1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Maio de 2012:
Queridos amigos,
Para que conste, os dois volumes das obras escolhidas de Amílcar Cabral, pelo critério experiente de Mário Pinto de Andrade, estão esgotados.
Trata-se de uma antologia que garante um conhecimento dos dotes invulgares de Cabral como pensador revolucionário, estudioso, conferencista e cientista, por um lado, e autor de notícias, palavras de ordem, mensagens, improvisos e textos curtos da mais variada índole.
Tudo escrito em português de primeira água, a sua comunicação de que tanto se orgulhava, a língua que ele deu como indiscutível para unir os povos que quis libertar.
Um abraço do
Mário
Obras escolhidas de Amílcar Cabral
Beja Santos
Trata-se, sem margem para dúvida, de uma seleção representativa do pensamento e da atividade militante de Amílcar Cabral, uma escolha feita por Mário Pinto de Andrade, um amigo e um intelectual de indiscutível mérito que conheceu o líder do PAIGC como poucos outros dirigentes africanos: “A arma de teoria, unidade e luta” e “A prática revolucionária, unidade e luta II”, ambos os volumes editados pela Seara Nova, em 1977 e 1978. Obra infelizmente esgotada e não se compreende a sua reedição. O leitor interessado no pensamento de Cabral tem disponível a antologia “Documentário” organizada por António Duarte Silva e editada pela Cotovia, em 2008, a preço muito acessível.
No primeiro volume, Mário Pinto de Andrade selecionou escritos da juventude, textos relacionados com o trabalho que Cabral desenvolveu num recenseamento agrícola da Guiné, em 1953, seguem-se textos incontornáveis como o material de divulgação de uso internacional aqui intitulado “A dominação colonial portuguesa”; depois procede-se a uma sumula dos trabalhos sobre a estrutura social da Guiné, os princípios do PAIGC e a prática política, as lições positivas e negativas da revolução africana, textos indispensáveis para se perceber a preocupação de Cabral com o unitarismo numa paisagem de fracassos consecutivos; os textos “A arma da teoria” revelam o pensador brilhante e também, para que dúvidas não houvesse, uma certa ligação ao leninismo; e, por último, as suas considerações, por vezes fulgurantes, sobre o conceito de libertação nacional e cultura.
Se o leitor me pedisse opinião sobre o que é de todo imprescindível conhecer deste pensamento e com base nas escolhas de Mário Pinto de Andrade, recomendaria sem hesitar “A dominação colonial portuguesa", texto escrito em inglês com o pseudónimo de Abel Djassi, que apareceu em Londres em Junho de 1960; “A arma da teoria” o famoso e controverso discurso que pronunciou em Havana, em 6 de Janeiro de 1966; e “A cultura nacional” conferência pronunciada na Universidade de Syracusa, EUA, em 20 de Fevereiro de 1970. Aqui nos quedamos, por uns instantes.
“A dominação colonial portuguesa” é um libelo explicativo do que move os movimentos de libertação nas colónias portuguesas. Cabral começa por pôr na mesa os argumentos enunciados pelo regime de Salazar como os direitos históricos, a missão de civilização, a assimilação, a unidade nacional e depois rebate-os ponto por ponto, usando argumentos muito caros à corrente principal, à escala mundial, que advoga a descolonização. Tome-se a situação social, como ele a descreve: "99,7 % da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada não civilizada pelas leis coloniais portuguesas e 0,3 % é considerada assimilada. Para que uma pessoa não civilizada obtenha o estatuto de assimilada, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar do nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à europeia, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever corretamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50 % da população não teria direito ao estatuto de civilizado ou de assimilado". É uma argumentação contrastante, cortante, como vai aparecer no trabalho forçado: “Na Guiné, em Moçambique e Angola existe o trabalho forçado para os trabalhos públicos. Mas nestes dois últimos países estende-se também às companhias privadas. Todos os anos são alugados 250 mil angolanos para as plantações, sociedades mineiras e empresas de construção. Todos os anos 400 mil moçambicanos são submetidos ao trabalho forçado; entre eles 100 mil são exportados para as minas da África do Sul e das Rodésias. Henrique Galvão, um ex-inspetor da administração colonial, declarava que a situação atual é pior do que a criada pela escravatura”. Depois do quadro explicativo, enuncia as suas pretensões: “Nós, africanos das colónias portuguesas, lutamos contra o colonialismo português, para defender os direitos do nosso povo. Exigimos que Portugal siga o exemplo da Inglaterra, da França e da Bélgica e reconheça o direito dos povos que domina à autodeterminação e à independência. As organizações africanas anticolonialistas das colónias portuguesas, que representam as aspirações legítimas dos seus povos, querem restabelecer a dignidade humana dos africanos, a sua liberdade e o direito de decidirem do seu futuro”.
O discurso “A arma da teoria” é considerado pelos estudiosos do pensamento de Cabral como uma das suas peças superiores. Dirige-se ao auditório para informar os presentes sobre a situação concreta da luta nas três colónias portuguesas. Para incómodo de uma boa parte da assistência diz coisas como esta “A deficiência ideológica, para não dizer a falta total de ideologia, por parte dos movimentos de libertação nacional, constitui a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo”. E introduz um novo conceito da luta de classes, de acordo com o prisma africano, lembra a quem o ouve o que é o modo de produção e como se estão a processar as transformações na estrutura social. E certamente perante um auditório já confuso com tanto anátema à vulgata marxista-leninista fala sobre o papel da pequena burguesia como o dinâmico impulsionador da vanguarda da consciência revolucionária e profere: “A pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento, identificar-se com as classes trabalhadoras. Isto significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence”.
“A libertação nacional, ato de cultura” é outro expoente do seu pensamento. Associa a libertação nacional a um ato de cultura. Como observa, o colonizador nega o processo histórico do colonizado, é o colonizador que determina o modo de produção. Este modo de produção representa o resultado da pesquisa incessante de um equilíbrio dinâmico entre o nível das forças produtivas e o regime de utilização social dessas forças. E aqui a história é também cultura. E escreve: “A cultura, seja quais forem as características ideológicas ou idealistas das suas manifestações, é um elemento essencial da história de um povo. É talvez a resultante dessa história como a flor é o resultado de uma planta. Como a história, ou porque é a história, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas e o modo de produção. Mergulha as suas raízes no húmus da realidade material do meio em que se desenvolve e reflete a natureza orgânica da sociedade, podendo ser mais ou menos influenciada por fatores externos. Se a história permite conhecer a natureza e a extensão dos desequilíbrios e dos conflitos (económicos, políticos e sociais) que caracterizam a evolução de uma sociedade, a cultura permite saber quais foram as sínteses dinâmicas, elaboradas e fixadas pela consciência social para a solução desses conflitos, em cada etapa da evolução dessa mesma sociedade, em busca de sobrevivência e progresso”.
Deixa-se para o próximo texto um conjunto de referências a documentos mais datados, panfletos, palavras de ordem e as suas derradeiras mensagens.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10061: Notas de leitura (371): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (3) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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7 comentários:
Mário Pinto de Andrade e Amilcar Cabral e muitas centenas ou mesmo milhares de independentistas mereciam ter tido razão.
Mas os "ventos da história" continuaram e não param de contradize-los.
Mário Beja Santos está mesmo na hora oportuna de mostrar as coisas e os pensamentos de Amílcar, e os seus sonhos.
Cumprimentos
Se a ingenuidade,idealismo e até a utopia, pagassem impostos resolvia-se o problema do "défice".
Aqui o caro "colon" A.Rosinha "doutorado" em colonialismo e afins é que podia dissertar sobre este assunto com o seu saber de experiência feito.
Um alfa bravo
C.Martins
Caro Mário Beja Santos, tenho talvez a sorte de ter as obras de A. Cabral mencionadas no teu texto e outras, e mais uns (policopiados) publicados antes do 25A.
Serve esta intrusão só para dizer o seguinte (de uma forma repetida), que só um desconhecimento e desonestidade intelectual, pode formular semelhantes (des)comentários, aliás produzidos por dois ex-combatentes ou 'africanistas' de serviço permanente a este Blogue, para comentar tudo que tenha cariz anticolonialista ou que aborde qualquer pensamento critico ao mesmo. Mais uma vez e sem mais delongas é notório déficit da capacidade intelectual dos comentários a um Homem que o próprio 'estado novo' o reconheceu com valor intelectual e técnico, assim como ao politico que foi e que apezar de lider de um exérc. de libertação, foi reconhecido como estadista em diversos foruns internacionais. E mais, reconhecido como dirigente máximo de um país que politica e administrativamente já não era reconhecido como colónia portuguesa.
Mas reduzindo os comentários sómente ao texto em presensa, não foi escrita uma só paravra sobre o mesmo. E isso só tem um significado.
Um abraço
Carlos Filipe
ex-CCS BCaç 3872
Pois é Filipe, eu também li em Bissau quase todos os livros de Amílcar e sei o que é que a maioria dos guineenses falam e pensam de Amílcar Cabral.
E até o que pensam dele muitos Caboverdeanos.
Que embora os Caboverdeanos o admirem, mas nem todos lhe batem palmas, pelos seus feitos. (apenas as politicamente corretas)
Talvez eu e tu o reverenciemos mais que os Guineenses e Caboverdeanos.
Poucos africanos perdem tanto tempo com a sua memória como os "reacionários" como eu tuga, e como tu "progressista".
Há menos guineenses e angolanos desiludidos por causa de ideias minhas do que com as ideias de Mário Pinto de Andrade e de Amílcar Cabral.
Filipe, eu não digo que eles tivessem más intenções.
O que digo é que de boas intenções...
Posso confirmar que lutaram muitos "ermons" de Amílcar e de M. Pinto de Andrade ao lado dos tugas e que no entanto também sonhavam com uma independência para as suas terras.
E eles sabiam que aquele processo de Amílcar, não ia apenas levar ao "suicidio da burguesia" guineense, apenas a ia "escurecer" um pouquinho mais.
Um abraço
Mas afinal qual o legado de Amilcar Cabral? O que deixou ele como herança aos povos da Guiné, aos povos de África? Utopias irrealizáveis, tudo datado de um momento da História africana, anos cinquenta, sesenta do século passado.
Quem o assassinou? Os seus próprios homens (ah, pois, e a PIDE...).
Carlos Filipe, MBS, parados na História, (ou ainda a venderem-nos a banha da cobra!...)sempre a acreditar no inacreditável, a aceitar o que nunca funcionou em temos de criação de um homem novo e melhor,de uma sociedade mais justa.
África e a Guiné, o mundo inteiro neste ano de graça de 2012, falam.
Porque é que uns tantos não conseguem ouvir as vozes do mundo real?
Abraço,
António Graça de Abreu
Um mestre, devia ter outra atitude, mais circunspecta, analisando as diferentes realidades, cruzando-as, sistematizando-as, com respeito pela cronologia, pelos factores endógenos e exógenos, como nos indica um Mestre que, não o sendo, não deixava de ser "africanista": "Claro que todas estas coisas encontram explicação na história e na estrutura da sociedade. Um longo passado de escravatura, seguido de formas mais ou menos encobertas de servidão, ajuda a compreender como os pretos passaram da humildade e do servilismo ao ressentimento e a formas brutais e desumanas de o manifestar"- Orlando Ribeiro.
É questão de ponderação, de procurarmos saber, de olharmos o outro com respeito e humanidade, de avaliarmos ou não os nossos erros, em vez de nos arrogarmos da sapiência induzida desde que há domínios, e o preto como objecto a reprimir. Saibam porque é que o sr Norton de Matos, por duas vezes, foi corrido de Angola, a quem causava mau-estar, e porque razões, e logo encontram uma parte do problema. Como se chegou até à actualidade? A explicação também decorre daquelas averiguações, e são coincidentes entre pensadores sérios, da esquerda, como da direita.
JD
Só para dizer o seguinte:
Tenho e LI a maioria dos textos publicados de AMÍLCAR CABRAL com o seu pensamento político.
Considero que foi um "pensador politico" brilhante, assim como não ponho em causa a sua capacidade intelectual e técnica e cientifica como agrónomo.
Vi em Bafatá um busto em sua homenagem completamente abandonado, e miúdos a urinar na base do monumento.
Questionados sobre se sabiam de quem era aquele busto, não faziam a mais pequena ideia.
A história comprovou que foi um idealista e até ingénuo,o que não o diminui em nada como figura histórica.
Quanto ao meu défice de capacidade intelectual..é verdade..sou muito limitado.
Ah..também sou muito ignorante..
Quanto à desonestidade intelectual..bem aqui não admito..poderia responder-lhe da mesma forma, mas não o vou fazer, porque não insulto aqueles que têm ideias diferentes das minhas.
Sou também "africanista" e principalmente muito "povo guineense".
C.Martins
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