1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (11)
Zarco, o combatente!
O dia, é de calor infernal, húmido e abafado.
A população no aquartelamento cresceu.
Há grande movimentação de militares.
Chegam tropas da capital da província, onde vem parte de uma
companhia de Pára-quedistas, onde vem o Zarco, amigo do Cifra.
Um grupo de comandos especiais, que se tinha há pouco formado
na capital da província, com elementos africanos, comandados por
um capitão que tinha sido promovido a este posto por
actos de bravura, em combate, não por frequentar a academia
militar ou a universidade. O Cifra reparou neste capitão,
aliás, todos repararam, pois chegou ao aquartelamento, sozinho conduzindo um jeep, quando saltou para o chão o jeep ainda rodou por uns
segundos, até que parou. Trazia um camuflado, já coçado, justo
ao corpo e curto, mangas muito arregaçadas, um emblema dos Comandos um pouco
grande ao peito, quase em cima do bolso, o Cifra
não se recorda se tinha umas luvas pretas nas mãos e um lenço
amarelo ao redor do pescoço, mas parece que sim, umas botas de
cabedal, pretas, altas com muitos fios de cor branca, a ataremnas,
e muito bem engraxadas, luziam mesmo. O cinto caído de um
lado, onde estava uma pistola, usava na cabeça uma boina
vermelha de lado e uns óculos de aviador escuros, onde não se
viam os olhos.
Diziam que era um puro guerreiro, talvez um
louco, quem sabe. Até se dizia que esse capitão tinha apostado que, por “vinte pesos”, ou seja vinte escudos, sozinho, com um
jeep com o tanque cheio de gasolina, uma pistola e uma granada
no bolso, era capaz de ir até ao norte da província, até à
fronteira, e regressar vivo e sem nada lhe acontecer.
Podia ser verdade, mas parecia, incrível. E alguns diziam:
- Melhor que isto, só uma película do John Wayne!.
Também chegou um batalhão de artilharia que tinha chegado há
pouco à província, e que faria o seu baptismo em combate.
Os helicópteros trazem pessoas importantes. Parecem
importantes, pois trazem vestido camuflados novos, mas têm cara
de velhos, alguns com cabelos já brancos. Também trazem preso no
cinto uma pistola dentro de um coldre, e outro objecto que
parece ser uns binóculos, tudo muito limpinho, um, também trás
uma máquina de filmar, ou câmara fotográfica, o Cifra não
recorda, mas parecia máquina de filmar, pois esse militar
gesticulava com os braços, mandando as pessoas saírem da frente,
e colocava-a na cara por alguns segundos, e depois dava
a uma manivela falando um pouco mais alto
que o normal, parecendo ser o lider.
Anda pó no ar, respira-se o ar quente e húmido que entra nas
narinas, e faz as pessoas, transpirarem e molharem o camuflado.
Os militares de acção andam aflitos e na expectativa, não há
alojamento para tanta gente, ocupam quase toda a área do
aquartelamento, dão-se dois passos e tropeça-se em qualquer
coisa. Há muito lixo pelo chão. O cheiro a gasóleo, dos motores
das viaturas, que não param de trabalhar, sufocam. Há outro
cheiro esquisito, que deve ser das fardas de camuflado novas,
dos soldados do batalhão de artilharia.
Enfim, é um pandemónio nesse fim de tarde, que se prolonga
por toda a noite.
O Zarco pede água ao Cifra, talvez lembrando a água pura e
cristalina que bebia na montanha, donde era oriundo em
Portugal.
- Por favor, dá-me água, só água, mais nada.
Os lábios estão secos, os olhos fixos em qualquer coisa que
ninguém sabe o que é. Naquele momento o Cifra não reconhece o
amigo, alegre e descontraído, que costumava ser o Zarco, quando
o visitava na capital da província, e até recordou uma dessas
visitas em que se juntou um grupo de amigos, num sábado à
tarde, e se bebeu um barril de vinho, roubado no quartel que no
final, para não haver vestígios, foi queimado.
O Cifra caminha por entre todo este pandemónio, que neste
momento é o seu aquartelamento, cheio de receio, pois vê tantos
militares, tantas armas e outro material bélico, que até lhe dão
umas náuseas, que deve ser do receio que sente, e tem que por as
mãos na boca algumas vezes, para não vomitar, pois, como os
leitores já sabem, o Cifra é um razoável militar, mas um fraco
guerreiro e nunca se sentiu confortável em zona de conflito.
Na madrugada do dia seguinte começam a sair do
aquartelamento. Todas as unidades militares abandonam a área do
aquartelamento, quase ao mesmo tempo, é um comboio de viaturas.
Os helicópteros fazem um ruído ensurdedor, levantando pó,
folhas e lixo.
(O relato de acção que se segue, foi descrito por alguns
intervenientes, principalmente o Zarco, amigo do Cifra, e
confirmado pelos relatórios que chegavam à mão do Cifra,
passou-se mais ou menos isto, poderá haver erros de descrição, o
que, se alguns intervenientes, ainda vivos, souberem, por favor
expliquem com mais pormenores, esta operação decorreu na
região do Oio, em princípios de 1965, talvez Fevereiro ou Março, e
o objectivo creio que era base de “casas mato”, em Morés, ou nas
proximidades de Morés, e sairam do aquartelamento de Mansoa).
Avançam no terreno por algum tempo da manhã.
Deixam os militares no local, que entendem que é ideal, e as
viaturas regressam, com algumas forças, só para manterem
segurança, ficando a uns quilómetros do aquartelamento onde
existe um pequeno posto avançado, junto a uma ponte de um
pequeno rio. A missão deste conjunto de tropas era a destruição
de uma importante base de guerrilheiros que controlava, há já
bastante tempo, determinada zona.
Quando estão próximo do que julgam ser o objectivo, um
avião, vindo da capital da província, passa rasteiro, largando
umas bombas que normalmente continham napalme, o pelotão de
morteiros, já posicionado, lança algumas granadas.
Não se ouve um só tiro de resposta.
Os guerrilheiros do acampamento inimigo, a tal base, que
normalmente era um acampamento disfarçado de aldeia, a que os
informadores dos militares chamavam “casas de mato”, por vezes com
vários túneis, onde até havia compartimentos, e onde normalmente
todo este cenário estava localizado debaixo de frondosas
árvores para não se ver do ar. Os guerrilheiros, avisados de
todo aquele aparato militar, tinham abandonado essa base, com
quase todo o equipamento, e tinham-se deslocado para outro
local, um pouco mais ao sul, cobrindo diferentes áreas, no
terreno, próximo e por trás de onde se encontravam neste momento
as forças militares.
Passado pouco tempo de o avião passar, largando as bombas, e
de o pelotão de morteiros ter lançado algumas granadas, a
retaguarda das forças militares posicionadas no terreno, começam
a ser flagelados por granadas de morteiro, em diversas
direcções.
Enquanto as forças militares se posionam de novo, sofrem
pelo menos dois mortos, nos soldados do batalhão de artilharia,
que por alguma inexperiência se expuseram. Pedem ajuda do avião que demora uma eternidade, pois tinha que ser de novo abastecido
na capital da província.
Os guerrilheiros, com experiência em guerrilha, disparavam
granadas de morteiro de diferentes direcções, assim como rajadas
de metralhadora. Era um ataque às forças militares de pura
guerrilha, género de dispara e foge, mas de diferentes áreas ao
mesmo tempo.
Os comandos, do tal capitão, as tropas pára-quedistas e
alguns militares de acção, já com alguma experiência e mais
corajosos, avançam de arma em punho, tentando abrir algumas
clareiras, fazer algumas baixas nos guerrilheiros, ou fazendo-os
recuar, mas era difícil, mesmo muito difícil, pois não os viam,
nem sabiam onde estavam localizados. Os guerrilheiros conheciam o terreno, disparavam de diferentes direcções e
movimentavam-se rápido, com eficácia. Tinham também alguma organização, eram muitos,
tinham boas armas, conheciam a área onde actuavam e
usavam o género de guerrilha traiçoeira de dispara e foge,
cobrindo-se sempre uns aos outros.
Os oficiais, no terreno, sabiam que era uma
questão de tempo, sabiam o género de guerrilha que o inimigo
usava e sabiam que passado pouco tempo, iria
recuar para outras áreas. Os militares já tinham algumas
baixas. Os helicópteros tinham regressado ao aquartelamento
com as tais pessoas importantes, pois só deviam ter ido à
zona do conflito, talvez para analizarem o local, ou tirarem
fotografias, e estavam estacionados no aquartelamento, com as
hélices a trabalhar em movimento lento, mas a levantarem algum
pó e lixo, e não deslocariam tão depressa, pois o tiroteio
continuava intenso no local do conflito.
Mas voltando à zona de combate, o Zarco, num ascesso de
fúria e raiva, sai com o seu grupo em direcção a certa área de
onde vinham constantes disparos que já tinham feito um morto.
Vai de arma em punho, disparando debaixo de fogo. Três elementos do seu grupo são atingidos e caiem. Ele ainda não foi
atingido, atira-se ao chão, o fogo é cerrado, não o deixa
levantar. Um do seu grupo grita com dores, com parte do
estômago destroçado por rajadas de metralhadora.
Os tiros abrandam.
O Zarco rasteja até ao colega do seu grupo com o estômago
destroçado, que lhe pede, aos soluços, deitando algum sangue
pela boca:
- Por favor, Zarco dá-me um tiro na cabeça e termina
comigo, pois não suporto mais a agonia destas malditas dores.
Pega nele conforme pode, corre para trás, onde pensa que
se encontra a barreira das tropas, anda por algum tempo sem
orientação, com o corpo do companheiro ferido às costas, que
continua a pedir-lhe para o matar e acabar com aquela agonia
insuportável. Por fim chega junto da tropa, com os olhos
chorosos e vermelhos de fúria e raiva, a boca seca, o corpo
curvado com o peso do companheiro nas costas, banhado em sangue e sem vida. Quando poisou o corpo do companheiro no chão, verificou que este lhe tinha salvo a
vida, pois estava com várias balas de metralhadora, alojadas nas
costas, servindo-lhe de escudo durante a fuga para junto das
forças militares.
Chega o avião de novo, que orientado por alguém com poderes
para isso, usa o telefone do Trinta e Seis, o tal soldado
telegrafista, baixo e forte na estatura, a quem o Curvas alto e
refilão obedecia e não refilava, que com uma calma fora do
normal, diz, referindo-se à área onde pensa que se encontram os
guerrilheiros:
- Larga as bombas, aí, incendeia essa área, onde estão esses
filhos da puta, que isto vai terminar já!
Tal como ele disse, passado uns minutos, deixou de se ouvir
tiros, tudo isto, muito antes do anoitecer, pois os
guerrilheiros, possívelmente, com algumas baixas, deslocaram-se
para outras áreas. As forças militares recolheram os mortos,
chamaram os helicópteros para transporte dos feridos mais
graves para o hospital da capital da província, e as viaturas regressaram ao aquartelamento antes da noite.
A base foi destruída, tendo sido capturado algum material bélico dos
guerrilheiros. Soube-se mais tarde que as forças militares
fizeram dezenas de mortos nos guerrilheiros e que estes os
vieram buscar ao terreno durante a noite. O batalhão de
artilharia, que tinha chegado há pouco à província, teve o seu
baptismo em combate, com alguns mortos, que era um dos
principais objectivos dos guerrilheiros, para desmoralizar os
restantes militares do referido batalhão.
Diziam, mas não fazia parte de qualquer relatório, que foram
os comandos do tal capitão e as tropas para-quedistas,
juntamente com alguns militares de acção, mais corajosos, que
salvaram o batalhão de artilharia, de não ter dezenas de mortos.
Até diziam que o tal capitão, debaixo de fogo, falava em
código e por sinais para os seus comandos e que tinha um
sangue frio e eficácia nos movimentos, como se estivesse num
ambiente calmo, e não no meio de um terrível conflito.
Talvez não fosse verdade, mas dizia-se.
O Zarco foi condecorado com a medalha de cruz de guerra, por
valentia em zona de combate, por altura do dia dez de Junho, no
Terreiro do Paço, em Lisboa.
O Curvas, o tal soldado alto e refilão, foi ferido com
estilhaços de granada de morteiro numa perna, de um lado, mas
recusou-se a ser evacuado para o hospital da capital da
província, recebeu tratamento no aquartelamento, vindo a tirar os estilhaços só quase no final da comissão.
Mais tarde foi louvado e condecorado, juntamente com o Setúbal,
no meio do aquartelamento, perante todos os militares, numa
história, que mais para a frente contaremos.
Às vezes o Curvas alto e refilão, dizia, referindo-se a esta
operação de destruição, da base dos guerrilheiros:
- Pareciam o diabo, pareciam fantasmas, estavam sempre
por trás, ou onde nós não os podíamos ver, porque se eu os
visse, matava-os a todos!
O Cifra não mais teve notícias do tal capitão, chefe do
grupo de comandos especiais, mas pelo desenvolvimento que a
guerra tomou, na referida província, ou morreu em combate, ou
deve ter chegado a general.
____________
Nota de CV:
Vd. postes anteriores da série de:
21 de Julho de 2012 > Guiné
63/74 - P10177: Do Ninho d' Águia até África (1): Mobilização e partida
para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup
16, Mansoa, 1964/66)
24 de Julho de 2012 > Guiné
63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de
Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)
31 de Julho de 2012 > Guiné
63/74 - P10212: Do Ninho d'Águia até África (3): Uma pausa para
reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup
16, Mansoa, 1964/66)
4 de Agosto de 2012 > Guiné
63/74 - P10225: Do Ninho d'Águia até África (4): No aquartelamento,
quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd
Agrup 16, Mansoa, 1964/66)
13 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho d'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)
21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)
6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho d'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento (Tony Borié)
11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão" (Tony Borié)
15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)
e
18 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10403: Do Ninho D'Águia até África (10): Minas na estrada (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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