sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (11)

Zarco, o combatente!

O dia, é de calor infernal, húmido e abafado.
A população no aquartelamento cresceu.
Há grande movimentação de militares.

Chegam tropas da capital da província, onde vem parte de uma companhia de Pára-quedistas, onde vem o Zarco, amigo do Cifra. Um grupo de comandos especiais, que se tinha há pouco formado na capital da província, com elementos africanos, comandados por um capitão que tinha sido promovido a este posto por actos de bravura, em combate, não por frequentar a academia militar ou a universidade. O Cifra reparou neste capitão, aliás, todos repararam, pois chegou ao aquartelamento, sozinho conduzindo um jeep, quando saltou para o chão o jeep ainda rodou por uns segundos, até que parou. Trazia um camuflado, já coçado, justo ao corpo e curto, mangas muito arregaçadas, um emblema dos Comandos um pouco grande ao peito, quase em cima do bolso, o Cifra não se recorda se tinha umas luvas pretas nas mãos e um lenço amarelo ao redor do pescoço, mas parece que sim, umas botas de cabedal, pretas, altas com muitos fios de cor branca, a ataremnas, e muito bem engraxadas, luziam mesmo. O cinto caído de um lado, onde estava uma pistola, usava na cabeça uma boina vermelha de lado e uns óculos de aviador escuros, onde não se viam os olhos.

Diziam que era um puro guerreiro, talvez um louco, quem sabe. Até se dizia que esse capitão tinha apostado que, por “vinte pesos”, ou seja vinte escudos, sozinho, com um jeep com o tanque cheio de gasolina, uma pistola e uma granada no bolso, era capaz de ir até ao norte da província, até à fronteira, e regressar vivo e sem nada lhe acontecer.
Podia ser verdade, mas parecia, incrível. E alguns diziam: - Melhor que isto, só uma película do John Wayne!.

Também chegou um batalhão de artilharia que tinha chegado há pouco à província, e que faria o seu baptismo em combate.

Os helicópteros trazem pessoas importantes. Parecem importantes, pois trazem vestido camuflados novos, mas têm cara de velhos, alguns com cabelos já brancos. Também trazem preso no cinto uma pistola dentro de um coldre, e outro objecto que parece ser uns binóculos, tudo muito limpinho, um, também trás uma máquina de filmar, ou câmara fotográfica, o Cifra não recorda, mas parecia máquina de filmar, pois esse militar gesticulava com os braços, mandando as pessoas saírem da frente, e colocava-a na cara por alguns segundos, e depois dava a uma manivela falando um pouco mais alto que o normal, parecendo ser o lider.

Anda pó no ar, respira-se o ar quente e húmido que entra nas narinas, e faz as pessoas, transpirarem e molharem o camuflado.

Os militares de acção andam aflitos e na expectativa, não há alojamento para tanta gente, ocupam quase toda a área do aquartelamento, dão-se dois passos e tropeça-se em qualquer coisa. Há muito lixo pelo chão. O cheiro a gasóleo, dos motores das viaturas, que não param de trabalhar, sufocam. Há outro cheiro esquisito, que deve ser das fardas de camuflado novas, dos soldados do batalhão de artilharia.

Enfim, é um pandemónio nesse fim de tarde, que se prolonga por toda a noite.

O Zarco pede água ao Cifra, talvez lembrando a água pura e cristalina que bebia na montanha, donde era oriundo em Portugal.
- Por favor, dá-me água, só água, mais nada.

Os lábios estão secos, os olhos fixos em qualquer coisa que ninguém sabe o que é. Naquele momento o Cifra não reconhece o amigo, alegre e descontraído, que costumava ser o Zarco, quando o visitava na capital da província, e até recordou uma dessas visitas em que se juntou um grupo de amigos, num sábado à tarde, e se bebeu um barril de vinho, roubado no quartel que no final, para não haver vestígios, foi queimado.

O Cifra caminha por entre todo este pandemónio, que neste momento é o seu aquartelamento, cheio de receio, pois vê tantos militares, tantas armas e outro material bélico, que até lhe dão umas náuseas, que deve ser do receio que sente, e tem que por as mãos na boca algumas vezes, para não vomitar, pois, como os leitores já sabem, o Cifra é um razoável militar, mas um fraco guerreiro e nunca se sentiu confortável em zona de conflito.

Na madrugada do dia seguinte começam a sair do aquartelamento. Todas as unidades militares abandonam a área do aquartelamento, quase ao mesmo tempo, é um comboio de viaturas. Os helicópteros fazem um ruído ensurdedor, levantando pó, folhas e lixo.

(O relato de acção que se segue, foi descrito por alguns intervenientes, principalmente o Zarco, amigo do Cifra, e confirmado pelos relatórios que chegavam à mão do Cifra, passou-se mais ou menos isto, poderá haver erros de descrição, o que, se alguns intervenientes, ainda vivos, souberem, por favor expliquem com mais pormenores, esta operação decorreu na região do Oio, em princípios de 1965, talvez Fevereiro ou Março, e o objectivo creio que era base de “casas mato”, em Morés, ou nas proximidades de Morés, e sairam do aquartelamento de Mansoa).

Avançam no terreno por algum tempo da manhã.

Deixam os militares no local, que entendem que é ideal, e as viaturas regressam, com algumas forças, só para manterem segurança, ficando a uns quilómetros do aquartelamento onde existe um pequeno posto avançado, junto a uma ponte de um pequeno rio. A missão deste conjunto de tropas era a destruição de uma importante base de guerrilheiros que controlava, há já bastante tempo, determinada zona.

Quando estão próximo do que julgam ser o objectivo, um avião, vindo da capital da província, passa rasteiro, largando umas bombas que normalmente continham napalme, o pelotão de morteiros, já posicionado, lança algumas granadas.

Não se ouve um só tiro de resposta.

Os guerrilheiros do acampamento inimigo, a tal base, que normalmente era um acampamento disfarçado de aldeia, a que os informadores dos militares chamavam “casas de mato”, por vezes com vários túneis, onde até havia compartimentos, e onde normalmente todo este cenário estava localizado debaixo de frondosas árvores para não se ver do ar. Os guerrilheiros, avisados de todo aquele aparato militar, tinham abandonado essa base, com quase todo o equipamento, e tinham-se deslocado para outro local, um pouco mais ao sul, cobrindo diferentes áreas, no terreno, próximo e por trás de onde se encontravam neste momento as forças militares.

Passado pouco tempo de o avião passar, largando as bombas, e de o pelotão de morteiros ter lançado algumas granadas, a retaguarda das forças militares posicionadas no terreno, começam a ser flagelados por granadas de morteiro, em diversas direcções.

Enquanto as forças militares se posionam de novo, sofrem pelo menos dois mortos, nos soldados do batalhão de artilharia, que por alguma inexperiência se expuseram. Pedem ajuda do avião que demora uma eternidade, pois tinha que ser de novo abastecido na capital da província.

Os guerrilheiros, com experiência em guerrilha, disparavam granadas de morteiro de diferentes direcções, assim como rajadas de metralhadora. Era um ataque às forças militares de pura guerrilha, género de dispara e foge, mas de diferentes áreas ao mesmo tempo.

Os comandos, do tal capitão, as tropas pára-quedistas e alguns militares de acção, já com alguma experiência e mais corajosos, avançam de arma em punho, tentando abrir algumas clareiras, fazer algumas baixas nos guerrilheiros, ou fazendo-os recuar, mas era difícil, mesmo muito difícil, pois não os viam, nem sabiam onde estavam localizados. Os guerrilheiros conheciam o terreno, disparavam de diferentes direcções e movimentavam-se rápido, com eficácia. Tinham também alguma organização, eram muitos, tinham boas armas, conheciam a área onde actuavam e usavam o género de guerrilha traiçoeira de dispara e foge, cobrindo-se sempre uns aos outros.

Os oficiais, no terreno, sabiam que era uma questão de tempo, sabiam o género de guerrilha que o inimigo usava e sabiam que passado pouco tempo, iria recuar para outras áreas. Os militares já tinham algumas baixas. Os helicópteros tinham regressado ao aquartelamento com as tais pessoas importantes, pois só deviam ter ido à zona do conflito, talvez para analizarem o local, ou tirarem fotografias, e estavam estacionados no aquartelamento, com as hélices a trabalhar em movimento lento, mas a levantarem algum pó e lixo, e não deslocariam tão depressa, pois o tiroteio continuava intenso no local do conflito.

Mas voltando à zona de combate, o Zarco, num ascesso de fúria e raiva, sai com o seu grupo em direcção a certa área de onde vinham constantes disparos que já tinham feito um morto. Vai de arma em punho, disparando debaixo de fogo. Três elementos do seu grupo são atingidos e caiem. Ele ainda não foi atingido, atira-se ao chão, o fogo é cerrado, não o deixa levantar. Um do seu grupo grita com dores, com parte do estômago destroçado por rajadas de metralhadora.

Os tiros abrandam.

O Zarco rasteja até ao colega do seu grupo com o estômago destroçado, que lhe pede, aos soluços, deitando algum sangue pela boca:
- Por favor, Zarco dá-me um tiro na cabeça e termina comigo, pois não suporto mais a agonia destas malditas dores. Pega nele conforme pode, corre para trás, onde pensa que se encontra a barreira das tropas, anda por algum tempo sem orientação, com o corpo do companheiro ferido às costas, que continua a pedir-lhe para o matar e acabar com aquela agonia insuportável. Por fim chega junto da tropa, com os olhos chorosos e vermelhos de fúria e raiva, a boca seca, o corpo curvado com o peso do companheiro nas costas, banhado em sangue e sem vida. Quando poisou o corpo do companheiro no chão, verificou que este lhe tinha salvo a vida, pois estava com várias balas de metralhadora, alojadas nas costas, servindo-lhe de escudo durante a fuga para junto das forças militares.

Chega o avião de novo, que orientado por alguém com poderes para isso, usa o telefone do Trinta e Seis, o tal soldado telegrafista, baixo e forte na estatura, a quem o Curvas alto e refilão obedecia e não refilava, que com uma calma fora do normal, diz, referindo-se à área onde pensa que se encontram os guerrilheiros:
- Larga as bombas, aí, incendeia essa área, onde estão esses filhos da puta, que isto vai terminar já!

Tal como ele disse, passado uns minutos, deixou de se ouvir tiros, tudo isto, muito antes do anoitecer, pois os guerrilheiros, possívelmente, com algumas baixas, deslocaram-se para outras áreas. As forças militares recolheram os mortos, chamaram os helicópteros para transporte dos feridos mais graves para o hospital da capital da província, e as viaturas regressaram ao aquartelamento antes da noite.

A base foi destruída, tendo sido capturado algum material bélico dos guerrilheiros. Soube-se mais tarde que as forças militares fizeram dezenas de mortos nos guerrilheiros e que estes os vieram buscar ao terreno durante a noite. O batalhão de artilharia, que tinha chegado há pouco à província, teve o seu baptismo em combate, com alguns mortos, que era um dos principais objectivos dos guerrilheiros, para desmoralizar os restantes militares do referido batalhão.

Diziam, mas não fazia parte de qualquer relatório, que foram os comandos do tal capitão e as tropas para-quedistas, juntamente com alguns militares de acção, mais corajosos, que salvaram o batalhão de artilharia, de não ter dezenas de mortos. Até diziam que o tal capitão, debaixo de fogo, falava em código e por sinais para os seus comandos e que tinha um sangue frio e eficácia nos movimentos, como se estivesse num ambiente calmo, e não no meio de um terrível conflito.

Talvez não fosse verdade, mas dizia-se.

O Zarco foi condecorado com a medalha de cruz de guerra, por valentia em zona de combate, por altura do dia dez de Junho, no Terreiro do Paço, em Lisboa.

O Curvas, o tal soldado alto e refilão, foi ferido com estilhaços de granada de morteiro numa perna, de um lado, mas recusou-se a ser evacuado para o hospital da capital da província, recebeu tratamento no aquartelamento, vindo a tirar os estilhaços só quase no final da comissão.

Mais tarde foi louvado e condecorado, juntamente com o Setúbal, no meio do aquartelamento, perante todos os militares, numa história, que mais para a frente contaremos.

Às vezes o Curvas alto e refilão, dizia, referindo-se a esta operação de destruição, da base dos guerrilheiros:
- Pareciam o diabo, pareciam fantasmas, estavam sempre por trás, ou onde nós não os podíamos ver, porque se eu os visse, matava-os a todos!

O Cifra não mais teve notícias do tal capitão, chefe do grupo de comandos especiais, mas pelo desenvolvimento que a guerra tomou, na referida província, ou morreu em combate, ou deve ter chegado a general.
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Nota de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

21 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10177: Do Ninho d' Águia até África (1): Mobilização e partida para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 31 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho d'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 4 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10225: Do Ninho d'Águia até África (4): No aquartelamento, quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

13 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho d'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)

21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)

6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho d'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento (Tony Borié)

11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão" (Tony Borié)

 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)
e
18 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10403: Do Ninho D'Águia até África (10): Minas na estrada (Tony Borié)

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