quarta-feira, 31 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25795: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte VIII: Antigamente só de cavalo ou a pé, hoje já há "motores" e "carretas"...para chegar às montanhas de Liquiçá



Foto nº 1 > Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > Escola de São Francisco de Assis > 2020


Foto nº 2 > Timor Leste > Díli  > 2016 >   João Moniz Sobral ("Eustáquio") e Rui Chamusco


Foto nº 2 > Timor Leste > Díli >  2020 > "Eustáquio", esposa  (já falecida) e os seus quatro filhos (um dos rapazes, vive e trabhalha no Reino Unido)


Foto nº 4 > Timor Leste >  s/l > 2014 > Um paisagem da montanha

Fotos da página do Facebook do João Moniz, com a devida vénia
 


1. Continuação da publicação de uma seleção das crónicas do Rui Chamusco, respeitantes à sua segunda estadia em Timor Leste (janeiro / julho de 2018) (*).

Membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último, é cofundador e líder da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015 e com sede em Coimbra. Professor de música, do ensino secundário, reformado, natural do Sabugal, e a viver na Lourinhã, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem desenvolvido no longínquo território de Timor-Leste.

Nesta viagem (e estadia, de cinco meses), o Rui Chamusco partiu para Timor, em 25 de janeiro de 2018, com o seu amigo, luso-timorense, Gaspar Sobral, cofundador também da ASTIL. 

Em Dili ele costuma ficar na casa do Eustáquio (alcunha de João Moniz), irmão (mais novo) do Gaspar Sobral, e que andou, com a irmã mais nova, a mãe e mais duas pessoas amigas da família, durante três anos e meio, refugiado nas montanhas de Liquiçá, logo a seguir à invasão e ocupação do território pelas tropas indonésias (em 7 de dezembro de 1975). Tinha "apenas" 14 anos, o valente Eustáquio, hoje viúvo e pai de quatro filhos.

Poucos de nós conhecem os últimos 100 anos da história de Timor... Estas crónicas do nosso amigo Rui Chamusco são um bom contributo para a gente saber algo mais sobre o povo, irmão, de Timor Leste. Que, afinal de contas, continua no nosso imaginário: somos da geração que aprendeu a ouvir (e a dizer) que Portugal ia "do Minho a Timor"...


II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)

Parte VIII - Antigamente só de cavalo ou a pé, hoje já há "motores" e "carretas"...para chegar às montanhas de Liquiçá 



Dia 19.04.2018, quinta feira  - Quem ao mais alto sobe...



O amigo Cesáreo, que já é pai de três filhos, tem uma agilidade impressionante. Em conversa informal apercebeu-se de que eu estava desejoso de beber a água de coco. E, de repente, prontificou-se a subir a um alto coqueiro para deitar abaixo uns quantos frutos a fim de saciar a minha sede. 

Por mais que eu insistisse para não o fazer devido aos riscos que corria, ele depressa trepou e, lá nas alturas, munido de catana, decepou uns quantos frutos mais maduros, que em alta velocidade atingiram o chão. Cá em baixo, eu mais umas quantas crianças esperávamos com ansiedade que o Cesáreo descesse a fim de preparar para todos nós a deliciosa bebida. 

Claro que não esquecemos de guardar alguns para o Gaspar e o Eustáquio que durante esta tarde iriam chegar.


Chegada do Gaspar e do Eustáquio

Telefonaram a dizer que vinham hoje. E assim foi. Mais ou menos pelas seis horas da tarde, enquanto um grupo de crianças e alguns adultos soletrava as frases da pequena brochura “Grão a grão” (oferta do BNU Timor) e ensaiava o hino da escola, um “motor” dá sinal de chegada ao local. 

Com facilidade nos demos conta que eram os amigos Eustáquio e Gaspar. Foram de imediato surpreendidos ao serem recebidos ao som do hino, e vai daí a s fotos e gravações para a publicidade.

Claro que, estando eu sozinho há alguns dias, e nem o meu tetum nem o português dos residentes sendo fluente, fiquei muito contente com o regresso dos meus amigos. Mas dizem os de cá que aprendem melhor comigo o português, talvez devido à carência de entendimento e ao esforço que para tal fazemos. 

De qualquer maneira, bem vindos ao nosso meio. Sempre é bom desenferrujar a língua através de uma conversa corrente. Contar histórias, recordações, anedotas faz bem a toda a gente. Momentos de bom humor e de descontração fazem-nos muito bem. Amanhã outras lides nos esperam.


20.04.2018, sexta feira - Os esplendores da natureza


Se há coisa que nos encanta nesta terra são os esplendores da mãe natureza. Logo de manhã ao nascer do dia, são as “laudes” ao Criador. O sol nascente faz-nos o convite; as aves do céu começam os seus louvores; os animais da terra expressam a sua alegria. 

Cantam os galos, grunhem os porcos, ladram os cães...e os homens? Quase todos ainda dormem. Tenho por hábito deitar cedo e cedo erguer. Talvez por isso é me dado contemplar coisas que outros não vêem.

Durante a tarde levantou-se um temporal impressionante. O irmão vento parecia querer levar tudo e todos com a força do seu sopro. Todos resistiram... Foi me depois explicado que, sempre que há mudança de estação, e aqui em Timor são duas (inverno e verão),  acontece este fenómeno. É a despedida do inverno. 

Ao fim de vinte e quatro horas o vento amainou, e a vida continua. Agora já em tempo de verão, de mais seca, usufruindo de todas as vantagens que esta estação do ano nos proporciona. Por paradoxo, aqui as noites são mais frescas no verão do que no inverno. De resto mal se sente a mudança. Lá para o mês de Setembro/Outubro voltaremos ao inverno.


A horta do Cesáreo


Já perto da ribeira de Laoeli, o Cesáreo tem uma horta onde cultiva particularmente a folha “malus” que lhe vai dando algum rendimento económico. Já lhe tinha feito crer que eu desejava visitar o local para ver a sua cultivação. 

Hoje de tarde, depois do almoço, o Cesáreo, a sua filha Cesantina, o Eustáquio e eu pusemo-nos a caminho descendo a íngreme encosta até ao local do destino. Com acessos muito difíceis por veredas e matos espessos lá fomos descendo com redobrados cuidados, não fosse a cobra temida aparecer e morder. Não houve novidades. Chegamos todos bem, junto à casa da irmã do Cesáreo, que é a casa da família. Foi um regalo ver com os olhos e tocar com as mãos aquelas folhas que, na cultura timorense tanto valor têm. 

Retemperados com um café acolhedor e com a carne de um galo que o Cesáreo apanhou com mestria, acompanhada do habitual arroz, e depois de tirarmos algumas fotos, retomamos o caminho de subida, bem mais duro que o da decida. Animava-me a pequena Cesantina, uma criança de sete anos que, sem qualquer dificuldade e qual cabrita saltitante me abria o caminho. E eu, muito satisfeito comigo mesmo, por ter alcançado o que queria.


Exposição “Lameta”

Tinha prometido ao amigo João Crisóstomo: "Logo que volte a Boebau, vamos fazer a exposição na escola São Francisco". 

Por isso, estes dias e sobretudo hoje tivemos a preocupação de preparar a exposição. Ideias e mais ideias, e chegou-se à decisão de como fazer. Na sala de Nossa Senhora de Fátima foram explanadas as folhas que reúnem os documentos desta colação, de modo a estar tudo pronto para amanhã, depois da reunião geral, todos serem convidados a visitá-la.

“Lameta” é o nome que identifica o movimento criado pelo João e que quer dizer Movimento Luso Americano para a Autodeterminação de Timor Leste. Esta exposição é um complemento do livro Lameta, e que pretende dar a conhecer aos seus visitantes o desconhecido contributo das comunidades luso-americanas em causas de interesse para a humanidade: independência de Timor Leste, Gravuras do Vale do Côa, o “Dia da Consciência” dedicado a Aristides de Sousa Mendes. 

Esta é a terceira feita em terras timorenses, mas esperamos fazer ainda mais duas ou três. É um contributo importante para a memória coletiva timorense. Para finalizar informo que esta coleção faz parte do património da Escola de São Francisco em Boebau, pois o João Crisóstomo fez questão que assim fosse através de uma dedicatória, deixando assim para trás importantes pretendentes. Obrigado, João!...


21.04.2018, sábado - Reunião importante


Todas as reuniões são importantes. Mas esta reveste-se de uma importância especial pois trata-se de, em Assembleia, dar os passos necessários para a criação dsa ASTIL BM (Associação de Amigos de Timor Leste de Boebau/Manati), que será o suporte legal para o registo da escola de São Francisco.

Ao ritmo timorense, ou seja uma hora depois da hora prevista,  iniciamos as reunião às dezasseis horas que se prolongou por toda a tarde. No intervalo visitou-se a exposição Lameta, que muitos apreciaram.

Depois dos esclarecimentos necessários às intervenções solicitadas, foram aprovados os corpos sociais desta associação. A partir de agora a ASTILBM será a entidade responsável pela escola e por ouras atividades afins de suporte à mesma. Seguem-se as diligências para o registo da associação e da escola.

Votaram as propostas 46 pessoas. Depois dos compromissos assumidos seguiram-se as respetivas assinaturas.

Em conclusão direi que onde há grupos humanos haverá sempre alguns problemas e maus entendimentos, mas nada que não se resolva com uma boa explicação. Fiquei edificado com o civismo desta gente, interveniente e participativa, sempre com o objetivo de ajudar a encontrar soluções. (...)


22.04.2018, domingo - Os irmãos Zé e Nando (AbôZé e AbôNando)


Desta ninguém estava à espera. Então não é que agora os dois irmãos, devidamente combinados, nos exigem que compremos o terreno onde está construída a escola, terreno que desde o início nos teria sido dado para tal efeito?

Como para registar a escola precisamos de um documento assinado pelos doadores, á noite em família tentou-se proceder a tal, mas sem êxito. Foi então que se descobriu a razão do bloqueio: o terreno terá de ser pago. Como não havia outra solução e é urgente proceder ao registo, lá tivemos que aceitar o negócio dos vendedores. Vá lá a gente entender-se! Oportunistas também existem por cá.

Ficou-nos um amargo de boca que custa a engolir. Mas talvez tenha sido a melhor solução. Assim ninguém poderá dizer que o terreno não é nosso, pois existe um documento que prova a sua compra. Deus muitas vezes escreve direito por linhas tortas.

Dia 23.04.2018, segunda feira - As dificuldades de comunicação


Não é só a estrada/caminho de acesso. Talvez do que mais falta nos faz aqui é de corrente elétrica. Os fracos painéis solares não resolvem o problema. Não conseguem carregar um telemóvel. Muito menos aguentam a carga de um computador. A quem está habituado às novas tecnologias faz uma falta enorme. Estar duas semanas sem poder comunicar com os amigos, sem consultar a internet, o facebook, o whatsApp,  é difícil, mas sobrevivemos.

Prometeram que a eletricidade viria em breve, e até já têm os postes metálicos espalhados junto ao caminho, mas não sabemos se esta brevidade vai durar anos, como outras coisas já começadas e que nunca mais terminam. Seria uma boa prenda de Natal se o Menino Jesus deste ano já pudesse ser iluminado com a luz dos homens. Veremos, com ou sem luz artificial, porque a luz divina não falha.

Estamos em campanha eleitoral, e todos os candidatos fazem promessas ao povo que, na sua maioria, sabemos de antemão não irão ser cumpridas. Pode ser que haja algum salvador para esta gente. Assim o esperamos.



 Timor Leste > Um país montanhoso, de paisagens luxuriantes... A muitos sítios no interior (como Liquiçá, Manati, Boebau), só se consegue chegar de "motor" (motorizada), mesmo que o "pendura", em muitos troços, tenha que ir a "penantes" (como é o caso, aqui, do Rui Chamusco, a mochila às costas; "ser solidário" não é pera doce...)

Foto: © Rui Chamusco (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Dia 24.04.2018, terça feira  - Carreta, o transporte da montanha


Dizem que até nisto já houve evolução. Antigamente só de cavalo ou a pé. Hoje, embora com muitas dificuldades, viajam motas “motores”, carros (muito poucos) e carretas. 

A carreta é uma camionete de carga com adaptações na carroçaria a fim de facilitar a alguns passageiros poderem ir sentados ou agarrados nos saltos contínuos e imprevistos. 

Uma pequena empresa está montada em torno deste negócio, que todos os dias percorre estes difíceis caminhos de montanha. Logo de manhã, nos sítios do costume, vêm-se mercadorias, pessoas e animais que esperam a chegada do desejado transporte. À sua chegada tudo se apronta para carregar os seus pertences, com calma e descontração natural. Na paragem que me foi dado presenciar até houve tempo para convidar o condutor a beber o café. E ninguém se chateia porque aqui ninguém tem pressa. 

Reparamos então que havia um passageiro dificílimo, que não quereria viajar daquele modo: um porco já carregado e atado dentro de um saco conseguiu safar-se da carga, saltando e fugindo pelos espaços adjacentes. Era um festival de riso, com tanta gente atrás do porquinho que não conseguiu os seus objetivos. Foi recolocado no seu lugar com vigilância redobrada.

A carreta partiu para Liquiçá, sem saber ao certo a que horas chegará. Porque o imprevisto pode acontecer: um furo, árvores de grande porte caídas nos caminhos, resvalos, patinagens, etc... Talvez daqui a cinco horas possa chegar ao seu destino. É difícil, mas é assim.

Regresso a Dili

Chegou o dia de descermos da montanha. Combinamos a companhia, eu com o Eustáquio e o Gaspar com o Zé, e por volta das dez horas ajeitam-se as trouxas, ligam-se os motores e aí vamos nós. 

Pelo menos três horas de caminho nos separam de Ailok Laran, o nosso destino. Sabemos que vamos chegar todos partidos, mas a força interior supera a força física. “Que força é essa, que força é essa?” cantamos nós, lembrando a canção do Sérgio Godinho.

O inesperado acontece. Devido ao mau jeito da mala que transportava a exposição “Lameta” num dos buracos difíceis de contornar, a moto resvalou e, quase adivinhando o que nos iria acontecer, fomos ao chão. 

Alguma preocupação de quem estaria aleijado, mas pronto nos apercebemos de que nada de grave tinha acontecido. Umas dores no cotovelo e pulso direito, uns arranhões leves e toca a levantar do chão, que foi das coisas mais custosas devido ao peso da mochila e ao corpo mal ajeitado que me vai suportando. 

Deu para tudo: apreensão, risos, comentários, etc, etc... Tenho pena que o Eustáquio, pela primeira vez na sua vida tenha deixado ir a mota ao chão. Eu fui em parte o grande culpado. Espero que me perdoe.

Por volta das treze horas chegamos finalmente a casa, onde o almoço já nos esperava. A seguir, nada como um bom descanso, que este corpinho já meio gasto bem agradece.

(C0ntinua)

(Título, seleção de excertos, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P25794: Parabéns a você (2296): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350/72 (Guileje, Gadamael, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74)

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Nota do editor

Último post da série de 30 de Julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25791: Parabéns a você (2295): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico da CCS / BCAÇ 2930 e CCAÇ 6 (Catió e Bedanda, 1970/72); Júlio Costa Abreu, ex-1.º Cabo Comando do Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66) e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Caçador Paraquedista da CCP 121 / BCP 12 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 30 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25793: Blogoterapia (314): Conversas improváveis sobre a guerra (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)


Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > Destacamento do Mato Cão > 1973 > O Alf Mil Op Especiais, Joaquim Mexia Alves, posando com um babuíno (macaco-cão) mais o Braima Candé (em primeiro plano), tendo na segunda fila, de pé, o seu impedido, o Mamadu, ladeado pelo Manga Turé.
Foto (e legenda): © Joaquim Mexia Alves (2006). Todos os direitos reservados.



CONVERSAS IMPROVÁVEIS SOBRE A GUERRA

Tens saudades da guerra???
Não, claro que não!

Então?
Não, não tenho saudades da guerra, mas de quando em vez instala-se uma espécie de nostalgia, uma qualquer coisa inexplicável, que me leva até àquele tempo, àqueles lugares, sobretudo àqueles que comigo estavam e sentiam a mesma tensão, o mesmo perigo e, por vezes até, o mesmo alheamento.

Mas o que significa isso?
Não sei, não consigo explicar. É como se por momentos ali quisesse estar outra vez, não debaixo de fogo, claro, mas vivendo aquele constante sentimento de insegurança que nos tornava mais perto uns dos outros.

Então não são realmente saudades da guerra?
Não claro que não! Como poderia ter saudades de algo que é destrutivo, que mata, que nos torna por vezes quase indiferentes.

É estranho isso.
Sim, eu sei que é estranho, que é inexplicável, mas a verdade é que o sinto por vezes, e isso torna-me nostálgico, uma tristeza quase calorosa, que me transporta para aquele calor, aqueles cheiros, aquela terra vermelha, aquele pulsar de vida que se via na natureza, constantemente.

São então recordações boas?
Não direi que são boas recordações, embora algumas delas o sejam, mas um misto de verdade, de realidade, de sentimento onde não há fingimento.

Não há fingimento?
Sim, pelo menos eu nunca me coibi de chorar quando sentia vontade de chorar, nem de rir quando tinha vontade de rir. Era apenas eu, talvez um pouco imberbe a ser curtido pela vida, mas a descobrir em cada momento um novo alento, um novo querer viver, um novo respirar.

E de tudo isso o que mais te impressionava?
Sei lá eu bem! Ver gente diferente de mim, mas que eu sentia e vivia como meus irmãos de armas. Costumes diferentes, falas diferentes, sentires diferentes, mas que se extinguiam quando chegava o momento de todos sermos um. Sentir que podia contar com eles e que eles podiam contar comigo.

E a guerra? O mato, os tiros, os ataques?
Graças a Deus foram relativamente poucos. No início vivia-os como momentos de incredulidade, ou seja, pensava como era possível alguém querer matar-me ou eu poder matar alguém. Depois eu, que sou um nervoso constante, ficava numa calma que não sei explicar e fazia o que tinha a fazer. Finalmente vinha o alívio quando tudo acabava.

Então é disso que tens saudades?
Não, nem pensar! Tenho saudades, se assim lhes posso chamar, do depois e dos momentos em que nos juntávamos para conversar, para dizer coisas, por vezes sem sentido, para nos rirmos, para criticarmos, enfim, para nos unirmos em torno da situação que vivíamos.

Voltavas para a guerra?
Com a minha idade, com certeza que não sou preciso. De qualquer modo, se o país mo pedisse, não teria dúvidas em fazê-lo. Mas, melhor do que isso, haveria de lutar primeiro para que nunca se chegasse a uma situação de guerra, porque a guerra nunca resolve nada. Apenas faz vítimas e alimenta ódios.

Estás em paz?
Sim, em relação à guerra estou em paz, embora de vez em quando os “fantasmas” desse passado me visitem e incomodem, mas acabo sempre por encontrar o bem maior que é a fé cristã que me alimenta e faz viver no dia a dia.

Marinha Grande, 30 de Julho de 2024
Joaquim Mexia Alves

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Nota do editor

Último post da série de 23 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25103: Blogoterapia (313): Irmãos de armas (Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P25792: Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal (Excertos) (Jaime Silva) - Parte I: Maçaricos, periquitos, checas...



SILVA, Jaime Bonifácio da - Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar : uma visão pessoal- In:  Artur Ferreira Coimbra... [et al.]; "O concelho de Fafe e a Guerra Colonial : 1961-1974 : contributos para a sua história". [Fafe] : Núcleo de Artes e Letras de Fafe, 2014, pp. 23-84.




Fafe > Monumento aos combatentes da guerra colonial, inaugurado em 5 de novembro de 2005. Foto: Artur Coimbra (2012) (*)
   

1. Já reproduzimos, em tempos, o prefácio do Mário Beja Santos a esta obra de autores vários (Artur Coimbra, Artur Magalhães Leite, Daniel Bastos, José Manuel Lajes e Jaime Bonifácio da Silva) e que serviu de base à sua apresentação pública, em Fafe, em 12 de dezembro de 2014 (**).

Uma louvável iniciativa de um concelho onde foram mobilizados cerca de 1500 jovens para a a guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial. E desses perderam a vida 41:  16 em Angola, 14 em Moçambique e 11 na Guiné, segundo as listas publicadas pelo Jaime Silva (Angola, pp. 44/45; Guiné, pp. 58/59; e Moçambique, pp. 62/63).

Vamos reproduzir, por cortesia do autor,  alguns excertos do  extenso estudo do Jaime Silva, na parte sobretudo que diz respeito a: ((i) introdução e contextualização (pp. 25-39); (ii)  mortos do concelho de Fafe, e nomeadamente no TO da Guiné, incluindo alguns testemunhos recolhidos pelo autor  (pp. 39-84).



Jaime Bonifácio Marques da Silva (n. 1946): (i)  foi alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970/72); (ii)  tem uma cruz de guerra por feitos em combate; (iii)  viveu em Angola até 1974; (iv)  licenciatura em Ciências do Desporto (UTL/ISEF) e pós-graduação em Envelhecimento, Atividade Física e Autonomia Funcional (UL/FMH); (v)  professor de educação física reformado, no ensino secundário e no ensino superior ; (vi) autarca em Fafe, em dois mandatos (1987/97), com o pelouro de cultura e desporto; (vii) vive atualmente entre a Lourinhã, donde é natural, e o Norte;  (viii) é membro da nossa Tabanca Grande desde 31/1/2014; (ix) tem 84 referências no nosso blogue.


Contributo para o estudo da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar – Uma visão pessoal   Excertos ]  

Parte I: Maçaricos, periquitos, checas... (pp. 25-39)

por  Jaime Silva


1. Resumo


A realização do II Curso Livre de História Local de Fafe, sob a temática “O concelho de Fafe e a Guerra Colonial (1961-1974)”, realizado entre 24 de outubro e 21 de novembro de 2013, foi uma excelente oportunidade para se evocarem os cinquenta anos do início da guerra (4 de fevereiro de 1961) e os quarenta anos da Revolução de Abril de 1974, que lhe colocou um ponto final.

Os jovens de Fafe, como todos os jovens de Portugal, foram, igualmente, obrigados a contribuir para o esforço da Guerra e, alguns deles, doaram à sua Pátria o seu bem supremo: a própria vida. Desde o soldado atirador Artur de Sousa, o primeiro a morrer em Angola, a 3 de junho de 1961, ao 1.º cabo José Pereira Dias, o último a tombar na guerra, a 27 de setembro de 1975, também em Angola, mais de mil e quinhentos jovens de Fafe passaram por um dos três teatros de operações em África.

O objetivo da minha comunicação terá como preocupação prioritária dar a conhecer o enquadramento e as circunstâncias da participação dos militares de Fafe, particularmente dos que morreram no decorrer da sua comissão de serviço em África. 

Para o efeito, fundamentar-me-ei nos processos individuais de alguns deles, que consultei no Arquivo Geral do Exército, no testemunho pessoal de outros combatentes ou de suas famílias e na minha vivência pessoal nesta guerra em Angola, enquadrado nas tropas paraquedistas. [...] 

 
Depois, apresentarei documentos e testemunhos que nos dão a conhecer as diferentes formas de participação de um grupo de militares de Fafe no decorrer da guerra e, finalmente, referir-me-ei às ações desenvolvidas no concelho de Fafe no âmbito da “evocação da memória” da Guerra Colonial.

Agradeço à Direção do NALF (Núcleo de Artes e Letras de Fafe) e à Câmara Municipal de Fafe a oportunidade que me deram de poder contribuir com algumas pistas para aqueles que, melhor do que eu, dominam o conhecimento nesta área, a da História de Portugal, e tenham a intenção de vir a investigar o percurso dos jovens de Fafe que foram obrigados a combater em África, entre 1961 e 1974.


2. Introdução

A Guerra de África, Guerra do Ultramar ou Guerra Colonial   [...]  desenrolou-se entre 1961 e 1974 em África, em três teatros de operações diferentes: Angola (1961), Guiné (1963) e Moçambique (1964).

Estão a decorrer, portanto, os cinquenta anos do início de uma Guerra que entrou pela porta das famílias portuguesas sem ser convidada. Lembro, a este propósito, o comentário feito pelo Dr. José Lino Barros, um dos participantes no Curso de História Local, durante a sessão de 31 de outubro:

 "Na minha casa, como na casa de muitas famílias, rezava-se o terço à noite e evocava-se, em intenção particular, Nossa Senhora, para que livrasse os nossos filhos da guerra do Ultramar. Eu teria talvez sete anos".  [...] 

Do concelho de Fafe perderam a vida durante o conflito 41 jovens: 16 em Angola, 14 em Moçambique e 11 na Guiné.

Poderemos interrogar-nos hoje, meio século volvido após o início da guerra, da oportunidade de resgatar, sob o ponto de vista histórico, a memória daqueles que foram obrigados a fazer a guerra, sacrificando, muitos deles, a sua própria vida em nome de Portugal.

Pensamos e acreditamos que esta evocação histórica tem todo o sentido e justifica-se. Acreditamos que o resgate da memória das causas, consequências e incidências vividas pelos combatentes participantes nesta guerra, e neste caso particular, pelos naturais do concelho de Fafe, é um ato de cidadania e deverá ser uma obrigação das instituições governamentais a nível nacional, regional e local.  [...] 
 
Será este, também, o meu propósito: o de não fazer esquecer as consequências do flagelo da Guerra Colonial e de lutar contra a cultura do esquecimento que se instalou em Portugal após o final da Guerra Colonial contra aqueles a quem Portugal tudo exigiu.


3. Enquadramento da minha intervenção – questão prévia


A “pesquisa histórica” exige rigor e objetividade na análise e descrição dos factos históricos, se queremos conhecer e compreender com objetividade os fatores políticos, sociais, militares, económicos e religiosos, entre outros, que justificaram e suportaram a Guerra Colonial durante catorze anos.

Procurei, por isso, na revisão da literatura algum suporte que sustentasse, orientasse e justificasse o caminho que decidi tomar nesta modesta pesquisa que iniciei há algum tempo para abordar o tema da participação dos militares de Fafe na Guerra do Ultramar.

Segundo o historiador António José Telo (2007, p. 11), a História é uma explicação, e continua, a História nunca está acabada e não existe uma obra definitiva sobre qualquer assunto, tanto mais que, quando fazemos a História de um período recente, ainda “não temos o distanciamento” bastante dos acontecimentos e as fontes disponíveis são muito parciais. (…). Falta outro tipo de fontes essenciais: os estudos e documentos centrais onde a decisão se baseou, que ainda não são públicos; as memórias, testemunhos, sínteses e elaborações posteriores, que demoram anos e décadas a surgirem, se é que surgem.

Face às exigências que o processo de investigação exige nesta área, deparo-me, por isso, com uma dupla dificuldade. 

A primeira será de nível académico. Não sou um investigador na área da História e, sobretudo, não sou um observador neutro da Guerra Colonial, uma vez que participei nela, sempre no “gastalho”, e não é fácil deixar as imagens e as emoções de lado. 

A segunda refere-se às limitações do tempo histórico. Já passaram cinquenta anos do início da guerra e quem testemunha e relata os factos reais vividos já tem dificuldades de memória, emociona-se, ainda tem medo em relatar alguns momentos menos felizes, perdeu ou destruiu os documentos. [...] 

A sustentabilidade dos factos históricos narrados, analisados e inseridos por mim no texto fundamentar-se-á nas seguintes fontes: 

(i) na documentação que consultei no Arquivo Geral do Exército (ao abrigo do Dec. Lei n.º 46/2007 de 24 de agosto; 

(ii) na bibliografia consultada, em suporte papel ou audiovisual;

 (iii) nos testemunhos, relatos e documentos pessoais que muitos dos combatentes de Fafe ou as suas famílias fizeram o favor de me ceder; e

( iv) e na minha participação e vivência durante a comissão de serviço que prestei no Norte e Leste de Angola como comandante do 3.º Pelotão da 1.ª Companhia do BCP21 (Batalhão de Caçadores Paraquedistas N.º 21), sediado em Luanda, entre 8 fevereiro de 1970 e 30 de julho de 1972.


4. A decisão política do Governo de Portugal: “Para Angola, rapidamente e em força”

A documentação disponível permite-nos, hoje, com segurança, perceber algumas das circunstâncias que rodearam e sustentaram a decisão do Governo de Portugal em avançar para a guerra em África, apesar da discordância da corrente dos “militares atlantistas” existente dentro do quadro das Forças Armadas e da pressão da comunidade internacional junto de Salazar, para a evitar. 

Apesar de não ser este o tema do painel em que intervim, gostaria de fazer referência a essas duas questões que considero importantes para melhor se compreender e enquadrar a atividade dos militares portugueses, particularmente dos de Fafe, durante a guerra.

A nível nacional, a documentação comprova que o Governo e os altos comandos militares, no momento em que decidem lançar o país na Guerra, conheciam as reais dificuldades para suportar as duras exigências logísticas para a fazer e para a manter, simultaneamente, em três teatros de operações diferentes, ao nível dos meios humanos, económicos, militares e técnicos.

A nível da comunidade internacional, os documentos dão-nos a conhecer a forma como tentaram convencer e pressionar o Governo de Portugal para avançar com o processo de independência das Províncias Ultramarinas. Na linha da frente estiveram países como a Inglaterra, França, Estados Unidos, bem como a NATO, ONU, OUA, Movimentos Africanos de Libertação (UPA, MPLA, UNITA, FRELIMO, PAIGC), países africanos, asiáticos e a Santa Sé.  [...] 

Pertenço ao grupo daqueles que estão convictos de que os historiadores, em relação à explicação da História da Guerra do Ultramar, poderão, ainda, não ter em seu poder a informação suficiente que lhes permita conhecer, no seu todo, as consequências das estratégias delineadas pelos políticos e Altos Comandos Militares instalados nos gabinetes de Lisboa, Luanda, Lourenço Marques, Beira ou Bissau, mas conhecem, no entanto, com segurança absoluta, dois factos históricos concretos, resultantes da tomada de decisão política de Salazar quando ordena: "Para Angola, rapidamente e em força."

O primeiro facto histórico é que Portugal inicia em 1961 uma guerra em África, cuja decisão política foi da responsabilidade do Presidente da República Almirante Américo Tomás e do governo presidido por Oliveira Salazar, e que este só realizou o reforço da defesa militar das colónias africanas já depois do início dos confrontos, numa defesa tardia, forçada e há muito evitada (Stocker, 2005, p. 254).

O segundo facto histórico, objeto da minha comunicação, é que, a partir de março de 1961, todos os jovens de Portugal chamados a cumprir o serviço militar obrigatório nas fileiras de um dos três ramos das Forças Armadas, e os de Fafe não foram exceção, começaram a ser treinados e mentalizados para cumprirem um único objetivo: fazer a Guerra em África.

Confrontados com esta nova realidade e de acordo com a minha própria experiência na guerra, parece-me muito importante refletir, ainda hoje, sobre o que significou para cada um dos jovens portugueses, que íamos à missa todos os domingos, esta nova experiência de vida: treinar para fazer a Guerra.

Por definição, guerra é um conflito armado cujo objetivo é o esforço dos exércitos em confronto no terreno para conseguir destruir e aniquilar o inimigo. No entanto, a Guerra em África revestiu uma característica especial, uma vez que o Exército português não travou uma Guerra Convencional, mas sim uma Guerra de Guerrilha, caracterizada por uma grande mobilidade das forças, uso de emboscadas, ataques surpresa, ataques rápidos seguidos de fuga, sabotagem e terrorismo, táticas de atrito e confronto indireto (Teixeira, 2010, p. 62).  [...] 
 
Objetivamente, foi para fazer a Guerra (dominar e destruir o inimigo) que o Presidente do Conselho de Ministros António de Oliveira Salazar, dois meses depois dos primeiros incidentes em Angola, a 4 de fevereiro de 1961, ordenou no dia 13 de abril de 1961 aos portugueses: “Para Angola, rapidamente e em força”.

5. O início da Guerra e as consequências imediatas para os jovens portugueses

A realidade, entretanto, já era bem diferente para os militares portugueses:

 "Distante da propaganda oficial, estava a realidade das companhias que seguiam para Angola nesses dias: sem roupas apropriadas para a guerra, com treino ineficaz e armamento ultrapassado, e desconhecedores da realidade da guerra subversiva que os esperava" (Silva, 2011, p. 110).

Teixeira, 2010, p. 21, escreve:

 "No que toca ao armamento utilizado pelos militares as suas características principais são a fraca qualidade e a dispersão de origens, quando não obsoleto. O material bélico português tem basicamente um caráter vetusto e de refugo."   [...] 


Durante catorze anos o fantasma do Ultramar “entranhou-se” nas famílias portuguesas, sem um “ai”, exceto os que deram o “salto”, tal o controlo e a repressão da Polícia Política (PIDE) e da propaganda do regime. 

Nem a vinda dos primeiros estropiados ou dos primeiros mortos foi suficiente para alterar a capacidade de resignação das famílias portuguesas. Povo dócil e subjugado, que atribuía à Providência e à vontade divina o destino dos seus filhos: "Deus mo deu, Deus mo tirou". Paciência. É a sua vontade!

Sobre o soldado português, Teixeira (2010, pp. 26-27), afirma: 

"É um ser pouco marcial, já que treinado à pressa, mal-amanhado, mal armado, mal alimentado e negligenciado pela hierarquia. Obrigado a passar cerca de dois anos e meio, mais do dobro do tempo do soldado norte-americano no Vietname, dentro do arame farpado.

Durante os catorze anos de Guerra Colonial, a rotina para todos os jovens portugueses era sempre a mesma. No ano em que completava 18 anos de idade, devia apresentar-se na Administração do Concelho ou bairro, durante o mês de janeiro, para tratar da sua inscrição no recenseamento militar. 

Depois de “ir às sortes” (junta de recrutamento militar) e uma vez “apurado para todo o serviço militar”, o mancebo era chamado no ano seguinte para “assentar praça”, sendo incorporado numa das unidades pertencentes a um dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha ou Força Aérea) e iniciava o seu primeiro período de instrução militar, a recruta. Esta tinha a duração de três meses e, no final, o recruta fazia o “Juramento de Bandeira”. 

Perfilado na parada com os seus camaradas de curso, na posição de sentido, a arma na posição de “ombro arma” e de braço direito estendido, era-lhe solicitado que, bem alto, declarasse: 

"Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida."

Após o Juramento de Bandeira, o soldado iniciava um segundo ciclo de instrução militar específica, designado por “especialidade”. Esta variava de acordo com o ramo das Forças Armadas onde iria prestar serviço: Exército (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Transmissões), Marinha ou Força Aérea. 

Cada ramo dispunha, ao tempo da guerra colonial, de “Forças Especiais”: Companhias de Comandos, no Exército; Regimentos, Batalhões e Companhias de Paraquedistas na FAP;  e Destacamentos de Fuzileiros (equivalentes a Companhias) na Marinha. 

Existiam ainda os vários corpos de Polícias que, no âmbito das Forças Armadas, controlavam o pessoal militar. A PM (Polícia Militar), orgânica da Arma de Cavalaria; a Polícia Naval (PN) constituía a polícia militar da Marinha e organizava-se como Unidade de Polícia Naval (UPN) na dependência do Comando do Corpo de Fuzileiros; e a PA constituía a polícia militar da Força Aérea.

As piores “especialidades” eram as de combate (as que nos atiravam para o mato), sobretudo a de “atirador” (a minha especialidade), e tanto fazia sê-lo de infantaria (a minha arma), como cavalaria ou artilharia .

Às especialidades que não eram de combate, dificilmente os filhos do “zé-povinho” tinham acesso e eram, quase sempre, vocação dos “filhos família” afetos ao regime ou com grande “cunha” (consta que esta área deu azo a um negócio chorudo, aliás, como o “safar” o pessoal da tropa ou do Ultramar).

O objetivo dos dois períodos de instrução a que o mancebo era sujeito, como é evidente, visava dotar os militares de capacidades que lhes permitissem suportar e desempenhar com êxito as missões de combate ou de apoio que lhes seriam conferidas durante a sua Comissão de Serviço em África, ou seja, matar os guerrilheiros que lhes faziam frente e destruir-lhes todos os meios de sobrevivência (acampamentos, culturas, habitações, contactos com as populações dos aldeamentos que os apoiavam, capturar e destruir o armamento, etc.).

Concluída a especialidade, o soldado era dado como “pronto” (“nosso pronto”, era assim designado) e após ser mobilizado para o Ultramar era sujeito, finalmente, a um último “apronto”, recebendo a guia de marcha para Unidade Mobilizadora.

Uma vez nesta e juntamente com os outros militares vindos dos vários centros de instrução, os graduados e os comandantes davam início à formação da sua nova unidade: o seu Batalhão  
 [...]  ou Companhia Independente, aos quais já tinha sido atribuído um número de código. 

Este último período de preparação era designado por IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) e tinha como objetivo principal organizar a viagem do pessoal para o Ultramar. 

Era a fase de tomar as vacinas, dar os últimos conselhos sobre o que fazer em África para sobreviver, afinar e treinar a especificidade da sua especialidade e das tarefas que cada um iria desempenhar e responsabilizar-se na orgânica do seu Batalhão, Companhia, Pelotão ou Secção durante os dois anos de duração da sua Comissão. 

No final deste período, o militar recebia as últimas vacinas, o camuflado e, por fim, a unidade estava pronta, constituindo esta a sua grande família que o acompanharia durante todo o seu percurso no Ultramar, desde a partida para África ao desembarque, de novo em Lisboa.

Ainda na Unidade Mobilizadora e após chegada a ordem de embarque, o batalhão formava na parada do quartel

O capelão (que entretanto se juntara ao contingente) rezava uma missa campal; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; as tropas desfilavam ao som da música Angola é nossa.

Nesta altura, era concedida a licença de dez dias antes de embarque. O militar ia a casa, despedia-se da família (alguns casados e com filhos), e voltava à Unidade Mobilizadora (alguns não regressavam, porque decidiram dar o “salto”) para daí iniciar verdadeiramente a viagem rumo a África. 

Primeiro, embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho de ferro mais próxima. Na estação, quase sempre de noite, o contingente embarcava num comboio especial em direção a Lisboa. O navio que os iria levar estava atracado e as famílias apinhavam-se nas varandas da gare marítima com lenços de acenar e lágrimas da despedida.

Em direção ao barco, a tropa voltava a desfilar, agora em continência perante um alto representante militar, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha a distribuírem lembranças. 

Chegava o momento do embarque. Subiam-se as escadas e arrumava-se a bagagem junto ao beliche armado nos porões, transformados em casernas. Depois, voltava-se ao convés e, por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirene apitava, a instalação sonora tocava a marcha intitulada Angola é nossa

O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte Salazar deslizava diante da Torre de Belém e fazia-se ao mar rumo ao objetivo. [A ponte sobre o Tejo começou a construir-se em 5 de novembro de 1962 e foi inaugurada em 6 de agosto de 1966. (LG)]

Durante a viagem, comia-se a céu aberto sentado no convés, local onde nos dias calmos se jogava às cartas, se recebia alguma instrução sobre o destino, tiravam-se fotografias e procedia-se à cerimónia da praxe, a pretexto da passagem do Equador.

Entretanto, chega-se ao objetivo. Era o tempo de refazer as malas e do desembarque. Nova formatura, agora ao calor desconhecido de África, um desfile e um discurso. 

Depois, a partida para um campo militar, o Grafanil, em Luanda, o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem o Norte de Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques até à Beira, Nacala ou Porto Amélia.

 A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão.

Chegados a África, os jovens militares, enquanto não tivessem o seu primeiro batismo de fogo, eram alcunhados pelos “velhinhos” por “maçaricos” (Angola), “periquitos” (Guiné) ou “ checas” em Moçambique e, uma vez instalados na sua nova unidade, situada algures no meio do nada, rapidamente verificavam que a realidade e os factos demonstravam que na Metrópole não tinham sido treinados e mentalizados para fazer ação psicológica junto das populações africanas, como, por exemplo, lançar bombinhas ou balões de S. João, dar santinhos com a figura de Sto. António ou de nossa Senhora de Fátima, andar com os “pretinhos” ao colo ou ensinar-lhes a ler e a escrever Angola é Portugal, mas que tinham sido mentalizados, instruídos e treinados para fazer a guerra  [...] 

(Continua)
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Referência bibliográficas:

Silva, J. (2011). 1961 - O ano que mudou Portugal. Porto Editora. 

Stocker, M. M. (2005). Xeque-Mate a Goa. Ed. Temas e Debates

Teixeira, A., A. (2010). A Guerra de Angola – 1961/1974. Edição Quidnovi.

Telo, A. (2007). História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Actualidade, Vol. I., Editorial Presença.


(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, parênteses retos com reticências:  LG)


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Notas do editor:

(*) Informação reproduzida, com a devida vénia, no blogue de Artur Coimbra, Sala de Visitas do Minho > 3 de julho de 2012 > Viagem pelos Monumentos da cidade de Fafe (VIII) > Monumento aos combatenets da guerra colonial

(...) "Da iniciativa da Delegação de Fafe da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra, e em especial do activista Jaime Silva, o Monumento aos Combatentes da Guerra Colonial foi inaugurado em 6 de Novembro de 2005.

Localizado no jardim central da Avenida do Brasil, o monumento tem a assinatura da escultora Andreia Couto e consiste numa estátua em bronze, representando um soldado equipado conforme os militares portugueses operavam nas antigas colónias, em cima de um pedestal, de forma quadrangular, nos lados do qual se inscrevem os nomes dos 37 soldados fafenses que morreram na guerra.

O objectivo é exactamente prestar homenagem aos jovens oriundos deste concelho que tombaram para sempre ao serviço da Pátria nos confrontos que decorreram entre 1961 e 1974 nas províncias de Moçambique, Angola e Guiné.

A Câmara de Fafe contribuiu com 15 mil euros para que a associação conseguisse concretizar o sonho – que vinha já de 2001 – de erguer o memorial aos mortos da guerra colonial, orçado em cerca de 20 mil euros. As juntas de freguesia também colaboraram nesta iniciativa". (...)


Guiné 61/74 - P25791: Parabéns a você (2295): Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Médico da CCS / BCAÇ 2930 e CCAÇ 6 (Catió e Bedanda, 1970/72); Júlio Costa Abreu, ex-1.º Cabo Comando do Grupo Centuriões (Guiné, 1964/66) e Victor Tavares, ex-1.º Cabo Caçador Paraquedista da CCP 121 / BCP 12 (Guiné, 1972/74)



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Nota do editor

Último post da série de 29 de Julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25787: Parabéns a você (2294): Manuel Francisco Seleiro, 1.º Cabo DFA Ref do Pel Caç Nat 60 (S. Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25790: Para bom observador, meia palavra basta (5): Complementar os dizeres do aviso... "É PR...MAR. | "N...NG."


 
Angola > Luanda > 1963 > Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias;  em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (estes três últimos já falecidos). No aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG / CTIG. O primeiro grupo de Comandos do CTIG, sob o comando do alf mil Saraiva, participaria depois na Op Tridente (jan-mar de 1964). Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil, Gr Cmds ‘Panteras’ (*).

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. É verdade que, para meio observador, meia palavra basta (*) ? Se sim, aqui fica um passatempo de verão..

Caros leitores: depois de uma análise atenta da foto (e legenda) acima, ajudem a completar os dizeres do aviso afixado na parede que as pernas do  fur mil Artur Pereira Pires encobrem parcialmente:

"É PR...MAR | N...NG"

Dão-se... "alvíssaras"|

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 20 de junho de2024 > Guiné 61/74 - P25665: Para bom observador, meia palavra basta (4): Partidas e chegadas... no Cais da Rocha Conde de Óbidos (Fotos do álbum de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), comandnate da TAP reformado... e pai da "prquens (em 1964) Pula Cristina

Guiné 61/74 - P25789: Notas de leitura (1713): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Lars Rudebeck foi uma presença constante na Guiné depois de 1976, a ele se devem alguns dos melhores ensaios da bibliografia nórdica sobre a Guiné-Bissau. O seu trabalho de campo assentava em Kandjadja Mandinga, a cerca de 30 quilómetros de Farim e a 10 do Olossato. Ele começa por analisar se houve uma alteração substancial depois do golpe de 14 de novembro de 1980 na política económica, concluindo que o golpe em si não trouxe grandes mudanças, eram as mesmas pessoas nos postos principais da hierarquia do Estado; o agravamento do défice, contudo, em 1982, obrigou a Guiné-Bissau a pedir ajuda ao FMI e ao Banco Mundial, o COMECON, liderado pelos soviéticos, já não podia abonar mais ajuda. E resume a essência do que foi o plano de estabilização e do ajustamento estrutural, projetando-o nessa aldeia de Kandjadja, onde ele procede a trabalho de campo, deixamos para o próximo e último texto as implicações políticas e socioculturais, o PAIGC vai desvanecer-se, a sua presença é cada vez mais diminuta nas profundezas do mato, cada povoação trata de si, a inflação foi impiedosa, como o desemprego e o gradual desmoronamento da saúde e da educação. Que as novas gerações de guineenses reflitam como se passa do heroísmo e da extinção do colonialismo para uma deriva que em determinado momento pretende encontrar recursos na exploração de uma rota da droga.

Um abraço do
Mário


Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista:
Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (2)


Mário Beja Santos

Entro numa loja de comércio justo ligada ao CIDAC, à procura de uma publicação sobre Cabo Verde e encontro a tradução portuguesa de um documento de que há muito ando no encalço: o que representou o ajustamento estrutural em três países africanos de língua portuguesa que foram insurgentes (esclarecedor documento de Kenneth Hermele) e a profunda análise que Lars Rudebeck faz do que significou o ajustamento estrutural numa aldeia a cerca de 100 quilómetros de Bissau, foi matéria de um seminário que decorreu na Universidade de Uppsala em maio de 1989, organizado por AKUT.

Do admirável ensaio de Kenneth Hermele falou-se no número anterior. Dá-se agora a palavra a Lars Rudebeck e ao seu habitual rigor e qualidade ensaística com o título “Ajustamento Estrutural numa Aldeia Oeste Africana”, no caso concreto Kandjadja–Mandinga, a pouco mais de 100 quilómetros de Bissau, a caminho de Farim. O sociólogo sueco começa por abordar o fim da primeira fase da independência da Guiné-Bissau observando que o golpe de 14 de novembro de 1980 em si não significou grandes mudanças, visto que as mesmas pessoas continuaram a ocupar os postos principais na hierarquia do Estado e também as condições estruturais objetivas de desenvolvimento continuaram a ser as mesmas. Continuou a estagnação política, os desequilíbrios económicos agonizaram-se, a chamada “crise da dívida” foi alvo de programas de estabilização e ajustamento impostos e apoiados pelo FMI e pelo Banco Mundial. Nos final de 1982 adotou-se o Programas de Estabilização Económica, a implementar nos dois anos subsequentes e em 1987 vigorou o chamado Programas de Ajustamento Estrutural, planeado para continuar durante a década de 1990.

O primeiro programa implicou uma reorientação da estratégia oficial do desenvolvimento, que tinha tido até então inspiração socialista, dava ênfase ao planeamento e controlo estatais através de um setor público forte que exigia um excedente agrícola que nunca se verificou e que se supunha que iria financiar as indústrias de substituição de importações. É facto que houve aumentos de produção agrícola, mas a Guiné-Bissau continuava bastante abaixo da autossuficiência, dependente de altíssimas importações de arroz e da ajuda alimentar das Nações Unidas. E assim nasceu um programa de ajustamento estrutural drástico que tinha como objetivo reduzir o défice da balança de transações correntes, o défice do setor público e estimular setores produtivos da economia. Os meios adotados eram duríssimos: desvalorizações, manipulação dos preços mínimos ao produtor agrícola, aumento do preço dos serviços de saúde pública, liberalização e privatização do comércio externo, controlo firme dos salários dos funcionários públicos.

A mudança mais visível na Guiné nos finais da década de 1980, foi dada pela presença de vários bens de consumo nas lojas e mercados. Só uma parte muito pequena dos novos créditos obtidos se destinou à produção, o número de donos de propriedades privadas de tamanho médio aumentou cerca de dez vezes, o mesmo quer dizer que uma certa oligarquia do partido do PAIGC obteve créditos de modo a poder ver o seu magro salário aumentado com receitas provenientes da produção privada; caiu a produção industrial, agravaram-se as condições de vida, foi inegável o preço social pago especialmente pelos assalariados urbanos que viram o seu poder de compra drasticamente reduzido, pelos funcionários públicos despedidos, pelas crianças sem possibilidade de obter material escolar e também não podendo ir à escola. Pressupunha-se que as populações rurais pudessem tirar vantagem destes programas de estabilização, mas observa o autor que os aumentos dos preços ao produtor não conseguiram manter-se a par com a inflação. E perante este quadro, Rudebeck que desde 1976 seguia o desenvolvimento socioeconómico e político da aldeia de Kandjadja, voltou ao estudo, fez trabalho de campo: como é que a população estava a reagir, como se podia avaliar o bem-estar rural no quadro do desenvolvimento nacional?

As novas políticas instituídas até 1986 levaram ao encerramento do Armazém do Povo, passo para a privatização da economia. E porquê estudar Kandjadja? Justifica: “Não existe nenhuma aldeia, como tal, que seja estatisticamente representativa de alguma coisa para além de si própria. Kandjadja partilha muitas características com centenas e milhares de outras aldeias guineenses e africanas, subsistindo nas franjas do mercado mundial, apesar de nele integrada, sob a jurisdição de um Estado que a população considera ter decrescente legitimidade.”

Dá-nos a situação da aldeia, não muito longe do rio Farim, na terminologia do PAIGC era uma subsecção da secção administrativa de Olossato. A população corta e queima a floresta para poder cultivar os seus produtos na terra vermelha. A distância a pé até à estrada que liga Farim com Bissau é de cerca de 20 quilómetros, foi reconstruída em 1988/89 através de um programa gerido pelo Governo e financiado pela Suécia, a etnia predominante é a mandinga. Vejamos agora alguns elementos da sua vida económica durante o ajustamento estrutural.

A população de Kandjadja vive da produção agrícola e da criação de gado, a economia do amendoim era relevante. Depois da independência, o nível técnico dos meios de produção aumentou pouco, apareceram arados, algum fornecimento de semente por parte do Governo. Manteve-se a subsistência nas culturas para alimentação (arroz, milho preto, mandioca) e vegetais (feijão, cebola, pimento, etc.) para consumo local, mas a um nível de subsistência baixo. Vender em Bissau era extremamente complicado, para chegar à capital andavam-se 12 quilómetros a pé e depois apanhava-se uma kandonga. O único aumento significativo foi no gado – as vacas representam riqueza. Rudebeck procura fazer a contabilidade aos preços pagos pelo produtor, houve deterioração nos termos de troca, a inflação devorava tudo. E o Armazém do Povo? Fechou na sequência das linhas políticas de privatização. Após o encerramento, a loja mais próxima era em Olossato, a cerca de 10 quilómetros a sul de Kandjadja. Aumentou o comércio não oficial com o Senegal, muitos produtos chegavam à povoação através dos djilas.

Houve um comerciante que trespassou o Armazém do Povo, era um antigo empregado. “Durante o período em que a loja era privada, ela estava muito melhor abastecida do que nos últimos anos da gestão pública e em 1988 não se podia ouvir na aldeia quaisquer críticas sobre a privatização.” O novo dono passou a comprar o amendoim, os privados compram o amendoim para em seguida o vender à empresa estatal de exportação. Esta mudança de relações não teve resultado em nenhum aumento de produção. Iremos agora abordar as implicações políticas e socioculturais do ajustamento estrutural em Kandjadja.

Kenneth Hermele
Lars Rudebeck

(continua)
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Notas do editor:

Post anterior de 22 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25770: Notas de leitura (1711): Aqueles anos horríveis do ajustamento estrutural, fim do sonho coletivista: Dois ensaios de cientistas sociais suecos, um documento importante de Lars Rudebeck, amigo da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 26 DE JULHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25779: Notas de leitura (1712): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1869) (13) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25788: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão




Foto nº 1A > O sargento do pelotão ostentado festivamente, ao pescoço,  um colar feito de conchas



Foto nº 1 > O sargento do pelotão, posandeo em cima do obus 8.8


Foto nº 2 > Alguns elementos (a maioria guineense) do Pel Art que participou, com fogo de apoio, na Op Trident (jam-,ar 1964). Qiase todos eles ostentam colares de conchas, feitos na ocasião, no "intervalo da guerra".


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > O Pel Art / BAC obus 8.8, comandando pelo alf mil art José Álvaro Carvalho.

Fotos (e legendas): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Angola > Luanda > 1963  >  Em primeiro plano, o fur mil 'comando' Mário Dias, em segundo plano, da esquerda para a direita, o fur mil Artur Pereira Pires, o sold Adulai Jaló e o alf mil Justino Coelho Godinho (estes três últimos já falecidos). No  aeroporto de Luanda à espera de transporte para o QG / CTIG. O primeiro grupo de Comandos do CTIG, sob o comando do alf mil Saraiva, participaria depois na Op Tridente (jan-mar de 1964) (***).   Foto cedida por Vassalo Miranda, ex-fur mil,  Gr Cmds ‘Panteras’

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. O José Álvaro Carvalho é um dos nossos mais recentes "periquitos": entrou para o nosso blogue, no passado dia 26 de junho, sentando-se à sombra do nosso poilão no lugar nº 890 (*). É, todavia, um veterano da Guerra da Guiné:

(i) tem 85 anos, sendo natural de Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, o alf mil art Carvalho acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não podemos precisar a data);

(iii)  foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QCCTIG);

(iv)  irá cumprir mais uns 26 ou 27, no CTIG, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965:

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art / BAC, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras,  na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi)  no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado d Lisboa e tocava guitarra); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra");

(vii) tornou.se  também amigo do então alferes milicianos  'comandos'  
Justino Coelho Godinho e Maurício Saraiva (já falecidos),  quando se estavam a organizar os Comandos do CTIG;

(viii) o José Álvaro Almeida de Carvalho (seu nome completo) publicou em 2019 o "Livro de C", Lisboa, na Chiado Books (710 pp.)

Mas voltemos às memórias do José Álvaro Carvalho, agora sim, em 1964, destacado  em Catíó,  no BCAÇ 619, 1964/66, com um Pel Art 8.8 a duas bocas de fogo, pertencente à Bateria de Artilharia de Campanha (BAC).  

Este Pel At participaria em grandes operações np setor de Catió ("Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate"). A  atuação do seu comandante, no campo operacional valeu-lhe,  em 1967, uma Cruz de Guerra de 3ª Classe (*).

Foto acima, à esquerda:  os alferes milicianos José Álvaro Carvalho ("Carvalhinho"), do QG / CTIG (em 1º plano, à esquerda),  e João Sacôto, da CCAÇ 617/ BCAÇ 619, em 2º plano, à direita


Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) (**)


Parte IV: de indisciplinados a bravos do pelotão


− Abra a culatra!

O carregador baixou a alavanca respetiva e a tampa da culatra baixou.


− Alça 6000 jardas!

O apontador rodou a manivela da alça e a parte superior do tubo do obus elevou-se lentamente até a marca da manivela de elevação atingir as 6000 jardas [5 486,4; 1 jarda=0,9144 metros] .

Baixou-se junto à culatra aberta até ver a totalidade do interior do tubo e com uma bússola de espelho apontada no seu centro disse:

− Vá rodando para a direita até eu dizer.

O apontador assim fez enquanto ele com a bússola acompanhou o rodar do tubo e quando ficou centrado nos 95º e 30’ que a bússola marcava, mandou-o parar e fechar de novo a culatra.

Esta era a direção obtida na carta militar (1/25000) que, depois de ter em conta o Norte Magnético, em conjunto com a distância de 6000 jardas, apontavam o obus para a referência nº 1, a primeira assinalada na sua carta assim como na carta do comandante do destacamento de fuzileiros, que ia apoiar, com quem se reunira de madrugada e assinalara as várias referências do percurso que este iria fazer, indicado pelo comando das operações.

Repetiu o mesmo procedimento no segundo obus e ficou à espera de ouvido no rádio, com todo o pessoal a postos: os apontadores sentados no seu lugar junto dos aparelhos de pontaria, os municiadores e ajudantes, junto das munições, com as granadas já fora das respetivas caixas de transporte, sem a proteção da espoleta (uma peça espessa de aço, roscada na sua extremidade) que accionava o detonador após o impacto, só o conseguindo fazer depois do disparo, quando as estrias do tubo lhe imprimissem um movimento rotativo cuja força centrífuga destravava o sistema de segurança.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 1613 (1967/68) e 7º Pel Art / BAC > O obus 8.8. Foto do álbum do nosso saudoso cap SGE ref José Neto (1929-2007), na altura o 2º sargento da CART 1613, que chefiava a secretaria.


Foto: © José Neto (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Os carregadores seguravam com uma mão a alavanca da culatra e com a outra o soquete. Esta peça servia para empurrar a granada para dentro do tubo com força, a fim de que a cinta de cobre macio que a circundava sobressaindo 0.5 centímetros em toda a volta, encaixasse nas estrias em espiral do tubo, para que fosse obrigada a rodar após o disparo. 

Depois de encaixada no seu lugar e ter sido introduzida na culatra pelo municiador, o cartucho de metal com a carga, neste caso nº 2 ( duas saquetas de pano cheias de explosivo com o aspeto de macarrão ) indicadas para os alcances de 4000 a 8000 jardas, era esta fechada por ação da citada alavanca, sendo gritado o aviso de “Pronto!!!”.


Estava no 2º ano do serviço militar em África. O primeiro não tinha sido passado como artilheiro, mas como alferes duma companhia de intervenção, para onde tinha vindo em rendição individual. 

Na altura essa companhia já tinha um ano de serviço em África e, quando após mais um ano acabou a comissão e se retirou para a metrópole, ficou a aguardar funções no Quartel General (QG) oferecendo-se para o grupo de comandos, em formação nessa altura, por já conhecer as condições duras e difíceis do mato e parecendo-lhe preferível entrar em operações arriscadas mas ter a sede na capital e o consequente conforto.

Entretanto o QG requisitou um alferes artilheiro para comandar um pelotão de soldados africanos com dois obuses de 88mm, e quando menos esperava, foi parar ao Sul a comandar esse pelotão, operando como independente, junto dum batalhão de cavalaria.

Os soldados, indisciplinados, deram-lhe algumas dores de cabeça logo na 1ª operação e as coisas só começaram a funcionar normalmente com a ameaça de prisão ou mesmo fuzilamento dos mais rebeldes.

Bebiam quase todos demais e na 1ª operação só levou cerca de metade porque os outros bêbados não se tinham de pé.

No dia seguinte a esta operação mandou formar o pessoal e ordenou ao sargento e aos cabos que identificassem e mandassem avançar os mais indisciplinados, após o que os informou de que ia propor o seu fuzilamento por considerar traição a forma como se tinham comportado no dia anterior.

A partir daqui tudo começou a correr melhor, embora o comandante do batalhão onde estava estacionado [BCAÇ 619], t
endo presenciado este discurso, lhe dissesse que a sua ameaça de fuzilamento de soldados, poderia levá-lo a si próprio a tribunal de guerra.

Custou-lhe a compreender porque é que ser duro em campanha era mal visto pelas hierarquias superiores. Parecia-lhe que aquela era uma das poucas situações em que se deveria atuar com firmeza.

Não sendo talhado nem por feitio nem por educação para oficial do exército, tinha ido ali parar pelos desígnios curiosos que o destino tem.

Sempre achou que a dureza dos exércitos só seria útil em situação de guerra e ridícula nas restantes, como a pompa e circunstância das botas a brilhar em tempo de paz, para depois em guerra − a única justificação da sua existência − tudo se tornar ”frouxo como o inglês sem chá”. As guerras são a mais trágica criação do espírito humano, mas quem anda nelas deve cumprir as regras.


Seja como for, no seu pelotão, a consciência de que os erros de um podiam ser pagos por todos e o consequente espírito de equipa e amizade que se foi criando, vieram a torná-lo num dos mais eficientes estacionados em África, tendo sido elogiado em todas as operações em que participou, na sua maior parte de apoio a tropas de infantaria, fuzileiros e comandos.

Para isto contribuíram também algumas mudanças na forma de actuar por ser independente, principalmente no que se refere às pontarias iniciais ( dadas à bússola à revelia dos chefes ) que se revelaram rápidas e muito eficientes a partir de certa altura, pela prática de centenas de tiros disparados.

No que a si se refere, a experiência de que,  à distancia média de 5 kms 
[4572 jardas; 1 jarda=0,9144 metros], um desvio de 200 m [182,88 jardas], representava uma alteração de pontaria de cerca de 1º no mesmo sentido, que extrapolava rapidamente para outros alcances, permitia-lhe dar rapidamente aos apontadores as alterações de pontaria a efectuar por cada tiro a disparar, de acordo com os pedidos dos comandantes das unidades em contacto com o inimigo, a qualquer distància normal, conseguindo assim uma rápida resposta às necessidades das tropas que apoiava.

Ás vezes, em situações mais delicadas dava as pontarias a partir dum pequeno avião que lhe era fornecido pelo QG com o respetivo piloto e que aterrava e levantava facilmente numa área plana, sem mata só com erva a que se chamava pomposamente aeroporto e se situava perto do quartel 
[Catió]. Op Nestes casos quando no ar o avião estava constantemente a ser metralhado pelo inimigo. não podiam voar muito alto e, como sabia pelas tabelas de tiro com os habituais descontos +- 10 %, o tempo que as granadas levavam para atingirem o objetivo, assistia em geral ao seu rebentamento.

(Continua)

(Revisão/fixação de texto, título, negritos, parênteses retos: LG)


2. Informação adicional sobre   a Op Tridente (Mário Dias)(***)


Na Operação Tridente foram envolvidos numerosos efectivos, divididos em 4 Agrupamentos.

  • Agrupamento A: (Cmdt Major Cav Romeiras) > CCAV 487 (Cap Cidrais) | 7º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten R. Pacheco)
  • Agrupamento B: (Cmdt Cap Cav Ferreira) > CCVA 488 (Cap Arrabaça) | 8º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Alpoim Calvão)
  • Agrupamento C: (Cmdt Cap Cav Cabral) > CCAV 489 (Cap Pato Anselmo)
  • Agrupamento D: (Cmdt 1º ten fuz Faria de Carvalho) > 2º Dest de Fuzileiros Especiais (1º ten Faria de Carvalho)
  • Agrupamento E: (Cmdt Cap Aires) > CCAÇ 557 (Nota: salvo erro, este agrupamento fazia a segurança imediata da Base Logística)

Outras Forças:

  • 1 Grupo de Combate / BCAÇ 600
  • Grupo de Comandos (20 homens) (Cmdt Alf Saraiva)
  • 1 Pelotão de Paraquedistas
  • 1 Pelotão de Caçadores Fulas
  • Pelotão de morteiros / BCAÇ 600
  • 2 Bocas de fogo de obus 8,8 do BAC (Cmdt Alf Carvalhinho)
  • Equipas de Sapadores (distribuídas pelos vários agrupamentos)
  • Elementos do Serviço de Intendência
  • 73 carregadores indígenas.Tudo somado eram aproximadamente 1000/1200 pessoas.

Estima-se que o PAIGC tivesse 300 combatentes, incluindo alguns militares da Guiné-Conacri.

Comandante das Forças Terrestres: Ten Cor Cav Fernando Cavaleiro. (Cmdt do BCAV 490)

Da Marinha:

  • Fragata Nuno Tristão.
  • 4 lanchas de fiscalização
  • 4 LDP
  • 2 LDM
Havia ainda várias embarcações civis pertencentes aos Serviços de Marinha da província que transportavam víveres, água e demais material necessário.

Da Força Aérea:

  • Aviões T6 – Aviões F86 – PV2 e PV2-5 (Apoio de combate)
  • Helicópteros Alouette (transporte e evacuações)
  • Aviões Auster e Dornier (transporte e reconhecimento)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25684: Tabanca Grande (560): José Álvaro Almeida de Carvalho, ex-alf mil art, Pel Art / BAC, obus 8.8 m/943 (1963/65) , adido 14 meses ao BCAÇ 619 (Catió, 1964/66): senta-se no lugar nº 890, à sombra do nosso poilão

(**) Último poste da série > 18 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25757: Memórias de um artilheiro (José Álvaro Carvalho, ex-alf mil, Pel Art / BAC, 8.8 cm, Bissau, Olossato e Catió, 1963/65) - Parte III: Desobstruir uma ponte ao km 28 da estrada do Olossato

Guiné 61/74 - P25787: Parabéns a você (2294): Manuel Francisco Seleiro, 1.º Cabo DFA Ref do Pel Caç Nat 60 (S. Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 28 de Julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25783: Parabéns a você (2293): Luís Paulino, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2726 (Cacine, 1970/72)