administrador Adriano José de Carvalho e Melo (1825-1894) e... o Zé do Telhado (1816-1875), nascidos na mesma região, berço fecundo de gente nobre e ilustre,  o Vale do Tâmega, o primeiro, e o Vale do Sousa, o segundo.

Em 1809, ainda não existia a cidade do Marco de Canaveses, muito menos o concelho, apenas a pequena vila medieval de Canaveses, sobranceira ao rio Tâmega, na margem esquerda, e por onde passava a estrada real Porto-Régua. A ponte medieval era do tempo de Dona Mafalda, esposa de Dom Afonso Henriques.

E foi essa ponte que os habitantes locais demoliram parcialmente na tentativa de impedir o trânsito das tropas do marechal Soult, que comandava o exército napoleónico,  na sequència da segunda invasão francesa (de 3 de fevereiro a 12 maio de 1809). 

Os invasores não transpuseram o Tâmega em Canaveses, fizeram-no mais a montante, em Amarante. Menos conhecida dos portugueses é a bravura posta na defesa da ponte de Canaveses contra os invasores, que está bem patente num relato de um soldado francês:

"O General Caulaincourt, que nos comandava, pretendeu apoderar-se de Canaveses a fim de não deixar inimigos entre si e o Porto. Formou um destacamento de 500 cavalos e marchámos para Canaveses; não encontrámos ninguém até à nossa chegada a uma altura que domina a povoação: aí avistámos a alguma distância bandos de 15 a 20 paisanos que aparentavam não esperar senão o sinal para nos atacarem. Vestidos de negro ou de cor sombria, entre rochedos acinzentados, tinham o ar de fantasmas devotados à nossa perseguição e que nos vinham acusar da infelicidade do seu país: seguiam de longe os nossos movimentos e paravam quando nós fazíamos alto (...).

"Após duas horas de um combate muito vivo no qual tivemos 80 homens feridos todos pela frente, o destacamento regressou às alturas onde lutámos com os habitantes que nos tinham atacado de todos os lados, desde que a luta se tinha desencadeado sobre a ponte. (...) 

"Operámos uma retirada sobre Penafiel, conduzindo os feridos. Fomos perseguidos até aos nossos bivaques por uma multidão de paisanos que pareciam sair da terra ou tombar das nuvens, desde que nos afastássemos um pouco." (citado por Nayles, M. de (1817). - "Memoires sur da Guerre d'Espagne pendante les années 1808, 1809 e 1811". Paris: [s.n.]. In: Wikipedia > Marco de Canaveses)

Acrescente-se que o concelho do Marco de Canaveses, juridicamente falando, só existe desde 31 de março de 1852, dois meses e tal depois do assalto à Casa do Carrapatelo:

(i) em 1836, a vila de Canaveses e o concelho de Tuías unem-se ao concelho de Soalhães, formando o concelho do Marco de Soalhães; era seu administrador Adriano José de Carvalho e Melo (que será mais tarde comissário da Polícia no Porto e Governador Civil do Distrito de Bragança);

(ii) em 1852, há uma nova união, a dos dos concelhos de Benviver (a que pertencia Candoz, Fandinhães e a serra de Montedeiras...) e Marco de Soalhães, dando-se assim início ao processo de fundação do atual concelho de Marco de Canaveses.  

(iii) recorde-se que,  a 7 de janeiro de 1852, o  Zé do Telhado e o seu bando  preparam-se junto à capela românica de Fandinhães, na vertente norte da serra de Montedeiras, para levar a caso o audacioso assalto à Casa do Carrapatelo;

(iv) o alarme social provocado por este assalto (onde houve um homicídio) levou o administrador Adriano José de Carvalho e Melo, deputado e administrador do concelho de Soalhães, a mover uma "luta de vida ou de morte" contra o Zé do Telhado, mas só iria conseguir prendê-lo nove anos depois, em 31 de março de 1859;

(v) citando a Wikipedia, "a lei não permitia à justiça de uma comarca entrar noutra, sem autorização do seu administrador", e foi por causa desse impecilho burocrático que o Adriano de José de Carvalho e Melo vai mover mundos e fundos para poder criar-se o concelho do Marco de Canaveses (um grande concelho reunindo em si os vários concelhos e comarcas vizinhos, de menor dimensão e importância);

(vi) em 31 de março de 1852, a rainha D. Maria II assina o decreto que cria o concelho de Marco de Canaveses (que passa a integrar os concelhos de Benviver, Canaveses, Soalhães, Portocarreiro, parte dos de Gouveia e Santa Cruz de Riba Tâmega);

Os marcoenses podem estar gratos, hoje, ao Adriano José de Carvalho e Melo (que nasceu e morreu em Tuías, na Casa da Picota) pelo seu papel como pai-fundador do seu concelho, mas não podem ignorar que, de algum modo, o "fora-da-lei" Zé do Telhado  também faz parte desta história...

A avaliar pelos poucos livros (apenas três) que encontrei na biblioteca municipal local, quer-me parecer que o homem também anda por aqui muito esquecido... Claro que não seria caso para ter direito a um busto de bronze, no jardim municipal, como o Adriano José de Carvalho e Melo, mas, bolas, na altura o alegado "bandido social", nascido no concelho vizinho de Penafiel e casado na Lousada, também ajudou a pôr o Marco de Canaveses no mapa... 

Ingratidão,  mesquinhez, tacanhez dos portugueses? Já o Camilio dizia, em 1862, nas suas "Memórias do Cárcere";

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) “Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo” (pág. 84)
 
(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste anterior: 14 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24649: Manuscrito(s) (Luís Graça) (229): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte I: a lenda que eu ouvi contar ainda em 1976, em Candoz

(*ª) Vd. poste anterior da série: 7 de setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24664: Manuscrito(s) (Luís Graça) (230): Há minas... e minas

domingo, 17 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24666: Recortes de Imprensa (132): Jornal "Voz da Guiné" (2): Reprodução da 2.ª página do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

1. Continuação da publicação da transcrição das páginas do jornal Voz da Guiné de 7 de Setembro de 1974, enviada pelo nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense (CSJD/QG/CTIG, 1973/74), em 13 de Setembro de 2023:

Bom dia camarada Carlos Vinhal
Conforme previsto no meu último mail, envio em anexo as primeiras 4 folhas do Voz da Guiné, devidamente transcritas para Word. Sobre este trabalho tenho a referir o seguinte:
1 – Corrigi várias gralhas/palavras, mas respeitei a pontuação dos autores embora me pareça existirem várias vírgulas “fora dos eixos”;
2 – Existem vários textos que nada têm a ver com a Guiné pelo que entendo ser lógico que, a partir da página 5 se transcreva apenas aqueles textos que, directamente ou indirectamente, digam respeito à Guiné-Bissau (se achares que, para o blogue, interessam todos, diz p.f., que agirei em conformidade);
3 – As folhas em Word já têm encimado o título do jornal, em jpeg (fácil de transpor para o blogger).

[...]
Saúde da boa.
Abraço
Abílio Magro


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24663: Recortes de Imprensa (131): Jornal "Voz da Guiné" (1): Reprodução da capa do número 353, de 7 de Setembro de 1974 (Abílio Magro)

Guiné 61/74 - P24665: Blogpoesia (794): "Lágrima de Sol", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



LÁGRIMA DE SOL

O sol vem sempre
o sol não mente
ou vermelho e quente
queimando a sede
e roendo a fome
de tanta gente inocente
ou pálido e frio
congelando a sede
e empedrando a fome
ainda que a gente o não veja
e pareça ausente.
E também o deserto
o deserto não mente
o deserto sempre aberto
na alma desta gente
ainda que pareça certo
o caminho em frente.
Vem sempre a dor
na secura das carnes
a dor não mente
ainda que ao mundo pouco importe
a dor que dói a tanta gente.
E também a alma não mente
e não mente o sofrimento
do esbugalhar dos olhos
ainda que a mente enlouqueça
e até se esqueça
de que é alma de gente.
E morre a paz
a paz podre não mente
ainda que na vaga esperança da sorte
não seja mais do que a paz da morte.


adão cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24465: Blogpoesia (793): "Um apenas", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P24664: Manuscrito(s) (Luís Graça) (230): Há minas... e minas





Vídeo (0' 26'') (Luís Graça, 2023)

Quinta de Candoz > A nossa "mina"... Abastece-nos de água e corre, fresca e encantatória,  para o rio Douro, pelo vale abaixo (neste caso, para a albufeira da barragem do Carrapatelo)...

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Tabanca de Candoz > 1 de Setembro de 2011 

Na altura escrevi (*):

"Mais uma foto, fresquinha, tirada hoje, e que é difícíl de obter nas outras tabancas da nossa Tabanca Grande... Uma boa legenda precisa-se e aplaude-se... Será uma viagem ao interior do corpo humano ? Pode ser...

"O verão ainda não acabou nem o nosso passatempo... Espero que amanhã não chova porque temos, cá na nossa tabanca, a primeira vindima já marcada, a das castas avesso e loureiro... Daqui a 10 dias há mais, a 2º vindima (restantes castas: azal e pedernã ou arinto)... Mas aí já eu (e a Alice) estarei em Lisboa, que o trabalha aperta e as saudades do sul também já são algumas".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Já há muito tempo que não ia visitar e  fotografar a nascente de água que abastece a nossa Quinta de Candoz... e que fica dentro da propriedade. Há já há largos anos, mesmo antes da pandemia de Covid-19... Publiquei aqui uma foto de 2011 (*)...

"É a maior riqueza que tenho nesta terra", dizia-me o meu sogro, quando há já quase meio século comecei a vir aqui a Candoz,,,

Ontem, sábado, enquanto os vindimadores vindimavam (eu este ano nem sequer peguei numa tesoura!), lá peguei nas minhas "canadianas" e na máquina fotográfica  e, em equilíbrio instável, arriscando um tombo ou uma queda fatal (!), desci até ao sítio, dentro da nossa propriedade onde vem a água que bebemos...

Aqui, em muitos quilómetros à volta,  não há abastecimento público.  E quem tem "mina", sempre escapa à sede... Aprendi que aqui há poços escavados na vertical como na minha terra... Lá os lençóis freáticos (ou as nascentes subterrâneas) estão abaixo do nível do mar. Aqui estão a 250 ou 300 metros acima.... 

Esta mina é centenária e foi o meu sogro quem tratou de "encanar a água" que, ao longo de extensos e altos  muros de pedra, e percorrendo toda a propriedade, chega de um extremo ao outro onde erguemos a casa de habitação e os anexos agrícolas...

Ninguém se lembra de alguma vez ter esta mina secado, mesmo nos piores verões de seca extrema, deste e do outro século... É saborosa, fresca, abundante... E não temos maneira de a aproveitar toda. Há outras minas que servem para rega... (Dantes fazia-se o milho, e toda a água era pouca). Durante anos tivemos um tanque/piscina de 60 mil litros, que está agora inoperacional, a precisar de obras de restauro... devido a brechas nas paredes laterais e no fundo).

Na Guiné a palavra "mina" tinha outro siniciado
...Era uma palavra que nos obrigava a ficar em alerta e frequentemente provocava dor, tragédia, mortos e feridos... "Mina!"... Ainda mexe com os meus sentidos e as minhas memórias doridas daquele tempo... (**)
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mina1

(mi·na)

nome feminino

1. Veio ou depósito natural de minérios. = JAZIGO

2. Conjunto de trabalhos realizados para extrair esses minérios.

3. Galeria construída para fazer esses trabalhos.

4. Nascente de água.

5. Galeria estreita para trazer subterraneamente a água de uma nascente.

6. Fonte de riquezas.

7. Negócio lucrativo.

8. Preciosidade.

9. Tesouro oculto.

10. Indivíduo que se deixa explorar.

11. Pequeno ponteiro de grafite para lápis ou lapiseiras.

12. [Armamento] Engenho de guerra explosivo que é detonado por contacto (ex.: mina anticarro; mina antipessoal).

13. [Militar] Cavidade que, cheia de pólvora, faz ir pelos ares o que há por cima.

14. [Militar] Caminho subterrâneo para levar os sitiantes ao lugar sitiado.

15. [Brasil] Mulher, geralmente jovem.

16. [Brasil] Mulher que sustenta o amásio.

17. [Brasil] Amante de gatuno ou rufião.

mina de ouro•Escavação para extrair ouro.

•Aquilo que permite ganhar muito dinheiro.

mina submarina•Engenho bélico, contendo matérias explosivas, que se mergulha no mar, para explodir um navio.

mina terrestre•Engenho de guerra explosivo que se camufla no solo e que é detonado com a aproximação de pessoas ou veículos.

Origem etimológica: francês mine. (...)

Fonte: "mina", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/mina.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de setembro de  2011 > Guiné 63/74 - P8720: Fotos à procura de... uma legenda (12): Mais uma foto-mistério da Tabanca de Candoz (Luis Graça)