segunda-feira, 26 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17513: Notas de leitura (972): “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, por João Freire, 2016, edição da Comissão Cultural da Marinha (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2017:

Queridos amigos,
Com a apreciação da política do Estado Novo na Guiné (1930-1960), dá-se por terminada a recensão da investigação de João Freire que merece encómios pela forma como foi entrosando a presença da Marinha na colónia da Guiné, como foi determinante em operações militares e na sufocação de revoltas, como ofereceu sempre figuras de prestígio na governação, caso de Manuel Sarmento Rodrigues.
O autor possibilita novos ângulos de visão sobre o papel da Marinha na consolidação colonial, repertoria um elevadíssimo número de iniciativas e destaca a importância do trabalho da Missão Geo-Hidrográfica da Guiné.
Uma obra de referência, um cabouco valioso para que um dia se constituirá como a História da Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


A colonização portuguesa da Guiné, 1880-1960, por João Freire (4)

Beja Santos

“A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, por João Freire, 2016, edição da Comissão Cultural da Marinha, foi uma das edições preeminentes do ano transato, no que tange à investigação guineense no período colonial. João Freire manipula expeditamente a heurística e a hermenêutica, por cada capítulo abordado tece conclusões, assume responsabilidades interpretativas, nunca deixa o leitor à deriva ou no território das especulações. É uma viagem cronológica onde os assuntos da Marinha colonial têm peso preponderante.

O Estado Novo revê em profundidade a política colonial, mas logo no tempo dos governos militares procura-se na Guiné uma nova moldura jurídica de intervenção. Foi o caso do “Regulamento de Trânsito, Fixação e Deslocação dos Indígenas”, com data de 6 de Junho de 1932, prevê-se a existência da “Caderneta Indígena”, foi uma tentativa para fixar e sedentarizar as populações. O imposto de palhota passou a ser designado por imposto indígena, ganha foros de obrigação individual, ativaram-se os serviços de recenseamento e cobrando do imposto indígena.

As questões etnológicas e etnográficas passam a merecer algum cuidado. Jorge Velez Caroço (familiar do antigo governador) lança um questionário etnográfico, já está de pé uma “Comissão de Civilização e Assistência a Indígenas”. As grandes mudanças formais vão emergir nos anos 1950, já numa atmosfera internacional favorável à descolonização. O Ato Colonial de 1930 conhece modificações: onde havia colónias passaram a existir províncias ultramarinas, o Concelho do Império Colonial passou a Concelho Ultramarino. Na Guiné, este templo político é de uma enorme lentidão. A administração pretende enquadrar e identificar os indígenas, a ideia é que cada um deles tenha um documento com fotografia, impressão digital e dados antropométricos, saber-se se satisfez o pagamento do imposto, registam-se os castigos e condenações sofridos, os contratos de trabalho assalariado, a situação militar, as vacinas recebidas, o registo de eventuais diagnósticos médicos. Em 1954 é aprovado o Estatuto do Indigenato: “Consideram-se indígenas os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente na província, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. A par deste paternalismo e da lentidão habitual das reformas legislativas, adota-se a Lei da Nacionalidade, em 1959, que constituiu mais um pequenino passo no sentido da igualdade jurídica de todos aqueles que estavam sujeitos à soberania portuguesa: “Os indivíduos nascidos em território português presumem-se portugueses, desde que o respetivo nascimento não contenha a menção de qualquer circunstância, que nos termos da lei, contrarie essa presunção”.

João Freire faz-nos uma apreciação da Guiné no período ditatorial, e desvela alguns elementos esclarecedores da governação de Luís Carvalho Viegas, que chegou à colónia em Março de 1933, é do seu tempo a última campanha de pacificação, a abertura de novas estradas, a construção de uma ponte sobre o rio Corubal (permitindo uma futura ligação de Buba para as regiões do Boé e do Gabu), passaram a existir novas carreiras rodoviárias, melhoram os seus serviços meteorológicos bem como os cuidados de saúde, isto para já não falar nos progressos realizados no fornecimento de energia elétrica para iluminação pública e particular. Em 1941 assinala-se a chegada de um novo governador, Ricardo Vaz Monteiro, procede-se à transferência da sede do governo de Bolama para Bissau. Carlos Alberto da Encarnação Gomes escreverá na Revista da Armada em 2012: “Bolama, cidade que havia sido capital mas que, ao tempo, se encontrava num processo de degradação e abandono significativos. Grande parte dos edifícios, para evitar a derrocada, estavam escorados com troncos de palmeira, e dos serviços que anteriormente dispunha somente funcionavam a Imprensa Nacional, o hospital que dispunha de um único médico formado pela Escola Médica de Goa, e o grande hotel, que de grande somente tinhas as instalações […] Para além de um clima mais temperado, verificava-se, em Bolama, um fenómeno raro que consistia na migração diária de vários milhares de morcegos que, ao amanhecer, vinham do continente e ao anoitecer para lá regressavam”. Surge na época a figura do Comandante Militar da Guiné, pensa-se na construção de um aeródromo internacional junto de Bissau, chega a radiodifusão.

Considera-se a chegada do novo governador, Manuel Sarmento Rodrigues, como o momento de grande viragem. Como observa João Freire, foi Sarmento Rodrigues quem soube mobilizar vontades e obter ajudas financeiras e institucionais para dar impacto às comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné; vão ser tempos de melhoria para os serviços de saúde, novas estradas, nova imagem da capital da colónia. Basta ler os elucidativos Anuários da Guiné Portuguesa de 1946 e 1948 organizados por Fausto Duarte para se perceber a dimensão das transformações. Em 1949 chega a Bissau o novo governador, Raimundo Serrão, que irá prosseguir as obras públicas iniciadas pelo seu antecessor. É na governação de Diogo de Melo e Alvim, que chegara à Guiné em 1954, que ocorrerá a primeira visita de um Presidente da República à Guiné, Craveiro Lopes fará uma demorada viagem em 1955. Em Agosto de 1956 assume funções Álvaro Silva Tavares, o único civil a exercer o cargo, se nos lembrarmos que Correia e Lança apenas o fez a título de interino, no século anterior. António Peixoto Correia governará a Guiné entre 1959 e 1962. De acordo com uma publicação oficial, em 1960 existiriam na Guiné 3300 km de estradas (das quais 60 km eram asfaltadas). Quando ao domínio da saúde, estavam em funcionamento o Hospital Central de Bissau, o hospital sub-regional de Bolama, 9 hospitais regionais, 1 hospital de tuberculosos, 1 hospital de leprosos, 1 maternidade central e 15 regionais. Em 21 de Dezembro de 1962 aterra em Bissau o novo Governador, Vasco Martins Rodrigues. Um mês depois, estala oficialmente a guerrilha. O autor desenha a evolução da economia com relevo a partir do pós-guerra, carreia elementos sobre a demografia, a vida social, recreativa e cultural da Guiné. Na síntese de interpretação conclusiva, dirá: a Guiné nunca foi uma prioridade nas preocupações do governo de Portugal, não constituía uma posição-chave no domínio da geoestratégia; para os portugueses foi sempre fascinante o mosaico étnico, o território sulcado por braços de rios e matas exuberantes, no entanto foi sempre claro que o território não atraía os colonizadores, tão somente os mercadores e os agentes da administração; é a partir da segunda metade do século XIX que se desenvolvem focos de agitação e preocupações com a ocupação efetiva da colónia, os comerciantes europeus traziam armas de fogo, panos de algodão e produtos ao gosto dos africanos e transacionavam oleaginosas, couro, algum marfim, desenvolve-se um pequeno funcionalismo, ingrediente indispensável para legitimar a presença portuguesa, na alfândega e na fazenda; é igualmente na segunda metade do século XIX que se irão dar mudanças demográficas elas próprias conducentes a lutas interétnicas e disputas permanentes para a ocupação do solo, o ocupante colonial, à semelhança do que outros ocupantes noutras colónias fizeram, dividiram para reinar, viveu-se sempre num equilíbrio precário de antagonismos em que os interesses comerciais, quando se sentiam lesados, promoviam campanhas de descrédito dos governantes, na colónia e em Lisboa.

E em jeito de despedida, o autor recorda que à Marina coube sempre a organização dos fluxos de movimentação marítima e o controlo dos espaços costeiros e fluviais, teve um desempenho determinante nas operações militares entre 1890 e 1915.

Insista-se nos méritos do trabalho de João Freire, ao consorciar em permanência a política guineense e os contributos da Marinha ao longo dos séculos, um olhar refrescado sobre a presença portuguesa na Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17505: Notas de leitura (971): “A Colonização Portuguesa da Guiné 1880-1960”, por João Freire, 2016, edição da Comissão Cultural da Marinha (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Mais uma das que eu gosto, vindas do incansável BS.
Duas coisas me chamaram à atenção no estudo de João Freire.

PRIMEIRA...à semelhança do que outros ocupantes noutras colónias fizeram, dividiram para reinar...

Penso que se abusa com frequência deste termo do "dividir para reinar" em que se faz do branco um "chico-esperto" e do preto um "burro-idiota"-

Lá que o "chico-esperto" tentasse, e ainda hoje tente a divisão do africano acredito eu, mas que o resultado foi o contrário ninguém tenha dúvida, porque se houve algum entendimento inter-étnico deve-se precisamente à presença do europeu/colon, "inimigo comum".

Divididos estavam naturalmente os africanos, e nem sempre o "branco" sabia onde estava essa divisão étnica e geográfica: os pretos eram todos iguais.

SEGUNDA...em 1960..a Guiné tinha 60 Klm de asfalto.

Penso que a Guiné (300 Klm em diagonal)com 60 Klm de asfalto em 1960 devia ser considerada bastante ocupada e modernizada a sul do Saara.

Em Angola em 1960 (1600 Klm em Diagonal fora Cabinda)quem saísse de Luanda para qualquer cidade do interior tinha apenas 60 Klm, de asfalto até Catete.

O resto eram jangadas e terra batida e por bater.

(Exceptuemos sempre a África do Sul de Mandela e dos boeres,a Rodésia de Ian Schmith e a "coutada turística" do Quénia, porque o resto era tudo mais ou menos o mesmo).

Cumprimentos