1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Qualquer passeata pelo Google à procura de gramáticas e dicionários da língua crioula é uma agradável surpresa. O crioulo e o seu primeiro dicionário foram objeto do estudo paciente daquele que terá sido o primeiro investigador da língua, nativo da Guiné, o admirável investigador padre Marcelino Marques de Barros, que foi Vigário-Mor da Guiné e morreu em Portugal, muito velhinho. Quanto mais oiço o crioulo mais orgulho tenho na nossa língua e nas dádivas de comunicação que ela permitiu ao longo dos séculos. Diga-se o que se disser, é aquele crioulo que dá os fundamentos à identidade guineense, é uma das matrizes do seu caráter enquanto país independente.
Um abraço do
Mário
Desvendar alguns segredos do crioulo da Guiné-Bissau
Beja Santos
O crioulo guineense é uma língua veicular, um meio de encontro de povos e de culturas. É uma língua simples, concreta mas com exuberâncias e algum fogo-de-artifício. Um padre missionário decidiu estudá-la e cedo apurou que o crioulo estava longe de ser uma língua portuguesa mal falada; igualmente apurou que havia uma enorme incapacidade de apreciar as derivações e as divergências fonéticas e lexicais com a língua portuguesa. O trabalho do padre Luigi Scantamburlo começa por procurar as raízes deste crioulo. Segundo o estudioso padre Marcelino Marques de Barros, “Os povos Mandingas, de Dandu, os Colincas de Geba, Farim e Casamansa, e alguns Beafadas, foram os primeiros a conhecer e a crioulizar a língua da gente branca, numa altura em que ninguém aprendia línguas, mas somente o vocabulário”.
Historicamente está demonstrado que os colonizadores portugueses começaram a fixar-se ao longo do rio de Farim durante o século XVI e Cacheu foi construído em 1587-1588, era um posto comercial para transações com o interior do país. Outro estudioso, Raymond Wood, observa que “Os colonizadores portugueses tinham como objetivo a europeização da cultura africana. Este objetivo falhou, contudo, e os portugueses é que foram absorvidos pela cultura e maneira de vida africanas… por volta de 1620, os portugueses eram quase todos indistinguíveis dos residentes africanos ao longo da Gâmbia”. É nestes ambientes que se vai formar e falar o crioulo, em Cacheu, Geba, Farim, Bafatá e Bissau. Há especificações do crioulo, pode considerar-se que o de Bissau e Bolama é o mais completo seguindo-se o de Cacheu e São Domingos e o de Bafatá e Geba. Obviamente que a massificação do crioulo, a partir da independência, falado nos meios de comunicação social está a gerar uma normalização e a perda de aspetos típicos da língua.
O crioulo é praticamente a língua nacional da Guiné. Sobre o fenómeno emitem-se vaticínios, há quem sugira que as novas gerações irão falar o português dentro de algumas décadas. Mas a opinião mais generalizada é a de que o crioulo numa perfeita continuidade, irá evoluindo e acomodar-se à língua portuguesa, e aderir às suas regras gramaticais. Recorde-se que não existe um sistema oficial de escrita da língua crioula. O contributo do padre missionário com este livro foi exatamente o de procurar ajudar a resolver situações anómalas de que a gramática e dicionários revelam. Daí o autor apresentar um esquema da fonologia e ortografia crioulas. O crioulo tem 22 consoantes, 2 semivogais e 9 vogais. O acento não tem regras fixas em alguns vocábulos, há vocábulos com acento na última sílaba, outros na primeira.
Sendo uma língua também com expressão gutural, a letra h funciona como uma nasal entre duas vogais (luha em crioulo, lua em português, luhada em crioulo, luar em português). Há sons típicos como tchikeru (chiqueiro) ou chicotia (chicotear), o que vem adoçar o fonema. Em suma, temos uma fonologia própria que é indispensável conhecer para falar corretamente o crioulo. Quanto à ortografia, o autor refere fonemas como o k que se deve ler c (a letra k adotada no alfabeto das outras línguas africanas.
Passando para a morfologia, o autor destaca que muitos dos elementos do crioulo derivam da estrutura do português, reduzindo a flexão das palavras e suprimindo os artigos, por exemplo. A estrutura sintática parece mais simples em comparação com o português (um exemplo dado pelo autor: nós encontramos alguém a chorar (português) que se diz em crioulo "nó contra cu alguin i na tchora").
Após apresentar estes aspetos elementares da fonologia e ortografia, da morfologia e da sintaxe, o autor socorre-se do conjunto de textos para comparar o português com o crioulo. É exatamente do texto Criason di Mundu (Criação do Mundo) que se destaca um exemplo retirado do génese bíblico: “No princípio a terra estava misturada com a água. Não havia forma nenhuma, tudo estava na escuridão e o espírito de Deus pairava sobre a água”, que se escreve em crioulo: “Na cunsada terá e staba tudu iacasidu cu iagu. I ka temba nin uma forma nin nada. Tudu i sta scuru, i Spíritu di Deus i ta ianda riba di iagu”.
E por fim temos um dicionário português-crioulo guineense que é apresentado como uma primeira ajuda para iniciação do estudo mais profundo do crioulo. Aparecem cerca de 4 mil vocábulos que o estudioso recolheu entre Maio de 1975 e Dezembro de 1976 com a ajuda de professores e amigos em Farim, Bubaque e Bafatá. Rapidamente nos é dado a perceber que a maioria do léxico do crioulo provém da língua portuguesa com alterações fonéticas (orlodju, relógio; montia, montear ou caçar). Há vocábulos adotados da língua portuguesa que têm um significado mais rico no crioulo (pecadur é pecador mas também pessoa; fidju é filho ou filha mas também fruto ou cria). Na formação dos vocábulos, o crioulo emprega sufixos e prefixos, tal como na língua portuguesa (sinhu é o diminutivo zinho; ndadi é dade, para indicar estado ou situação e dis é des, para indicar negação). Há vocábulos que são derivados das línguas africanas da Senegâmbia (badjuda é rapariga; bulanha é arrozal; nhinhi é rir). O crioulo tem plasticidade, acolhe novos vocábulos da língua portuguesa e adapta-os (elicópter é helicóptero; guerrilha é comum para as duas línguas; independénsia é independência). O autor volta a citar observações de Marcelino Marques de Barros quanto à pronúncia do crioulo, isto num trabalho de 1902: “A pronúncia pode dizer-se sem exceções é muito branda e muito suave, tanto ou mais que no italiano: menos dura nas consoantes e menos viva nas vogais; e tão fluente e tão dúctil que, na conversação animada mal se destaca uma sílaba de outra sílaba, o que muitas vezes também acontece nas próprias palavras”.
Posto isto, o autor abalança-se ao dicionário e lá encontramos as muitas semelhanças e as muitas dissemelhanças: abalo é trimidura; abelha é baguera; aborto é dizmantchu; achincalhar é fasi mangason; adobe é dubi; ágil é lestu; barbaridade é salvazaria; boquiaberto é impasmadu; capitão é capiton di barcu ou capiton di tropa. E ficamos por aqui, está criada uma área de interferência, confrades como o Cherno Baldé ou o Nelson Hebert podem entrar na conversa e espraiar ricos ensinamentos sobre esta língua que o português ali deixou e o guineense moldou. Porque esta língua, venha ou não um dia a plasmar-se no atual português, é produto de um encontro de séculos, é o nosso património comum.
Aproveito para recomendar uma visita ao Google, o padre Luigi Scantamburlo aparece com regularidade quando se procura “Dicionário Crioulo Guineense Português”, há lá edições da Colibri, partes de dicionário de que se pode fazer download, etc.
Boa viagem até ao nosso querido crioulo, onde xarope se escreve charopi, Xícara, chicra e Zanga, raiba.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10383: Notas de leitura (403): Relatório do Conselho Superior de Luta ao III Congresso do PAIGC (1977) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Pois, Mário, gostei muito de ler este texto.
Por exemplo:"É uma língua simples, concreta mas com exuberâncias e algum fogo de artifício". Engraçado o modo de dizer.
Também não entendo e já o escrevi aqui - porquê escrever o som C com K?
Outro aspecto que referes (citando quem refere...) é o "acrioulamento" de palavras de um português (quase)arcaico, talvez dos tempos iniciais da colonização e que ficaram; são vários os que mencionas.
Há um aspecto que esqueces(?) é a influência de vocábulos franceses, que TERIAM FORÇOSAMENTE que existir. Exemplos: sanju ou sandju (singe), bô ou bo (vous), etc.
Um abraço
Alberto Branquinho
Não sei qual o resultado de uma tentativa para criar uma gramática e regras para fazer do crioulo uma língua, não sei se seria considerada nacional.
Nos anos 80 tinha o apoio da Suécia que funcionava quase como ministério da educação no governo da Guiné.
Não se notava grande entusiasmo pela ideia entre o povo, e mesmo não se ouvia políticos a fazer muita força.
Até dava a sensação que os suecos insistiam mais nessa ideia do que os próprios guineenses.
Aliás, nos anos 80 e 90 o crioulo e o português não eram usados como linguas de comunicação entre os governantes e o povo.
Quando os ministros, secretários e presidentes de comité iam ao interior fazer discursos ou esclarecimentos, reuniam o povo local, e usavam um tradutor para repetir na lingua local o que o político dizia em crioulo.
Talvez com a televisão e rádios locais hoje esteja mais assimilado o crioulo do que há uns anos atraz.
Parece que em Caboverde as ilhas não se entendem na maneira de uniformizar o crioulo.
Parecia que ia ser tudo tão fácil!
Cumprimentos
Caro Mário B. Santos,
Gostei da explanação, aceito o convite, mas deixo para o Nelson Herbert e outros tertulianos mais habilitados a imcumbência de abrir alguns dos segredos que contém o crioulo da Guiné ou o crioulo no espaço lusófono em geral.
De facto, existem no crioulo (não necessariamente Guineense ou Cabo verdiano) muitos mistérios ainda por desvendar. Por exemplo, achei muitas semelhanças entre o crioulo que se fala na Guiné ou na ilha do Santiago e um certo crioulo que existiu ou existe num dos antigos territorios portugueses da India (Goa ou Damão).
Voltando a Guiné, uma expressão bastante curiosa e que demonstra a dinámica interna na evolução das linguas é "badjuda" que é a junção do verbo auxiliar ir/estar (n´bá) e ajudar (djuda) ou seja aquela que vai/vem/está a ajudar, que trabalha para outrem sem esperar compensação salarial.
Assim sendo, o uso da expressão estaria associado ao aparecimento dos centros urbanos (praças) e das familias/residencias crioulas e a necessidade de apoiar-se ou albergar membros das familias do interior (irmãs ou sobrinhas das tabancas) ou de contratar serviçais para trabalhos domésticos, as "Badjudas".
Concordo, também, com o A. Branquinho sobre a possibilidade de existir a influência de outras linguas por causa das trocas comerciais feitas por franceses, alemãos e outros, mas neste caso, penso que seria dentro das proprias linguas nativas, como o caso da lingua fula onde podemos encontrar muitas expressões francesas (table, chemise, pantalon, etc.).
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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