domingo, 25 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17511: In Memoriam (299): Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017), ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 675, Binta e Guidaje, 1964/66 (José Eduardo R. Oliveira)



1. Mensagem do nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), com data de 25 de Junho de 2017, dando-nos conta do falecimento do ex-Alf Mil Médico, Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, sepultado no passado dia 20 de Junho:

Caro Amigo Carlos

Assunto: In memoriam do Médico da CCaç 675

Votos de que esteja tudo bem contigo e com os teus.
Depois de longa ausência volto à tua presença com uma notícia sempre difícil de transmitir: - partiu desta vida o Alferes Alfredo Roque Gameiro Martins Barata, que foi Médico da CCaç 675, que esteve no Norte da Guiné (Binta e Guidage) entre Junho de 1964 e Abril 1966.
Depois de doença prolongada foi a sepultar no passado dia 20 de Junho corrente.
Contava 79 anos.

Além de admirável ser humano foi excelente médico não só na Guiné mas também depois do regresso a Lisboa , onde continuou a ser “Anjo protector” dos antigos militares da “675” e dos seus familiares, quando precisaram de apoio médico.

Junto um texto e uma foto.
Grande abraço de Alcobaça.
JERO


IN MEMORIAM

Dr. Alfredo Roque Gameiro Martins Barata (1938-2017)
Ex-Alferes Mil. Médico da CCAÇ 675

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Médicos da Tropa!

Para situar o leitor há que referir que o Médico da nossa “estória” estava destacado no norte da Guiné já há cerca de um ano. Vinha de férias para a Metrópole e como o avião da TAP não fazia escala na “nossa guerra” tinha que utilizar alguns meios de transporte alternativos para chegar até Bissau.

Como o seu “Hospital” ficava em Binta, junto ao Rio Cacheu, a primeira fase para chegar a Lisboa obrigava a uma viagem de barco até à sede do Batalhão, que se situava em Farim.
Depois seguia-se uma viagem de “Dakota” (um velho avião da 2.ª Grande Guerra Mundial) que transportava passageiros e carga para Bissau, a capital da Província. Perto de Bissau, mais propriamente em Bissalanca, pousavam os “SuperConstelation” da TAP que nos transportavam para a Lisboa que ficava apenas a …9 horas de voo!
A partir daqui o registo é do”nosso Alferes Médico” e consta das páginas do Diário da CCaç 675, que prestou serviço na Guiné de princípios de Maio de 1964 a finais de Abril de 1966.


"…Estávamos em Binta havia 7 meses, nenhum barco tinha ainda sido atacado e, para ir à Metrópole como seria o meu caso dentro de pouco tempo, qualquer um de nós seria capaz de se meter a caminho nem que fosse a nado.
Porque apesar de todos os melhoramentos que tornam a vida menos dura em Binta, Binta é Binta e Lisboa é Lisboa.
Ora a primeira meta da viagem era precisamente Farim e foi fardado de «ronco» amarelo, de galões dourados e tudo, com máquina fotográfica na mão direita e o saco de bagagem na esquerda que embarquei, despreocupadamente, (e por que não?) certa manhã de Fevereiro numa ronceira LDM rumo àquela vila.
Não ia só. Comigo ia uma pequena multidão colorida e palradora: eram mulheres indígenas cuidadosamente sentadas no chão, com as saias bem enroladas entre as pernas, tendo a seu lado um estendal de tachos e meias-cabaças cheias de tomates e arroz, era um cabrito barulhento e saltitante, eram pretos acocorados fumando cachimbo ou mastigando cola, eram alguns companheiros de Binta (entre os quais o nosso Primeiro Santos) que na proa conversavam.
Toda esta feira flutuante dava uma nota colorida e alegre àquela austeridade cinzenta-bélica tão característica dos navios de guerra. Abandonada a um canto, uma metralhadora apontava para o ar e chamava-nos à verdade: estávamos em guerra. Uns tiros isolados podiam atingir toda esta gente amontoada...
Mas, logo a seguir, a nossa atenção saltava para a vida, para o Sol e para a natureza que nos envolvia.
Chegámos finalmente a Farim, onde, depois de umas horas de espera inútil soubemos que o voo do Dakota tinha sido adiado para o dia seguinte. Paciência só no dia imediato chegaria a Bissau.

Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitando o transporte da LDM resolvi deixar a bagagem e voltar rio abaixo até Binta.
A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que na margem, escolhiam poiso para a noite.
No dia seguinte de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole, desta vez só, sem o bulício da véspera.
O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos e que pouco a pouco se ia desvanecendo com o romper da claridade.
No interior do barco a tripulação tomava a seu café. Em cima, o piloto olhava atento o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para abreviar caminho.

Encostado à torre da peça desguarnecida, passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo: - Aqui é a foz do Caur, mais adiante Tambato Mandinga... Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens... Se não me engano... Que deixa ver as moranças da tabanca... Sim, é ali. (Já lá tínhamos chegado e com efeito era ali).


De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.
Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo "deitar" das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão.
As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia que passaram no espírito, desapareceram rapidamente logo que verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.
Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro.
O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre 20 mm "calou" o tiroteio inimigo.
Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estar os terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da "operação", não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta... A lancha voltou ao seu primitivo rumo e continuou Cacheu acima, a caminho de Farim.
Fez-se o balanço da situação; quando souberam que tinha sido atingido de raspão os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois vi que provinha das feridas.
Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazucada, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem para "ronco".
Os malandros tinham visto um oficial a 80 metros, de pé, isolado na coberta da lancha, feito "pato" com as mãos cruzadas ao fundo das costas e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.
Pouco depois desembarquei em Farim. O "Dakota" já tinha chegado e, quando a correr a1cancei o Comando, já o avião se preparava para deslocar.
Ainda não era dessa vez que ia para Bissau.
Teria que esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha.

Alferes Mil. Médico Alfredo Roque Gameiro Martins Barata".


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O tempo passa e há poucos dias estive na festa de aniversário dos 70 anos do meu Médico.
Setenta anos. Continua jovem, tranquilo, amável e …distraído.
Como não podia deixar de ser recordámos a viagem acidentada do Rio Cacheu.
"Ah sim, lembro-me. Teve um bocado a ver com a guerra do Raul Solnado".
Os filhos a seu lado olhavam-no espantados pois não conheciam essa aventura de seu Pai.
Dei-lhes a ler a “estória” do Diário da CCaç 675, que aqui reproduzo.
De espantados passaram a… pasmados.

Além de excelente Médico foi “Anjo da Guarda” de muita gente - desde os tempos da Guiné até aos dias de hoje ajudou inúmeros ex-militares da sua Companhia e …passou ao lado de uma carreira de escritor.
Digo eu.
JERO

Nota: - Os desenhos que reproduzimos parcialmente são da autoria de seu irmão, Arquitecto José Pedro Roque Gameiro Martins Barata.

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2. Comentário do editor:

Caro JERO,
Bonita esta tua homenagem ao Dr. Pedro Roque Gameiro Martins Barata, publicando esta estória tragico-cómica.

Para ti o nosso abraço solidário porque sabemos estás a sentir a partida deste teu companheiro das horas que ambos dedicaram a favor de quem precisava de cuidados sanitários. Como referes, continuou a dedicar o seu saber, ajudando os antigos camaradas, e seus familiares, quando dele precisassem.

À sua família enlutada apresentamos as nossas condolências.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17362: In Memoriam (298): Agostinho Valentim Sousa Jesus (1950-2016), ex-1.º Cabo Mecânico Auto da CCS/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74)

4 comentários:

José Marcelino Martins disse...

É a vida a passar por nós, sem conseguirmos agarra-la.
Mais uns anos, e não serão muitos, teremos alguém, a falar de nós, mas na TERCEIRA ou QUARTA geração.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

JERO: antes de mais, aceita os meus votos de pesar pela morte, sempre prematura, de mais um bravo da Guiné. À família enlutada, transmite a nossa homenagem e o nosso apreço por este camarada, veterano, como tu, da CCAÇ 675, bem como o nosso pesar pela sua perda. Os furriéis enfermeiros como tu e os alferes médicos como o Alfredo Roque Gameiro Martins Barata tinham, na Guiné, uma elevada cotação e eram camaradas particularmente respeitados e estimados. Sempre soubemos contar com vocês nas horas difíceis.

A vossa família maior,a CCAÇ 675, também está de luto. E com ela a Tabanca Grande. A ti, que és um talentoso escritor, e o porta-voz dos bravos da CCAÇ 675, já com perto de 140 referências no nosso blogue, deixa-me dizer-te que li, deliciado, este naco de prosa de primeira água que é a aventura e desventura da ida do Martins Barata de Binta até Bissau para apanhar o avião, e gozar as merecidas férias de um mês na metrópole. É um texto de antologia.

A preservação da memória do Martins Barata fica, deste modo, acautelada. Mas, na qualidade de fundador, administrador e "editor-in-chief" deste blogue, eu vou propor ao nosso incansável e sempre atento Carlos VInhal que acrescente à lista dos nossos 746 grã-tabanqueiros o nome do Martins Barata. Vai diretamente para o nosso panteão onde estão já todos aqueles de nós que "da lei da morte se foram libertando". Penso que estou também a interpretar corretamente os sentimentos de toda a nossa Tabanca Grande.

Carlos e Jero, são seis da manhá, estou na Madalena, Vila Nova de Gaia, e justamente também a ultimar a escrita da "oração fúnebre" que vou dizer amanhã, no "sanatorium" de Matosinhos, a um sobrinho que morreu este fim de semana num brutal acidente na A42, O Jorge Dinis, que deixa viúva e duas sobrinhas menores, de 18 e 16 anos... Morava em Paredes e era gestor de empresas.

Em suma, já não estamos em guerra, mas a morte continua a fazer parte das nossas vidas. Vamos ter que saber continuar a olhá-la, olhos nos olhos, ontem como hoje, e a tentar fintá-la. Mas quando cairmos, que haja sempre um ou mais camaradas que não nos deixe enterrar na "vala comum do esquecimento". LG

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Peço desculpa pela maldita e quase blasfema gralha: queria dizer "Tanatório de Matosinhos"... A cerimónia de despedida vai ser amanhã às 11 horas... Fica junto ao cemitério de Sendim, e dizem-se que é o edifício muito bonito. É muito mais de um simples crematório. Segundo li no JN - Jornal de Notícias, por ocasião da sua inauguração há 8 anos atrás, "é um complexo funerário que acolhe um conjunto de serviços inédito na região. O edifício distribui-se por três blocos ligados por uma nave central. No primeiro, ficam uma cafetaria e uma florista, que vão ser concessionados a privados, e os serviços administrativos. No segundo bloco, há três capelas de velório, apoiadas por uma sala de tanatopraxia (tratamento e preparação dos cadáveres)."

(...) "No terceiro bloco, fica a sala de despedidas, com capacidade para 120 pessoas, e aberta a todos os cultos. Uma galeria superior permite ter um coro durante a cerimónia. Toda a sala é virada para uma janela com vistas desafogadas sobre o horizonte. A arquitecta Luísa Valente, também responsável pela remodelação do antigo cemitério de S. Mamede de Infesta, aproveitou o enquadramento e decidiu colocar a urna em frente à janela, sobre um dispositivo automático que a faz deslizar suavemente, para dentro da parede, em "direcção ao infinito".
(...)

http://www.jn.pt/local/noticias/porto/matosinhos/interior/primeiro-tanatorio-municipal-abre-dia-20-1290394.html
_____________

tanatório | s. m.

ta·na·tó·ri·o
(tanato- + -ório)
substantivo masculino
Conjunto de instalações destinadas a diversos tipos de cerimónias fúnebres e preparação de cadáveres.

"tanatório", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/tanat%C3%B3rio [consultado em 26-06-2017].

Anónimo disse...

JERO

Os meus sentidos pêsames para a rapaziada da 675 da qual és porta voz e em especial para a família enlutada.
Que o nosso camarada Dr Roque Gameiro descanse em paz.

Abraço para todos
Carlos Silva