1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (10)
Minas na Estrada
O “Mister Hóstia” foi baptizado com este nome, por
dois motivos. Primeiro, porque andava sempre com uma
bíblia pequenina, daquelas de bolso, na mão, e segundo,
porque era parecido com determinado treinador, a quem
chamavam Mister qualquer coisa, de uma equipa de futebol
da capital de Portugal que nessa altura era muito popular e
algo conhecida na europa.
Era muito religioso e na caserna onde dormia com os outros
militares, não perdia oportunidade de recitar e cantar partes
dessa mesma bíblia, por horas, até o mandarem calar ou algum
companheiro, mais afoito, lhe arremeçar com um travesseiro.
Uma vez, o Curvas, alto e refilão, até lhe queria mandar com
um banco, feito de madeira de uma caixa de munições, ao mesmo tempo que lhe dizia na sua linguagem rude e malcriada:
- Ou te calas com essa merda, ou parto-te já este banco nos
cornos!
Quem o salvou foi o Trinta e Seis, baixo e forte na
estatura, que se intrometeu e disse ao Curvas, alto e refilão,
com ar grave e decidido:
- Quanto mais velho estás, mais bruto te tornas. Cala-te e
vê se ouvindo isto purificas a tua alma.
Ao que o Curvas, alto e refilão, logo responde:
- A Alma, uma merda. A minha alma, se é que isso existe, já
está no inferno, desde que a desgraçada da minha mãe me
abandonou quando era criança.
Pois o Curvas, alto e refilão, não tinha família, tinha sido
abandonado pela sua mãe, que diziam andava “na vida”. Era
oriundo de uma aldeia da Estremadura, andou primeiro encostado
a uns vizinhos que lhe davam de comer, e dormia num palheiro
desses mesmos vizinhos. Depois já mais crescido, meteu-se à
estrada caminhando e estendendo a mão, pedindo comida aqui e
ali, roubando fruta e outras coisas, até que veio parar à capital,
talvez à procura da mãe. Na capital, conviveu com rapazes da
rua, alguns nas mesmas condições, sem qualquer família, começou
a usar uma caixa de engraxar sapatos por mais ou menos oito
horas, pois a referida caixa pertencia a uma espécie de
“sindicato”, entregavam tanto pelo seu aluguer, tanto fazia que
trabalhassem ou não, e entre eles diziam:
- Esta caixa não tem escovas boas, da próxima, quando for
levantá-la ao “sindicato”, quero a “número cinco”, é mais alta e
tem escovas das novas e boas.
Portanto a referida caixa era uma peça de ferramenta que
trabalhava vinte e quatro horas por dia, mas em diferentes mãos,
tal como se fosse um táxi, de uma importante empresa.
O seu corpo alto e curvado para a frente, donde lhe veio o
nome Curvas, talvez fosse derivado a ter cescido, durante anos,
curvado, trabalhando na caixa de engraxar sapatos. O Curvas
usava a referida caixa, mais ou menos das dez da noite até às
seis da manhã, em zonas pouco recomendáveis a uma criança da sua
idade, como por exemplo, em frente e dentro de bares que
estavam abertos toda a noite, em frente a casas de prostituição,
em ruas mal iluminadas, mas que tinham movimento àquela hora, e
em outros locais, pouco recomendáveis, pelo menos como já
dissemos, a uma criança. Daí a sua linguagem reles.
Passado uns anos sabia como roubar uma carteira num bolso
dum casaco ou dumas calças, sem o dono se aperceber, como pedir
esmola a um turista em francês ou inglês, sabia os locais na
capital onde a vida lhe era mais fácil, sabia os sintomas e como
podia vigarizar uma pessoa chegada recente à capital, vendendo-lhe
a “Estação do Rossio”, enfim, tinha a escola da rua. Claro que pouco a pouco, conforme aumentava os seus conhecimentos
naquele ambiente de rua, também aumentava a sua ficha na
esquadra da polícia, pois, por dezenas e dezenas de vezes foi
apanhado na hora certa, mas no local errado. Quando chegou a
altura em que as autoridades pensaram que ele tinha a idade, recomendaram-lhe que se deveria apresentar num quartel da cidade para cumprir a tropa. Assim fez.
Recebeu o tal treino de como defender-se e saber matar, que
ele já sabia de cor e salteado. Foi defender a sua mãe Pátria,
pois a mãe verdadeira, abandonou-o e “andava na vida”, dormindo
todos os dias em camas diferentes, levando beijos, que no lugar
de carícias eram mordidelas de escorpião, e carícias no seu
corpo, que em lugar de atitudes de amor, eram apertões, que lhe
deixavam marcas negras em todo o corpo, de pessoas desesperadas,
que se queriam servir dela por uns minutos, e quando passavam a
boca pelo seu corpo, pensavam que estavam a comêr um bife de uma
vaca com carne de boa qualidade.
O Curvas, alto e refilão, não
mais soube dela, se hoje a visse, não a reconhecia, pois talvez
já estivesse a morrer com a doença de sífilis, que naquele tempo
não perdoava, ou tivesse sido atirada ao rio Tejo, por não ter
cumprido, com as regras do seu “chavalo”, que lhe dizia, com a
boca a cheirar a tabaco e álcool de fraca qualidade, com as
unhas tratadas, mas cheirando mal por todos os poros do seu
corpo, pois o seu banho, era o perfume de qualidade baixa, que
comprava aos ciganos, às vezes nem comprava, era o troco dos
favores das “garinas” que tinha por sua conta, e com os olhos,
sem qualquer brilho, postos nos seus, pensando que via na sua
frente, uma vaca leiteira, que lhe devia de dar uns tantos
litros de leite ao dia, lhe dizia, passando na sua cara, umas
mãos, secas e amarelas pelo cigarro que sempre segurava entre os
dedos, que a protegia, e que ninguém lhe faria qualquer mal, pois ele, era o seu dono e senhor, e que nessa noite, depois de
trabalhar até alta madrugada, na rua, nos bares, ou num simples
táxi, teria o privilégio, como prémio, de ir dormir com ele, num
reles quarto de umas águas furtadas, que ocupava algumas horas
durante o dia ou da noite, pois esse mesmo quarto, era um local
de trabalho, servindo de ponto de encontro, para o serviço das
suas “garinas”, que mantinha no mercado de prostituição.
Mas enfim, a mãe abandonou-o, talvez quando ele mais
precisava dela, e juntamente com o Cifra, pois foram no mesmo
barco, desembarcaram nesta província do então Ultramar
Português, onde cumpriram a comissão juntos e foram amigos.
Perdoem os leitores se me alonguei, mas todo este relato era
o que o Curvas, alto e refilão, contava ao Cifra, em alguns
momentos, em que lhe vinham algumas lágrimas aos olhos, e se
recolhia, umas vezes sentado no chão, outras, deitado e
encolhido no capim rasteiro, que existia em determinada área do
aquartelamento, não muito distante do centro cripto, e que o
Cifra, vendo-o lá, ia ao encontro dele, e o ouvia, às vezes por
horas.
Depois de lerem este relato, compreenderão melhor algumas
atitudes do Curvas, alto e refilão, em relatos seguintes, onde
ele é o protagonista. Enfim, adiante e continuando, e falando do
Mister Hóstia, que nesta altura, faz parte de uma coluna
militar, que tem que viajar entre duas áreas, no interior norte.
São zonas de combate.
A estrada, de terra batida, por onde vão passar é estreita
e em alguns locais, além de alguma água existe capim e árvores
rasteiras de ambos os lado, que quase a encobre.
É um potencial local para uma possível emboscada, colocação
de minas, ou fornilhos, pelo menos no momento em que podem
transitar viaturas auto.
(A história da acção que se segue aconteceu na região do Oio, a
saída foi de Mansoa e creio que iam a caminho da região de
Mansabá, sendo descrita, logo à chegada ao aquartelamento, pelo
Mister Hóstia e pelo Setúbal juntamente com os
seus companheiros que todos os presentes no dormitório
ouviram. Quando mais tarde o relatório passou pelas mãos do Cifra, que o traduziu em código, para ser enviado
para o comando territorial na capital da província, verificou que pouca diferença fazia do relatado.)
O Mister Hóstia, tal como o Setúbal e o Curvas, pertenciam a
um pelotão de morteiros, já tinham alguma experiência de
combate, e nessa manhã o Mister Hóstia, cheio de fé, pois meia
hora antes de partirem já estava de joelhos, encostado ao
mosquiteiro, em oração profunda, viaja agora com parte de uma
companhia de intervenção, reforçada com alguns soldados
naturais, que normalmente serviam de guias e tradutores,
transportada em viaturas abertas, tipo quatro bancos compridos
no topo da viatura, dois ao meio, de costas um para o outro, e
por vezes dois mais, um de cada lado. A viatura estava coberta
com sacos de areia na frente para sofrer menos com o impacto de
possível rebentamento de uma mina, ou qualquer outro engenho
explosivo. O Mister Hóstia nunca viajou na frente ao lado do
condutor. O seu lugar preferido, nestas situações, era o
segundo a contar de trás, num dos bancos do meio. Nem o
primeiro, nem o terceiro, no segundo é que se sentia mais
confortável.
As viaturas rolavam a uma velocidade muito baixa, talvez dez
ou quinze quilómetros por hora. Devagar, mesmo devagar, era um calor
infernal, um silêncio demasiado calmo. No espaço de segundos a
coluna é flagelada por rajadas de metralhadora, seguida de
forte rebentação. Uma rebentação estrondosa.
O Mister Hóstia, só se lembra de, já no chão, na berma da
estrada, sem capacete de protecção e sem a G-3, mas com os
carregadores à cinta, apalpar a cabeça por diversas vezes, assim como o corpo na procura de sangue, o que felizmente não viu.
Abaixou-se o mais que pôde procurando esconder o corpo.
Com o impacto da rebentação da mina ou qualquer outro
engenho explosivo, na frente da viatura, quase todos os
militares foram projectados e voaram para o chão. O barulho dos
tiros que se seguiu à rebentação, era cada vez mais forte,
vinham das árvores, lá ao longe. A seu lado, um militar, também
já com uma certa experiência, o Setúbal, não parava de dar tiros
na direcção das árvores, despachou todas as suas munições, as
que trazia e as que o Mister Hóstia lhe deu. Passado uns longos
dez a quinze minutos, o som dos tiros fica menos frequente, de
parte a parte, até que terminaram.
Ouvia-se somente gemidos, alguns gritos de aflição e o som
de qualquer coisa a arder, com algum fumo espesso que saía do
que restava da frente da viatura.
O Setubal, levanta-se devagar, olha em volta e deita-se de
novo ao lado do Mister Hóstia. Com as mãos na cabeça, exclama:
- Meu Deus, que desastre.
E tinha sido um desastre. Três mortos e sete feridos,
alguns com balas no corpo. A frente da viatura destroçada pela
rebentação do engenho explosivo, estava trucidada. Do Vouzela,
que era o condutor, e do Madeira, que era o militar que ia a seu
lado, foram recolhidas algumas partes do corpo. Recolheram os
pés, com parte das pernas e parte da cintura, assim como alguma
parte superior do corpo e da cabeça, que estavam protegidos
pelas botas, cinto das cartucheiras e pelo capacete, que
guardaram em dois casacos camuflados que o Setúbal e o Mister
Hóstia despiram. Havia sangue, pedaços de carne humana colados
ao que restava da frente da viatura, era um cenário que fez o
Cifra arrepiar-se e perder a cor da cara, quando o Mister
Hóstia, com as lágrimas nos olhos, e a tremer de emoção, lhe
contou.
Um militar acabou de morrer nos braços do Mister Hóstia, as
suas últimas palavras foram mais ou menos isto:
- Mister Hóstia, vou morrer, diz ao Cifra, meu amigo que
mande todas as minhas coisas, mais aquilo que ele sabe, para a
minha família em Portugal, que era de onde eu nunca devia ter
saído.
Estas palavras, foram ditas devagar, aos soluços e com uma
bondade nos olhos, que o Mister Hóstia não mais pode esquecer.
O Mister Hóstia, ainda lhe disse:
- Não morres nada, pois não tens qualquer ferimento.
Mas a sua cara tombou para o lado e morreu. Este militar
não mostrava qualquer ferimento à vista no corpo, mas ao
virarem-no de costas, viram sangue e descobriram uma bala
alojada nas costas, um pouco abaixo da clavícula, todos diziam
que essa bala alojada no seu corpo não era motivo para morrer,
mas possivelmente algum orgão lhe rebentou por dentro, com o
impacto da rebentação da mina, ou minas, ninguém sabia.
Pedidos socorros, vieram dois helicópteros que recolheram
o morto, o que restava dos outros mortos e alguns feridos com
mais gravidade. Os feridos sem gravidade, assim como o resto dos
militares, regressaram ao ponto de partida. Uns dias depois
foram buscar o que restava da viatura, onde já faltavam algumas
partes e onde estavam escritas legendas provocatórias e de
intimidação aos militares, escritas a tinta amarela e verde
pelos guerrilheiros, sinal de que o local tinha sido visitado
antes. Esta estrada, que mais era um carreiro, que os militares
usavam para encurtar caminho, não mais foi usada, pelo menos
durante o tempo em que o Cifra, esteve na referida província.
O Cifra colaborou com os militares encarregues de mandar
as coisas deste militar morto para Portugal, incluindo um
bocado do camuflado ainda ensanguentado que o militar usava, que o Mister Hóstia teve a coragem de cortar quando descobriu o
buraco da bala no seu corpo. O Cifra colocou tudo dentro da
mala que se encontrava debaixo da sua cama, mais aquilo a que
se referia, que era um envelope com algum dinheiro, que era
dele e o Cifra tinha guardado numa mala, num compartimento
quase secreto do centro cripto, dinheiro este que ele recebia por ajudar algumas vezes na messe dos sargentos, e que, quando
entregava ao Cifra, para lho guardar, dizia:
- Isto é para um começo de vida, quando regressar à
Metropole.
Mas continuando, fechou a mala, amarrou-a com uma corda e
foi enviado para a sua família em Portugal, creio com a ajuda do
Movimento Nacional Feminino.
Na altura em que o Cifra recolhia todas as coisas na mala,
incluindo o bocado de camuflado ensanguentado, o Curvas, alto e
refilão, num ataque de fúria, agarra-se à cama desse militar,
rasga o mosquiteiro, abraça-se ao colchão e grita em plenos
pulmões:
- Eu mato-os, eu mato-os a todos. Só vou descansar, quando
os matar!
Todos fugiram dele.
Mais tarde o Trinta e Seis aproximou-se e levou-o para fora
do dormitório.
Em Portugal o Cifra visitou a família deste militar por
diversas vezes. Eram de uma aldeia na região da Serra da
Estrela. Tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A mãe andava
sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas
vezes, do meu Joaquim que Deus lhe guarde a alma em descanso e do meu António, que era a cara do pai quando nasceu, e que
morreu lá na África.
E mostrava sempre a fotografia do António que beijava e encostava ao coração.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Camaradas,
O Tony traz-nos uma estória comovente, com personagens tão diferentes entre si, que só a tropa poderia juntar e desenvolver laços entre eles.
Infelizmente, a estória acabou mal para alguns, como, afinal, aconteceu tantas e demasiadas vezes durante as acções de combate.
mas contém descrições de camaradagem que se perpetuarão na memória dos sobrevivos, destes aqui retratados, como de muitos outros que andaram por aqueles ambientes.
O Tony deu outro contributo, apesar de matéria repetitiva, para o conhecimento e compreensão dos ânimos e desânimos, das esperanças e desesperanças persolaizados por este grupo de militares.
Abraços fraternos
JD
Camaradas,
O Tony traz-nos uma estória comovente, com personagens tão diferentes entre si, que só a tropa poderia juntar e desenvolver laços entre eles.
Infelizmente, a estória acabou mal para alguns, como, afinal, aconteceu tantas e demasiadas vezes durante as acções de combate.
mas contém descrições de camaradagem que se perpetuarão na memória dos sobrevivos, destes aqui retratados, como de muitos outros que andaram por aqueles ambientes.
O Tony deu outro contributo, apesar de matéria repetitiva, para o conhecimento e compreensão dos ânimos e desânimos, das esperanças e desesperanças persolaizados por este grupo de militares.
Abraços fraternos
JD
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