sábado, 12 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9033: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (16): As cábulas

1. Mensagem do dia 9 de Novembro de 2011, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma das suas histórias e memórias.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (16)

As Cábulas

O exame, escrito e/ou oral, destina-se, regra geral, a aquilatar os conhecimentos adquiridos pelos alunos em determinado período de tempo.
Nas provas escritas alguns alunos tentam – e muitas vezes conseguem – ludibriar o professor transmitindo a noção (falsa) de que têm conhecimento cabal de determinada matéria, quando na verdade a mesma não foi convenientemente estudada e aprendida. Por vezes o aluno, para engendrar e exercitar determinada maneira mais ou menos sofisticada, sempre mais ou menos falível, perde nisso o tempo que seria eventualmente suficiente para estudar adequadamente a mesma matéria; no entanto conseguir uma vitória sobre o professor sem queimar as pestanas será sempre um prazer gostoso, mesmo que efémero, a ter em conta. Trava-se aqui uma espécie de luta semelhante à que se verifica entre a doença e os inventores e/ou fabricantes de medicamentos. A doença surge, ataca o paciente e os antídotos vão sendo inventados por vezes com atrasos significativos ou mesmo tremendamente dilatados. Também aqui “o corpo é que paga”.

No caso em apreço, já foram inventadas as mais variadas formas de copiar tentando sempre o aluno não ser detectado pelo professor: fórmulas ou dicas escritas na palma da mão; tiras de papel presas com elásticos no interior da camisa ou na manga do casaco (puxa-se o papel e quando, depois do uso, o largamos o elástico encarrega-se de o recolher, de imediato e sem deixar rasto, ao seu esconderijo); livro ou caderno debaixo do casaco ou da capa e tantas outras.

Mais ou menos em 1960, dois irmãos, um do 5.º ano e outro do 7.º, inventaram e puseram em prática um sistema invulgar de emissores e receptores para assim “levar a carta a Garcia”. Durante o exame, o mais velho instalou-se no castelo de Lamego; o mais novo fazia a prova escrita de Matemática no liceu local. No seu posto o mais velho recebia as perguntas da prova transmitidas pelo mais novo; preparava a resolução e emitia-a para a sala onde decorria o exame; o mais novo à medida que ia recebendo a transmissão ia passando a mensagem ao papel. O estratagema parecia infalível.

Mas... há sempre um “mas”!
Um vendedor de aparelhos eléctricos ouviu no seu rádio aquela estranha conversa: algarismos, incógnitas, etc.

Coisa estranha, pensou ele! Apressadamente conseguiu passar ao papel uma boa parte do que ia ouvindo.
Deslocou-se ao liceu a perguntar se sabiam do que se tratava. Rapidamente se aperceberam que estava ali a resolução duma expressão algébrica do ponto de Matemática do 5.º ano.

Logo dois professores foram enviados a todas as salas para descobrir o que estava a acontecer. Descoroçoados, já pensavam dar-se por vencidos quando um reparou que determinado aluno tinha um grande penso anormal numa orelha.
- É um “leicenço”, diz o aluno, deveras surpreendido com o que estava a acontecer-lhe.
Não lhe passava pela cabeça que alguém tivesse descoberto a sua ardileza; entendeu que o motivo seria outro, bem diferente.

Pedem a comparência dum enfermeiro para retirar aquele “invólucro” de algodão sem “molestar” o aluno. Envolto no penso, incrivelmente, encontrava-se um receptor; no pulso do aluno disfarçado pelo relógio havia um emissor.
O Reitor ordenou, sem mais delongas, que os dois alunos fossem reprovados. Naqueles tempos os alunos do 5.º ano faziam exame escrito de manhã e os do 7.º ano de tarde.
O Ministério, porém, devido à engenhosa invenção, determinou que a ambos fosse facultado repetir excepcionalmente os seus exames.

E o comerciante de aparelhos eléctricos?
Caiu nas más graças do povo de Lamego; ninguém entrava na sua loja para comprar o quer que fosse e até o insultavam na rua; fechou a loja!

Vou agora relatar um extraordinário caso teatral, ocorrido em Coimbra em 1962/63 no qual eu participei, não sendo o actor principal.

Certo dia, depois de jantar, apareceram na casa onde eu morava, duas moças que pretendiam falar comigo. Entrámos os três numa sala pequena e, depois de dois dedos de conversa, uma manifestou o que pretendia.
Eu não as conhecia. A que falou era também universitária da Faculdade de Letras mas, pela praxe, era “doutora” do 4.º ano.
Eu era apenas um semi-puto, qualificação “praxística” dos alunos do 2.º ano ou repetentes do 1.º.

Aquela moça tinha História do Teatro como cadeira de opção pela qual eu tinha optado no 2.º ano. Não me lembrava de ter visto aquela “doutora” pela praxe coimbrã nas aulas da Dra. Maria Helena da Rocha Pereira que leccionava com muita qualidade, sabedoria e exuberância aquela cadeira. Aquela senhora era extremamente culta e transmitia na perfeição o que sabia aos seus alunos; grande lente!

Alguém informou aquela colega que eu era possuidor de bons apontamentos sobre a matéria daquela disciplina e ela pretendia que eu lhos emprestasse. Respondi afirmativamente mas teria de mos devolver no dia x. Eu ia fazer nesse dia uma prova escrita e iniciaria no mesmo dia a preparação do exame de História do Teatro.

No dia e hora aprazados, quando saí da sala, a colega esperava-me ali. Conversámos um pouco. Em vez de me devolver os apontamentos, ela sugeriu que eu estudasse com ela, em sua casa, porque ainda não tinha conseguido estudar o suficiente; na verdade mal teria olhado para os ditos apontamentos!
Na tarde desse mesmo dia iniciámos a nossa tarefa; começámos logo a falar de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e outros, divagando sobre a obra de cada um.

Cedo me apercebi que a colega não apresentava as condições psicológicas necessárias para se concentrar na matéria que nos propúnhamos estudar.
A meio da 1.ª sessão, bebericando um chá que ela muito amavelmente ofereceu, fui informado que ela era casada e o marido, devido a complicações políticas e/ou militares, estava detido no Presídio de Penamacor. Boa malha! Senti-me espartilhado! Estava metido numa camisa de sete varas! Mas, afinal, não era nada comigo!
Continuámos a nossa árdua tarefa com interrupções apenas para comer e dormir.

Na véspera do exame escrito ela comunicou-me que, no anfiteatro onde se realizaria a prova, ela tentaria colocar-se perto de mim para usufruir do meu apoio, caso fosse necessário.
Eu fiquei mesmo à beira dum estreito corredor; ela, não sei como, conseguiu sentar-se do outro lado do mesmo corredor inclinado (anfiteatro).

No lugar da Dra. Rocha Pereira, por impedimento desta, um padre ainda jovem foi destacado para assistir ao exame (vigiar); passeava constantemente a toda a largura da sala, olhando atentamente para os alunos de vários ângulos.

A certa altura a colega pediu-me apoio para determinada pergunta: numa folha A5 escrevi os tópicos da resposta; dobrei a folha e, quando o padre se afastava de nós, lancei-a na direcção da colega; ela tentou apanhá-la mas o objecto do crime poisou nos degraus do corredor. O padre olhou e viu o papel no chão; voltou-se rapidamente e começou a subir os degraus para o apanhar, qual gato preto tentando atracar um distraído ratinho indefeso.

Com uma presença de espírito assinalável a colega afastou a perna direita para o corredor (“escanchou-se” como comentávamos mais tarde) puxou a saia, já de si curta, bem para cima, exibindo ousada e descaradamente a sua atraente coxa ao padre. Este, supondo tratar-se de obra de Belzebu ou de outro qualquer infernal demónio tentador, deu meia volta apressadamente e continuou o seu percurso a toda a largura da sala.

Ela, num ápice, apanhou a cábula, recompôs-se e... o perigo já tinha passado.
Eu “deixei cair tudo” mas a custo recuperei e recoloquei “tudo” no lugar devido.
O rascunho ajudou-a q.b.; fomos ambos à oral. Passámos!

Muitas vezes recordámos aquela teatralidade; afinal estudávamos História do Teatro!
Não fora o atrevimento, a ousadia , o descaramento da colega (estávamos no princípio da década de 60 do século passado) e o padre teria apanhado o objecto do crime. Se tal acontecesse, ambos seriamos convidados a fechar a porta... por fora... e não haveria prova oral para nós! Felizmente para ambos aconteceu o que nos convinha.

Que os alunos do secundário e até universitários usem e abusem destes métodos não é aconselhável nem é de louvar... mas aceita-se tendo em conta a juventude e as inerentes matreirices dos académicos.
Que indivíduos que concluíram já os seus cursos, persistam em actos semelhantes quer em teses ou em doutoramentos ou mesmo em concursos para obter um lugar para o exercício de determinada profissão é absolutamente execrável, abominável.

Neste jardim (só para alguns) à beira-mar plantado, em caso muito recente, passado entre juristas, depois de muito titubear, optou-se pela anulação do concurso sem qualquer punição para os prevaricadores. Deplorável! Vergonhoso!

Mais recentemente uma Universidade Alemã retirou a uma “doutora” ali formada o título académico que lhe haviam conferido porque afinal ela tinha mostrado saber o que na verdade não “sabia”. Ocupava um alto cargo na C.E.

Lisboa, 09 de Novembro de 2010
Belmiro Tavares
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8937: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (15): Os desenfianços no Colégio Militar

1 comentário:

Anónimo disse...

Mal informado.
O comerciante de Lamego (Fausto Marques) que pôs o reitor do liceu a ouvir a emissão, continuou de loja aberta por muitos anos (até falecer) e a gozar da estima dos conterrâneos.
Armando Teixeira